Tem que ter paciência de Jó para explicar toda vez a mesma coisa, mas vamos lá.
Bolsonaro tinha de sair do governo, ou seja, não poderia ser reeleito porque estava colocando em risco a própria democracia eleitoral.
É claro que Lula impede que viremos uma democracia liberal, porém não impede que continuemos a ser uma democracia eleitoral. São coisas distintas. Democracia liberal não é a mesma coisa que democracia eleitoral. Para entender a diferença deve-se ler o paper de Lührmann-Tannenberg-Lindberg (2018) do V-Dem Institute: Regimes of the World (ROW): Opening new avenues for the comparative study of political regimes.
Sem democracia eleitoral viraríamos uma autocracia eleitoral (seguindo, pela extrema-direita, o caminho da Hungria, da Turquia, da Índia e da Rússia). E com Lula a chance disso acontecer é mínima no curto prazo, ou seja, durante Lula 3 o nosso regime não vai virar uma autocracia eleitoral de esquerda (como Venezuela, Nicarágua ou Angola). O mais provável é que continuemos sendo uma democracia eleitoral parasitada pelo neopopulismo lulopetista, uma variedade do populismo de esquerda que surgiu no século 21 na América Latina (como Bolívia, Argentina, Colômbia ou México).
Por isso, entre Bolsonaro e Lula, a saída democrática era, objetivamente, Lula. Isso não quer dizer que, subjetivamente, Lula tenha se convertido à democracia liberal. Democracia, para ele, é soberania popular (na prática, predomínio do líder populista), regime eleitoral e cidadania. Nada há aí de liberal.
Para o lulopetismo o objetivo não é mais-democracia. E sim conquistar soberania para entregar mais-cidadania para “o povo” a partir do Estado. E se já há cidadania, pra quê democracia? É a fórmula de Cuba, ao ver de Lula (tem vídeo gravado). É a fórmula que ele quer para o Brasil.
Eis o vídeo:
Degravando o que Lula falou no vídeo:
“O único país que conseguiu dar um salto foi Cuba. Eles resolveram o problema da dignidade, eles resolveram o problema da cidadania… Fora de Cuba qual foi outro país que resolveu os seus problemas?”
Recentemente, em entrevista à CNN (16/02/2023), Lula falou que o PT é o único partido de verdade. Todos os outros seriam apenas cooperativas de deputados (ou de candidatos). Não aliviou nem mesmo para os partidos sabujos satelizados pelo PT – como PSOL, Rede, PV, PCdoB, PSB e PDT. Na cabeça dele esses partidos devem fazer parte de um “PT ampliado”.
Pelas suas falas e subfalas é lícito inferir o seguinte. Lula gostaria que o PT fosse um partido único e que toda a população fosse simpatizante do partido. Embora Lula não seja um autocrata e sim um democrata eleitoral não-liberal, é possível reconhecer nesse desejo traços de um DNA totalitário.
A despeito disso, ou seja, apesar de Lula sonhar com isso, durante o mandato Lula 3 não há condições objetivas de dar um cavalo de pau no nosso regime político, convertendo-o em uma autocracia. Num eventual governo Bolsonaro 2 esse risco era mais iminente.
Bolsonaro sempre foi um oportunista eleitoreiro que, diante de uma conjunção particularíssima de fatores, acabou sendo a expressão reacionária de uma mistura disforme de tendências antidemocráticas presentes na sociedade brasileira.
Dois grandes grupos de tendências podem ser considerados aqui:
a) tendências conservadoras ou regressivas remanescentes (nacionalistas-militaristas, religiosas-tradicionalistas ou fundamentalistas etc.);
b) tendências reativas emergentes (antiglobalistas e anticomunistas e, no caso brasileiro, de pessoas e setores revoltados com o petismo ou com o neopopulismo de esquerda florescente na AL a partir do início do século; e moralistas-punitivistas – como o lavajatismo).
Não havia uma teoria para justificar a formação de uma força política (ou de um movimento) bolsonarista tendo como base uma junção tão díspar de tendências.
O olavismo, uma versão brasileira do populismo-autoritário de extrema-direita (na linha bannonista), florescente no mundo segunda década do século 21, parasitou essa mistura de tendências antidemocráticas e tentou dar uma direção intelectual ao movimento (sem pleno sucesso).
O bolsonarismo se formou, objetivamente, como um movimento revolucionário para trás, tendo como caminho único vencer eleições para, a partir do Estado, mudar o regime democrático por meio de uma sequência de mudanças institucionais antidemocráticas ou de um golpe de força.
O objetivo, como já foi dito, era converter nossa democracia eleitoral em uma autocracia eleitoral. Por isso Bolsonaro não poderia ser reeleito.
Elegendo seu representante (Jair Messias Bolsonaro), os bolsonaristas – diante da resistência das instituições democráticas à sua alteração legal – esperavam autorizá-lo a dar um golpe de Estado: uma insurreição popular apoiada por setores militares e policiais. Foi o que tentaram no dia 8 de janeiro de 2022, sem as mínimas chances de sucesso, é claro. Mas foi o que tentaram.
O golpe bolsonarista fracassou, seja porque Bolsonaro não foi reeleito para dar seguimento ao processo continuado de erosão institucional, seja por falta de força político-militar para uma ruptura revolucionária-reacionária do nosso regime democrático eleitoral.
Mas a insatisfação com a corrupção na política (que serviu de mote à cruzada de limpeza ética do lavajatismo jacobino de terra-arrasada) e a insatisfação com o neopopulismo de esquerda (representado pelo petismo) continuam presentes em dezenas de milhões de brasileiros.
Isso significa que, do ponto de vista da democracia liberal, Lula não foi uma alternativa. Foi uma falta de alternativa. Mas já que do outro lado estava Bolsonaro, a saída democrática foi votar nele, Lula, assim como seria votar em qualquer um, até em um Sergio Cabral ou em um Eduardo Cunha.
Então os bolsonaristas – além de tudo burros – têm de parar de dizer “FAZ O L”, como se os democratas que votaram em Lula dele esperassem alguma coisa. Como se os democratas que votaram em Lula estivessem iludidos com o caráter político de Lula. Como se os democratas que votaram em Lula não soubessem exatamente o que estavam fazendo.
Então os bolsonaristas devem parar com essa conversa de que Bolsonaro é um player válido da democracia. Não é. Deveria ter sido cassado quando ainda deputado. Eleito presidente, deveria ter sofrido impeachment. Perdida a reeleição deve ficar inelegível e ser condenado (observando-se o devido processo legal). O antipetismo ficou tão forte que as pessoas esqueceram que Bolsonaro propôs fuzilar 30 mil (inclusive FHC), elogiou um torturador, disse que o erro da ditadura foi não ter matado mais opositores. É claro que só houve esse avassalador antipetismo porque houve petismo. O diabo é que o comportamento que chamamos de petismo continua, insuflado por ninguém menos do que Luis Inácio Lula da Silva.
Assim, o problema para os democratas é enorme nesta quadra. A coisa mais difícil do mundo será fazer oposição democrática em 2023. Os governistas vão desqualificar quem o fizer chamando-o de bolsonarista. Os bolsonaristas vão tentar pegar uma carona em qualquer oposição ao governo Lula para dizer que seu mito tinha razão. Mesmo assim, é preciso continuar. Não há democracia sem oposição democrática.