A discussão sobre a viagem de Nancy Pelosi à Taiwan revelou a epidemia. Boa parte dos nossos analistas está contaminada pelo realismo político. Já expliquei porque todo realismo político é autocrático. Mas agora vamos nos concentrar em Taiwan.
Taiwan é uma democracia de 24 milhões de habitantes. Para citar apenas as democracias liberais, Taiwan é apenas um pouco menor em população do que a Austrália e é maior do que Holanda. Tem três vezes a população da Suíça. Tem mais do que o dobro da população da Bélgica, quase o triplo da da Suécia, de Israel e o quádruplo da população da Dinamarca, da Finlândia e da Noruega. Ultrapassa também mais de quatro vezes as populações da Costa Rica, da Irlanda e da Nova Zelândia.
A população de Taiwan, em sua maioria, aprova o seu regime e quer continuar vivendo nele. A ditadura chinesa, entretanto, não gosta nem um pouco da liberdade em Taiwan, não reconhece sua autonomia e a autodeterminação de seu povo e considera a ilha uma “província rebelde”. Não é possível deixar de comparar a situação atual dos que apoiam a democracia em Taiwan com a Aliança Rebelde contra o Império Galáctico de Star Wars. Xi Jinping é o atual imperador Sheev Palpatine (Darth Sidious) – na imagem que ilustra este artigo.
Taiwan é uma próspera democracia liberal, bem colocada nos TOP20 de todos os rankings de democracia. Taiwan é a oitava democracia liberal no ranking da The Economist Intelligence Unit, a décima-nona colocada no ranking da Freedom House e a trigésima-segunda no ranking da Liberal Democracy Index do V-Dem.
Pouco importa se a ditadura da China acha que Taiwan é uma “província rebelde”. Alguns de nossos analistas, intoxicados pelo realismo político, não percebem isso. Se as democracias liberais não a defenderem, Taiwan desparecerá como unidade política independente, tal como ocorreu com Hong Kong. Teremos menos democracia no mundo. É assim que a mancha i-liberal vai avançando e as trevas vão cobrindo a Terra.
Taiwan não ataca a China. Mas a cruel ditadura chinesa quer isolá-la do mundo para, em seguida, anexá-la. O mais incrível é que, para tanto, a ditadura chinesa conte com o apoio internacional dos populistas de esquerda (como os lulopetistas, os orteguistas, os maduristas e os evoistas) e das ditaduras mundo a fora.
Alegam-se razões diplomáticas, comerciais ou de conveniência geopolítica, para impedir as democracias liberais de defender Taiwan.
Ora, uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa: para continuar conversando com a China, dela comprar e para ela vender, participar de acordos comerciais, tecnológicos e ambientais com aquele país, não precisamos:
a) fechar os olhos para as violações de direitos humanos praticados pela ditadura chinesa,
b) muito menos apoiar suas intenções expansionistas e intervencionistas em relação ao mar da China e Taiwan.
É possível fazer isso sem esconder que a China não é um Estado democrático de direito.
Essa ambiguidade diplomática – tão alegada para condenar a política externa de Biden – não é decisão estratégica e sim contingência de uma política internacional que não foi civilizada pela democracia.
Se, para vender grãos para China, temos de concordar, sem dar um pio, que Taiwan seja anexada pelo império de Xi Jinping, violamos nossa própria democracia.
Diz-se que o momento escolhido por Pelosi para visitar Taiwan não foi bom. Mas quando seria um bom momento? A ditadura chinesa abre uma crise toda vez que se esboça alguma aproximação de Taiwan com as democracias liberais. Não precisa nem visitar a ilha. Basta que um governante de Taiwan visite um país livre. É um deus nos acuda!
A questão democrática não é sobre se era conveniente diplomaticamente os EUA irem à Taiwan neste momento. Provavelmente, em termos diplomáticos, não era conveniente (até para não provocar a China a fornecer, em retaliação, armas a Putin para tomar a Ucrânia). Mas Pelosi não é chefe de Estado. É uma senhora de 82 anos, presidente da Câmara dos Representantes, que não ameaçou a China em nada. E lá nos EUA o parlamento não tem que obedecer ao governo, são poderes independentes – e tanto é assim que Biden não queria que ela fosse.
E depois, quem são os EUA? Uma presidente da Câmara dos Representantes representa, nas democracias representativas, a sociedade, não o aparelho de Estado – a quem cabe avaliar questões de guerra, como o são as conveniências geopolíticas. Aliás, o Senado dos EUA aprovou na semana passada, por 95 X 1, a adesão de Finlândia e Suécia à OTAN. Os 30 membros da organização já haviam assinado o protocolo de adesão. Só falta agora nossos analistas dizerem que duas das principais democracias liberais do mundo estão erradas porque estão provocando a ditadura russa.
E, por último, quem é a China? Apenas o Partido-Estado chinês? E a sociedade chinesa, não existe? É um dominium (no sentido feudal mesmo do termo) do Estado? De qualquer modo, se for assim, os democratas não podem esconder que o Estado chinês, seu governo e suas leis não são legítimos do ponto de vista da democracia. Ainda que os ditadores chineses queiram inventar um outro conceito – falsificado – de democracia, onde não vigem direitos políticos e liberdades civis. Se os democratas não dizerem isso, quem vai dizê-lo?
Ficar buscando as razões pelas quais as tiranias se comportam como tiranias – em geral, para os realistas, por culpa de alguma democracia, que as provocou querendo ou não – é apoiar, objetivamente, as tiranias.
A impressão que dá é que nossos analistas políticos, contaminados pelo realismo, estão loucos para entregar os “Sudetos” de Taiwan ao PCC (中國共產黨). Esperam com isso que ele não pare de comprar nossos grãos, que não apoie Putin na tomada da Ucrânia, que não entre no bloco das ditaduras contra as democracias liberais. Para a democracia, esse é o caminho da desonra que levará, de qualquer jeito, à segunda guerra fria.
Faltam critérios democráticos a nossos analistas. Sugiro alguns. Entre uma democracia e uma autocracia, fique sempre com a democracia. Entre uma democracia liberal e uma democracia eleitoral, fique sempre com a democracia liberal. Entre uma democracia eleitoral e uma autocracia eleitoral, fique sempre com a democracia eleitoral. Se observassem esses critérios, nossos analistas não teriam se deixado infectar.