Penso que nossa principal tarefa na próxima década é configurar ambientes sociais livres de populismos (sejam ditos de direita ou de esquerda). Porque nada, nada em política é capaz de destruir tanto como o populismo.
Não adianta ficar discutindo se uma força política é democrática ou não. Porque ela pode ser democrática eleitoral e não ser democrática liberal – basta, para tanto, que seja populista. Então a pergunta que deve ser feita é se uma força política está no campo liberal ou no campo iliberal. Nem todos os populismos são autocráticos, mas todos os populismos, digam-se de direita ou de esquerda, são iliberais.
Estar no campo liberal não é se alinhar a uma corrente político-ideológica. Não se define pela adesão ao capitalismo ou ao socialismo, nem pelo fato de um ator político ser considerado de direita ou de esquerda. Ser democrata liberal é um comportamento político, não um credo. Esse comportamento decorre da observância do que Lührmann, Tannenberg e Lindberg (2018) chamaram de princípio liberal da democracia:
“O princípio liberal da democracia enfatiza a importância de proteger os direitos individuais e das minorias contra a tirania do Estado e a tirania da maioria. O modelo liberal adota uma visão “negativa” do poder político na medida em que julga a qualidade da democracia pelos limites impostos ao governo. Isso é alcançado por meio de liberdades civis constitucionalmente protegidas, forte domínio da lei, um poder judiciário independente e freios e contrapesos efetivos que, juntos, limitam o exercício do poder executivo” (1).
Angela Merkel era democrata-cristã (dita de centro-direita) e Olaf Scholz social-democrata (dito de centro-esquerda, ele havia sido vice-presidente da União Internacional da Juventude Socialista). Mas ambos são democratas liberais e o regime em que governaram e governam a Alemanha é uma democracia liberal.
Os democratas liberais recusam os populismos contemporâneos não apenas, nem principalmente, porque reprovam a demagogia, o assistencialismo, o clientelismo e a irresponsabilidade fiscal. Estas são características dos velhos populismos. Os democratas liberais recusam os novos populismos do século 21 porque eles são alternativas guerreiras. Com efeito, em qualquer ambiente em que populistas comparecem, eles instalam uma guerra.
Ao contrário dos populistas, que acham que a sociedade está dividida em uma única clivagem, separando a vasta maioria (o povo) do “establishment” (as elites), os democratas liberais consideram como normal que a sociedade esteja divivida entre muitas – e às vezes transversais – clivagens.
Ao contrário dos populistas, que pensam que a polarização (povo x elites) deve ser encorajada, os democratas liberais estão convencidos de que a melhor maneira de lidar com essas muitas clivagens é por meio de um debate aberto e livre, sob uma cultura política que valoriza a moderação e busca progressivamente construir consensos sem eliminar dissensos. Assim, os democratas liberais não aceitam que os representantes do povo sejam considerados os atores legítimos ou mais legítimos e que eles não devam fazer acordos (a não ser táticos) ou construir consensos (idem) com os representantes das elites (posto que estes seriam ilegítimos ou menos legítimos) e sim buscar suplantá-los, fazendo maioria em todo lugar (majoritarismo).
Ao contrário dos populistas, que acham que as minorias políticas (antipopulares) não devem ser toleradas (e devem ser deslegitimadas) quando impedem a realização das políticas populares e que a legalidade institucional (erigida para servir às elites) não deve ser respeitada quando se contrapõe aos interesses do povo, os democratas liberais acreditam que, em quaisquer circunstâncias, o Estado de direito e os direitos de minorias precisam ser respeitados (não apenas minorias identitárias, mas sobretudo minorias políticas).
Por tudo isso, os democratas liberais são tomados, pelos populistas (digam-se de direita ou de esquerda), como os seus principais inimigos. E sofrem continuamente todo tipo de ataques (inclusive swarm attacks, contra os quais não se conhece defesa), cancelamentos, processos de destruição de reputações etc., ficando vulneráveis às tribos guerreiras cujo principal papel é destruir.
A única maneira de resistir às (falsas) “poleis” virtuais (que são, na verdade, anticomunidades políticas, ou seja, tribos antipolíticas) é configurando poleis paralelas onde a livre interação e a conversação amistosa criam uma egrégora protetora contra as hordas animadas por sanhas destrutivas.
Os males que uma autocracia podem causar a uma sociedade levam muito tempo para ser corrigidos. Vinte anos de ditadura russa destruiram a política naquele país. Se Putin caísse agora, a Rússia ainda levaria, quem sabe, umas quatro décadas para acumular um estoque suficiente de capital social capaz de possibilitar o florescimento de uma democracia liberal.
O fato do campo i-liberal na França ter alcançado mais de 50% dos votos no primeiro turno das eleições presidenciais de 2022 é um sinal de catástrofe. Sim, os votos dos dois populistas de extrema direita (Le Pen 23,1% + Zemmour 7,1%) somados aos votos de um populista de esquerda (Mélenchon 22%) dão mais de 52%. São os aliados de Putin que alcançaram a maioria na França. E seja qual for o resultado final do segundo turno, o regime francês já está parasitado por populismos e vai levar também algum tempo para se recuperar.
O mesmo ocorre no Brasil onde os principais concorrentes populistas são simpáticos a Putin ou se recusam a condená-lo.
Precisamos de candidaturas do campo liberal no Brasil. Candidaturas não populistas. Mesmo que essas candidaturas não tenham grandes chances de vencer os dois populismos que estão polarizando a disputa. No mínimo, campanhas de candidaturas democráticas não iliberais fornecerão uma indicação da dimensão dos descontentes com os populismos. Poderá ser uma dimensão muito reduzida. Não será uma tragédia constatar isso. Imagine-se que 1 milhão e 500 mil pessoas que tenham a clareza suficiente para não votar em candidatos populistas (1% nosso do eleitorado), se fizessem parte de uma nova PPA (população politicamente ativa), já seriam suficientes para alterar o quadro.
Sim, os democratas sempre foram minoria mesmo. Eram minoria na passagem do século 6 para o 5 a.C. quando Clístenes fez a sua reforma distrital que deu origem à democracia. Eram minoria no parlamento inglês do século 17, quando os modernos reinventaram a democracia. Eram minoria quando a democracia foi experimentada nos Estados Unidos, que se tornou o maior país democrático do mundo. Para não falar que na revolução francesa eram uma minoria tão reduzida que não se podia achar, nem com um farol, quase nenhum democrata entre jacobinos e girondinos.
Em todos esses processos os democratas foram o fermento, não a massa. Seu papel precípuo foi o de fermentar a emergência de uma opinião pública democrática, não o de arrebanhar maiorias. E os democratas continuam sendo minoria hoje, tanto em número de regimes quanto em número de pessoas que vivem em democracias. As autocracias – não as democracias – são os regimes mais numerosos do mundo, nos quais vive mais da metade da população do planeta. Assim, quem não gosta de ser minoria, quem tem o desejo de vencer, vencer, vencer até morrer e ganhar sempre, talvez não deva se aproximar muito da democracia.
Muitas pessoas ainda não entenderam qual é o papel dos democratas. Não é conduzir maiorias como rebanhos para vencer uma disputa. Isso um autocrata também faz. O papel dos democratas é resistir ao autoritarismo e a qualquer populismo. Mesmo estando (como sempre estiveram) em minoria.
Voltando ao início desta nota, para concluir. O fundamental é acumular capital social para algum dia sair dessa situação. Porque sem uma base mínima de confiança a democracia não pode florescer. E o efeito mais nocivo dos populismos é destruir essa confiança, ou seja, exterminar capital social.
Claro que uma candidatura alternativa à polarização dominante, a menos que vença a disputa, não fará isso. E nem mesmo se vencesse faria (como estamos vendo nos EUA após a vitória de Biden). Uma (ou mais de uma) candidatura desse tipo ajudará, por certo, mas é preciso bem mais para continuar a semear novas alternativas democráticas liberais. É preciso multiplicar redes de conversação democrática recorrente criando espécies de Populism-Free Zones, que serão áreas sem guerra, quer dizer, sem a prática da política (ou da antipolítica) como continuação da guerra por outros meios, onde não seja aceitável o discurso “nós” contra “eles” como estruturante do engajamento político.
E a única maneira de fazer isso é construindo poleis (comunidades políticas) mesmo, onde seja possível experimentar a democracia no dia-a-dia da convivência, como modo-de-vida.
Referência
(1) Cf. Anna Lührmann, Marcus Tannenberg e Staffan Lindberg (2018): Regimes of the World (RoW): Opening New Avenues for the Comparative Study of Political Regimes. Politics and Governance (ISSN: 2183–2463) 2018, Volume 6, Issue 1, Pages 60–77 | DOI: 10.17645/pag.v6i1.1214.


