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Os populismos são guerreiros

Algumas formas de resistência às investidas populistas-autoritárias do bolsonarismo contra a democracia estão erradas. Eles – os bolsonaristas – não têm como mudar e não têm como recuar. Não adianta traçar linhas vermelhas no chão e dizer: daqui não passam. Eles ultrapassarão.

Não adianta rebater suas alegações com argumentos racionais, travar disputas jurídicas, desvendar suas pretensões golpistas em análises teóricas e emitir notas de repúdio. Eles não modificarão sua trajetória, mesmo quando declarem que estão de acordo com as críticas que recebem. É da natureza de movimentos totalitários serem cínicos e mentirosos.

O bolsonarismo nunca vai se realizar como governo totalitário. Isso não significa que o bolsonarismo não tenha traços de um movimento totalitário.

Sim, há traços de totalitarismo em qualquer movimento autoritário. Mesmo quando movimentos totalitários não conseguem se organizar. Mesmo quando governos totalitários não conseguem se instalar. Estudar os totalitarismos nazista e stalinista é fundamental para identificar a presença desses traços nas alternativas antidemocráticas atuais.

Entramos aqui na exploração do reconhecimento de padrões. Há muitos isomorfismos, por exemplo, entre nazismo e stalinismo e trumpismo e bolsonarismo. Mencionemos, a título de exemplos, alguns deles:

Matar a rede ou exterminar o capital social. Destruir conexões sociais.

Abolir a esfera pública, atomizando-a e substituindo-a por miríades de esferas privadas opacas não interagentes horizontalmente entre si.

Reprimir não apenas as opiniões divergentes, mas fazer sumir o próprio conceito de opinião.

Erradicar a ação gratuita. Como dizia Himmler, ninguém deverá “fazer alguma coisa apenas por amor a essa coisa”.

Banir a política do mundo. Sim, Arendt (1951) tinha razão quando escreveu em as Origens do totalitarismo: “um objetivo político que constitua a finalidade do movimento totalitário simplesmente não existe”.

Buscar que as pessoas não apenas ajam sob comando, mas pensem sob comando. Como dizia Hitler, o pensamento só existe “em virtude da formulação ou execução de uma ordem”.

Quebrar os seres humanos para substituir a humanidade por uma espécie de colmeia borg (que não tem quase nada a ver com uma verdadeira colmeia de abelhas).

Só um movimento totalitário que se materialize como governo totalitário – como conseguiram fazer Hitler e Stalin – poderá obter, ainda que temporariamente, tais resultados full. Mas isso não significa que movimentos e governos autoritários mais brandos não contenham alguns (ou muitos) desses traços.

Reconhecer esses padrões e perceber isomorfismos quando eles se manifestam em circunstâncias distintas é fundamental para a aprendizagem democrática. Afinal, a democracia – na medida em que é um processo de desconstituição de autocracia – só se aprende pelo avesso.

Por isso, resistir ao bolsonarismo não envolve apenas disputar com ele uma posição no Estado. Enquanto não ocorrem as eleições, o movimento do populismo-autoritário avança na sociedade. Sem resistência (ativa) da sociedade, as medidas atuais de freios e contrapesos institucionais não serão suficientes para conter os ataques de Bolsonaro à democracia. O fato de as instituições estarem funcionando e Bolsonaro continuar no poder – e os bolsonaristas na ofensiva, pautando o debate público (ou não estão?) – é uma evidência de que barreiras apenas institucionais são insuficientes. É preciso criar – em todo lugar – ambientes livres de bolsonarismo.

Um Brasil sem bolsonarismo não é apenas um Brasil em que Bolsonaro perderá as próximas eleições (se perder, posto que sua saída do governo em 2023 – conquanto provável – é um futurível). É um Brasil em que populismos tenham mais dificuldade para florescer e, se surgirem, que fiquem numa posição marginal, podendo então suas forças serem metabolizadas pela democracia sem risco de ruptura institucional ou de grave erosão da democracia. Se há esse risco – como há hoje (ou não há?) – é porque a questão não foi ainda resolvida pela sociedade. A disputa fundamental se dá na sociedade.

A rigor isso só pode ser feito se configurarmos ambientes sociais livres de populismos. Substituir um populista-autoritário de extrema-direita por um neopopulista de esquerda não é a solução porque não muda as estruturas sociais que permitem a expansão da infecção populista.

Os populismos são hoje, no Brasil e no mundo, os principais adversários da democracia. Para os populismos, como se sabe, há o verdadeiro povo e o falso povo. Verdadeiro povo são apenas os que apoiam o líder populista. Os que não apoiam, mesmo que perfaçam a maioria da população, são sempre o falso povo, os inimigos do povo, os agentes das elites: para a esquerda são os capitalistas e para a extrema-direita são os comunistas.

Por exemplo, para os neopopulistas de esquerda, que continuam apoiando os ditadores cubanos (e os venezuelanos e os nicaraguenses), há uma conspiração imperialista operada por agentes da CIA contra o povo trabalhador. Para os populistas-autoritários de extrema-direita há uma conspiração globalista operada por agentes comunistas, a soldo de Soros, contra o “true people” de Bannon. Por que a narrativa é formalmente a mesma? Ora, porque são dois populismos.

Essa visão de que a sociedade está atravessada por uma única clivagem que opõe esse “povo” às “elites” (ou ao “sistema”), desabilita a política como modo não-guerreiro de regulação de conflitos. Tudo vira um enfrentamento entre contingentes que têm que ser dirigidos por condutores de rebanhos. Povo, aqui, não é um conceito sociológico, mas antipolítico. Sem o líder não há o (verdadeiro) povo.

Um líder que tenha capacidade de fazer isso (seja dito de direita ou de esquerda) é como um buraco negro no campo social. Suga todas as energias autônomas da sociedade, impedindo que alternativas democráticas floresçam. Força alinhamentos em vez de ensejar diversidade de conexões que abram novos caminhos (e redes são múltiplos caminhos: daí que matar a rede seja um traço totalitário persistente em todos autoritarismos).

Sim, a substituição de um populismo de direita (ou extrema-direita) por um populismo de esquerda não resolve o problema. O perdedor da disputa terá motivos para continuar organizado e atuante visando a dar o troco na próxima eleição (e, o que é pior, em todo o tempo que antecede a próxima eleição). Isso significa dizer, literalmente, que a questão não será pacificada. Ou seja, que a guerra fria (e a política como continuação da guerra por outros meios) continuará.

Para pacificar a questão só a democracia ajuda. Não se trata apenas do respeito ao Estado de direito (não violar a Constituição e as leis) e sim de preservar as regras não escritas que evitam que a democracia se desconsolide. Por exemplo, não encorajar a polarização (“nós” contra “eles”), não transformar os adversários em inimigos (da pátria, do povo, da nação, do Estado, de Deus) e tratar as divergências por meio de um debate aberto e tolerante, valorizando a moderação e a busca do consenso. Isso é tudo o que não fazem os populismos, digam-se de direita ou de esquerda.

Todos os populismos (pelo menos os contemporâneos) são i-liberais e majoritaristas. Em primeiro lugar não aceitam que seja normal que a sociedade esteja dividida entre muitas – e às vezes transversais – clivagens. Pelo contrário, como já foi dito acima, acham que a sociedade está dividida por uma única clivagem, separando a vasta maioria (o “povo”) do “establishment” (as elites).

Em segundo lugar, não aceitam que a melhor maneira de lidar com essas clivagens é por meio de um debate aberto e livre, sob uma cultura política que valoriza a moderação e busca o consenso. Pelo contrário, acham que a polarização (povo x elites) deve ser encorajada e que os representantes do povo (que são os atores legítimos ou mais legítimos) não devem fazer acordos (a não ser táticos) ou construir consensos (idem) com os representantes das elites (posto que estes são ilegítimos ou menos legítimos) e sim buscar suplantá-los, fazendo maioria em todo lugar (majoritarismo).

Em terceiro lugar, não aceitam bem que o Estado de direito e os direitos de minorias precisam ser respeitados. Pelo contrário, acham que as minorias políticas (antipopulares) não devem ser toleradas (e devem mesmo ser deslegitimadas) quando impedem a realização das políticas populares e que a legalidade institucional (erigida para servir às elites) não deve ser respeitada quando se contrapõe aos interesses do povo.

Esse debate democrático tem de ser feito na sociedade. Mais do que um debate, porém, tudo isso deve se desdobrar em formas ativas de resistência, abrindo zonas protegidas do vírus populista. Resistir ao bolsonarismo significa resistir ao populismo (seja qual for sua coloração). Significa resistir à guerra, mesmo que seja a guerra fria, mesmo que seja a política concebida e praticada como continuação da guerra por outros meios. Ou seja, não propriamente (e obviamente) destruição de inimigos, mas o contrário: construção e manutenção de inimigos (e aqui encontramos – mais uma vez – o velho “nós” contra “eles”).

Só a democracia – um modo pazeante de regulação de conflitos – pode nos salvar dos populismos que ora tomaram a cena pública como uma epidemia. Por isso que os populismos são guerreiros e é preciso pacificar.

A guerra é o estado de guerra. É o estado de guerra que permite reconfigurar cosmos sociais segundo padrões hierárquicos de organização regidos por modos autocráticos de regulação. Portanto, o problema é o estado de guerra. Se Bolsonaro for derrotado eleitoralmente, mas o estado de guerra continuar, então o bolsonarismo continuará contaminando a sociedade.

O discurso (e a prática) de uma via democrática – quer dizer, não-populista – deve ser o de pacificação, não o de revanche. A única maneira de conter os populismos é adotando uma nova postura: sem guerra.

Não pode haver liberdade para acabar com a liberdade

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