Pluralidade social não substitui a pluralidade política
O Antagonista (07/01/2023)
Estão confundindo tudo. É bom ter pluralidade de gênero, orientação sexual, raça, etnia ou cor, condição física ou psíquica etc. mas essa pluralidade social não significa pluralidade política. Uma frente democrática não pode ser só uma frente de esquerda com mulheres de esquerda, pretos de esquerda, gays de esquerda, índios de esquerda, portadores de diferenças de esquerda.
Os que agora querem valorizar as minorias sociais (na onda do identitarismo), não adotam a mesma postura em relação às minorias políticas. Os identitaristas, em geral, admitem a diversidade e a pluralidade social, mas não a diversidade e a pluralidade política.
Em qualquer lugar defendem a presença de representantes de mulheres e da chamada comunidade LGBTQIA+, de pretos, de indígenas ou de povos originários e de portadores de deficiências, mas desde que estejam alinhados ao mesmo campo ideológico. Se estiverem no campo ideológico oposto (considerado inimigo pelos populistas), não! Neste caso, é melhor que não pontifiquem. Ora, não adianta incluir minorias sociais se continuamos excluindo minorias políticas democráticas.
Democracia não é a mesma coisa que cidadania. Democracia pressupõe pluralidade e diversidade política. Isso não pode ser substituído por pluralidade e diversidade social, que é importante, mas tem a ver mais propriamente com cidadania.
É desejável que o processo de democratização crie condições para a universalização da cidadania. Mas uma cidadania universalizada e inclusiva não pode ser precondição para o exercício da democracia. Se fosse assim nenhuma democracia teria nascido. A primeira democracia, dos antigos atenienses, nasceu numa sociedade com escravos. A democracia foi reinventada pelos modernos, nas suas variantes inglesa, americana e francesa, em sociedades com pouca pluralidade e diversidade social e onde a cidadania era restrita.
Hoje a democracia já está mais universalizada nesses países e no mundo em geral. Mas se os inventores e reinventores da democracia ficassem esperando a universalização da cidadania para experimentar a democracia, jamais teríamos ouvido a palavra democracia.
Em termos práticos, se incluímos uma mulher de esquerda, um preto de esquerda, um gay de esquerda, um indígena de esquerda etc., isso é melhor do que não incluir, mas não é pluralidade e diversidade política. Assim, entretanto, foi composto o ministério de Lula que, na falta de pluralidade e diversidade política (pois, tirando os fisiológicos alugados para fazer maioria no Congresso, só tem dois capturados fora do campo da esquerda – Alckmin e Simone) povoou seu plantel com “representantes” das minorias sociais (até a representante dos povos originários é do… PSOL).
Há uma reengenharia ideológica em curso nesses movimentos. O populismo de esquerda está promovendo uma alteração do significado (na intenção e na extensão do conceito) de democracia. A palavra está sendo usada para designar cidadania (para o povo) e soberania (do povo). E ‘povo’, aqui, não significa população, nem é um conceito sociológico e sim político-ideológico: é o contingente que (seguindo o líder populista) se opõe às elites (contra as quais luta o líder populista).
A palavra ‘povo’ usada e abusada pelos populistas, tem origens suspeitíssimas. Hannah Arendt (c. 1950) nos seus fragmentos póstumos sobre o O que é política? escreveu:
“No caso dos romanos a política começou como política externa; portanto, exatamente com aquilo que, segundo o pensamento grego, estava situado fora de toda a política. Também para os romanos o âmbito político só podia surgir e existir dentro da coisa legal; mas esse âmbito surgia e se multiplicava ali onde diferentes povos se encontravam entre si. Esse encontro é guerreiro, e a palavra latina populus significava originalmente “mobilização para o exército” (Altheim), mas essa guerra não é o fim, porém o começo da política, ou seja, de um espaço político novo, surgido do tratado de paz e de aliança”.
Em geral diz-se que a palavra ‘democracia’ significa ‘poder do povo’. Mas o ‘demos‘ – que compõe a palavra ‘democracia’: o poder (‘cratos’) do ‘demos’ – se referia originalmente aos distritos implantados a partir da reforma de Clístenes (508 a.C.). Sim, foi uma reforma distrital, que substitiu o poder do ‘genos‘ (os aglomerados das grandes famílias da aristocracia fundiária) pelo poder do ‘demos‘ (as novas circunscrições que agregavam pessoas por base territorial, sem ordem de filiação). Na democracia ateniense não havia esse conceito (populista) de ‘povo’ para designar a parte da população que vivia em piores condições socioeconômicas.
Na sua cerimônia de diplomação (em 12/12/2022) Lula afirmou. “A democracia só tem sentido, e será defendida pelo povo, na medida em que promover, de fato, a igualdade de direitos e oportunidades para todos e todas, independentemente de classe social, cor, crença religiosa ou orientação sexual”.
E na sua entrevista ao jornal El País (em 20/11/2021) Lula respondeu. “Os democratas precisam aprender que a democracia é uma coisa séria. O povo não quer uma democracia para gritar que está desempregado; ele quer trabalho. Não quer democracia para gritar que está com fome; quer comer. O povo não gosta da democracia para dizer que não tem possibilidade de estudar; ele tem que estudar. E a democracia precisa garantir esses direitos. Na verdade, a democracia falhou em muitos lugares”.
Nesta resposta encontramos o núcleo da concepção de democracia de Lula. Em outras palavras – e em síntese – ele disse que a democracia não faz sentido se o povo passa fome. É a concepção da esquerda, segundo a qual a igualdade (socioeconômica) é precondição para a liberdade (política). Ademais, Lula acha que a democracia tem o dever de dar “casa, comida e roupa lavada” para o povo. É uma concepção claramente populista (porque caberá a alguem dar isso para o povo: o líder populista).
A igualdade (ou a redução das desigualdades) é desejável, mas – como já foi dito acima – se a democracia dependesse disso não teria sido inventada numa economia (em parte) escravista, em Atenas, na passagem do século 6 para o século 5 a.C. Se as pessoas não tiverem a liberdade de empreender esforços individuais e coletivos para melhorar suas condições de vida, quem deveria fazer isso? A resposta é óbvia: o líder populista, preparado (por quem, por Deus?) para conduzir o povo em direção a uma condição em que, aí então, a democracia faria sentido.
Essa é uma discussão resolvida por Amartya Sen nos anos 70. Quando perguntado se alguns povos estavam ou não preparados para a democracia, ele respondeu que a pergunta não tinha sentido na medida em que todos os povos se preparam “através da democracia”. A democracia é meio e fim. No que tange à igualdade (ou à redução das desigualdades) o que a democracia faz é permitir (mudando os padrões de convivência social) que as pessoas – caminhando com suas próprias pernas – possam dispender esforços para melhorar as suas condições de vida.
Pior do que isso, entretanto, é interpretar a democracia como soberania popular. Imaginando que democracia seja, fundamentalmente, soberania popular, o populismo de esquerda faz um raciocínio simples, primário e incorreto: se nós somos os legítimos (ou mais legítimos) representantes do povo, o “verdadeiro povo” (the true people – composto pelos que seguem o líder), então nós somos a verdadeira democracia (traduzida como uma sociedade menos desigualitária e mais justa). Ou melhor, uma sociedade menos desigualitária e mais justa só poderá se estabelecer quando nós hegemonizarmos todos os processos da vida social, a começar pelas instituições estatais, passando pelos corporações sindicais e movimento sociais, até chegar às diversas formas primárias de sociabilidade.
Mas a democracia não é o poder de um (monarquia), dos melhores (aristocracia), de uma minoria (oligarquia), da maioria ou de todos (majoritarismo e tirania da maioria) e sim o poder de qualquer um. Como notou Jacques Rancière (2005), no seu magistral opusculo O ódio à democracia, isso quer dizer: “a indiferença das capacidades para ocupar as posições de governante ou de governado”.
Nas diretrizes redigidas pela direção do PT para o programa Lula (divulgadas em junho de 2022), a palavra soberania aparece 13 vezes (mais do que a palavra democracia – que, quando aparece, não raro vem junta com a palavra soberania).
Na cabeça de cada populista encontra-se o gérmen dessa ideia de raiz autocrática: a ideia de soberania. Entretanto, para a democracia nenhuma pessoa, nenhuma parcela da população (nem mesmo a abstração chamada ‘o povo’ para se referir aos mais pobres ou à maioria), nenhum governo, nenhum partido, podem ser soberanos. Só a lei (democraticamente aprovada) pode ser soberana.
A guerra contra o terror no Brasil
O Antagonista (14/01/2023)
Jair Bolsonaro, ainda candidato e a duas semanas do pleito de 2018, falou para seus seguidores reunidos na avenida Paulista (não é fake, está gravado em vídeo):
“Bandidos do MST [Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra], bandidos do MTST [Movimento dos Trabalhadores Sem Teto], as ações de vocês serão tipificadas como terrorismo. Ou vocês se enquadram e se submetem às leis ou vão fazer companhia ao cachaceiro lá em Curitiba [Lula]”.
Aí está um exemplo de como o conceito de terrorismo pode ser instrumentalizado a favor de uma força política. Hoje o MST e o MTST – assim como o PT e suas tendências internas (e externas, como a Globo News) – não hesitam em classificar as manifestações golpistas dos vândalos do dia 8 de janeiro de 2023 como terrorismo.
Nos dois casos é falso.
O que foi o 8 de janeiro? Foi uma manifestação antidemocrática desesperada (do tipo “é agora ou nunca”) que dificilmente levaria, por si só, a um golpe de Estado à moda antiga, como alguns estão dizendo. Os manifestantes não tinham força político-militar para tanto.
A temperança democrática recomenda que os responsáveis devem ser punidos normalmente pelo Estado democrático de direito, observando-se sempre o devido processo legal e não procedimentos de exceção (e, por isso, precisamos parar com essa besteira de “punição exemplar”). Os atos golpistas também não devem ser aproveitados como pretexto para, como estão propagando dirigentes de partidos de esquerda, “derrotar o golpismo nas ruas”, pois isso significaria manter um estado de guerra faccional que não interessa a ninguém, muito menos à democracia. O assunto não pode ser tratado como uma luta da extrema-direita contra a esquerda ou vice-versa e sim como um ataque ao regime democrático e contra suas instituições (independentemente de quem ocupa essas instituições no momento).
O fato é que as sedes das mais importantes instituições da democracia foram depredadas e quem agiu concretamente, apoiou logística ou financeiramente, arquitetou e conclamou a delinquência, deve ser identificado, processado e, quando for o caso, apenado.
O que é quase inexplicável é a incapacidade do Estado brasileiro de agir preventivamente para evitar desfecho tão humilhante. Sabia-se que esse tipo de cópia da invasão do Capitólio americano estava sendo preparada há muito em grupos de WhatsApp e Telegram. Sabia-se que ônibus chegariam à Brasília trazendo milhares de potenciais insurretos. Por que se deixou que manifestantes facilmente identificáveis entrassem na esplanada e caminhassem (sem qualquer tipo de barreira, revista ou triagem) em direção às sedes dos poderes? Quem abriu a porta do Palácio do Planalto? Essas responsabilidades, do governo do Distrito Federal e, inclusive, do governo Federal, também devem ser apuradas.
Os vândalos golpistas identificados devem responder por crimes de associação criminosa, atentado contra o Estado Democrático de Direito, golpe de Estado, perseguição e incitação ao crime. Está certo. E terrorismo? Neste caso, não entra. É mais uma narrativa política, como a de Bolsonaro.
Mas não há também algum terrorismo? Há. O tipo político-penal, entretanto, não se aplica a todos os crimes que foram cometidos. Dois casos sim, um não. Sim, destruição de torres de transmissão de energia na última semana. “Há indícios de vandalismo”, disse boletim da Aneel. Está errado. Se for confirmada motivação política é terrorismo. Sim, o mesmo vale para tentativa de explodir caminhão de combustível próximo ao Aeroporto de Brasília no final de dezembro. Flávio Dino falou em extremismo. Mas é terrorismo.Não, acampamentos diante de instalações militares pedindo intervenção militar e invasão e depredação de prédios públicos: é crime, mas, em geral, não é terrorismo e sim golpismo e vandalismo.
Dito isso, é necessário aprofundar a análise.
Pesquisa AtlasIntel, divulgada há alguns dias, mostra que 51,1% dos brasileiros aprovam o desempenho de Lula. Queiramos ou não, isso revela um país dividido. É muito pouco para um líder populista querer impor, no curto prazo, a hegemonia inconteste da sua facção de esquerda. Todavia, uma campanha de cerco e aniquilamento dos bolsonaristas, desumanizados como terroristas, é um prato cheio para o avanço da esquerda, mas pode não ser o melhor caminho para turbinar a popularidade de Lula.
O caminho da pacificação (política, nada de anistia jurídica) seria melhor, mas exigiria uma frente ampla de verdade (o que não há no governo, mas pelo menos deveria haver em defesa da democracia na sociedade) e a aceitação e valorização das oposições democráticas que surgissem.
O PT, entretanto, não quer isso. Está no modo revanche e quer defenestrar da cena pública quem não pertence à frente de esquerda no poder ou não se ajoelha diante do governismo. Na sua fixação para ser uma espécie de Mandela, seria Lula capaz de mudar essa cultura hegemonista construída, camada sobre camada, durante 40 anos?
Entenda-se bem. A justiça deve fazer o seu trabalho e punir todos os criminosos. Mas o nosso tema aqui é a política. Do ponto de vista da política, a vibe dos vencedores é a de revanche. E isso não é bom para a democracia porque prorroga um estado de guerra (ainda que fria).
Talvez alguns esperem que o 8 de janeiro de 2023 cumpra, para Lula, papel semelhante ao que o 11 de setembro de 2001 cumpriu para Bush: forçar todo o sistema político a apoiá-lo. Igualar os vândalos golpistas de Brasília aos terroristas que derrubaram o World Trade Center revela a intenção de surfar nessa onda (e os democratas só esperam que isso não gere nada parecido com um USA Patriot Act).
Há outro paralelo mais óbvio, porém. A invasão do Capitólio dos EUA em 6 de janeiro de 2021, em que golpistas americanos, convocados e insuflados por Donald Trump, tentaram impedir a ratificação da vitória de Joe Biden, mas isso não canonizou o democrata americano, como aqui imaginam que aconteça com Lula os seus seguidores e a imprensa chapa-branca, que logo se concertou para classificar como terroristas – semelhantes aos do Isis ou da Al Qaeda – os manifestantes golpistas de Brasília. Há algo muito errado nisso tudo.
Quando você carimba uma pessoa de terrorista, não há mais espaço para a conversa e, portanto, para a política. Com terroristas não se negocia. Por isso é preciso tomar todo cuidado com as generalizações. Só terroristas devem ser chamados de terroristas. A tiazinha do zap e o aposentado do pavê que foram acarreados de Copacabana ou da Vila Maria para as manifestações golpistas em Brasília não podem ser classificados com os mesmos critérios usados para caracterizar Abu Bakr al-Baghdadi (Isis) ou Abubakar Shekau (Boko Haram) como terroristas. Pessoas insufladas a participar de atos golpistas, com ou sem vandalismo, não são necessariamente terroristas. Pior do que isso será xingar de terroristas os simpatizantes de Bolsonaro ou os seus eleitores, mesmo os que só votaram nele para impedir a volta do PT ao governo. Se fizermos isso retiraremos a capacidade da democracia de metabolizar as forças que não são democráticas (mas que compreendem desde extremistas que querem abolir o regime de modo violento, até os pacíficos inconformados e os ressentidos contrariados com a vitória de Lula). A democracia convive com pessoas que não concordam com a democracia, que falem contra a democracia, que até façam manifestações contra a democracia, desde que não atentem contra o Estado de direito ou não violem as leis.
A defesa do Estado democrático de direito contra violadores das leis é policial e judicial, não bélica. A democracia não é guerra e sim evitar a guerra. Sem guerra quente. Sem guerra fria. E sem política como continuação da guerra por outros meios. Quem inventou a ideia antidemocrática de “inimigo interno” foi a doutrina de segurança nacional dos ditadores militares e não deixa de ser irônico que setores da esquerda estejam agora querendo reintroduzir essa noção autocrática.
É explicável por que muitos intelectuais de esquerda, inclusive pesquisadores da extrema-direita, acabem sucumbindo ao apelo da guerra e se afastando da política democrática. Acham que se trata de montar uma força para exterminar a extrema-direita, uma espécie de Comando de Caça aos Fascistas (ou aos Terroristas). Mas a guerra contra o terror (real ou imaginário) é uma armadilha. Porque, de toda sorte, alimenta a guerra (que, repita-se, é sempre a falência da política). Sim, o estado de guerra prolongado acaba derruindo ou retirando qualidade da democracia. Pelo contrário, é necessário desconstituir a guerra, criar um ambiente de pacificação que isole os grupos extremistas e confine-os nas fronteiras do espectro político onde, então, podem ser mais facilmente metabolizados pela democracia.
Os intelectuais de esquerda radicalizados se alvoroçam e não querem nem ouvir falar em pacificação, que confudem maldosamente com anistia para Bolsonaro e os demais envolvidos nos crimes. O pesquisador Miguel Lago, segundo a Folha (de 13/01), resume tudo ao dizer que há uma “chance única de união da classe política e da sociedade civil não bolsonarista em torno de Lula”. Ora, por que em torno de Lula? A união deve ser em defesa da democracia, congregando os governistas que apoiam Lula e os que a ele se opõem democraticamente. Ser contra o golpismo e o vandalismo (e, obviamente, contra o terrorismo, nos casos reais de terrorismo) não significa ser a favor do petismo.
Lago não está sozinho nesse juízo, mas tem lá suas visões particulares. Ele acha que existe populismo do bem e queria que Lula fosse uma espécie de reencarnação de Getúlio: todo mundo mesmerizado pelo condottieri. Articulações de organizações não-governamentais governistas para cassar parlamentares eleitos bolsonaristas (antes até do início da legislatura) estão a todo vapor. A esquerda populista está querendo começar uma caça às bruxas. Dizem que é preciso aproveitar a força do momento para cortar a cabeça do monstro. Lula, como foi dito, dando uma de Bush, vai querer turbinar sua popularidade na base da guerra contra o terror?
Para os petistas hegemonistas, toda essa conversa sobre defesa da democracia, combate ao terrorismo, prisão dos fascistas, tudo isso sempre foi, na verdade, sobre Lula. O objetivo é transformar Lula num Mandela para depois viver mil anos no Reich construído sob sua sombra? Se for isso, aqui se vê que os perigos para a nossa democracia não vêm só da extrema-direita.
Por que o Brasil, sob Lula, não será uma democracia liberal
Crusoé (20/01/2023)
O regime político brasileiro era uma democracia quando Lula 1 e 2 assumiu. Continuou sendo uma democracia quando Dilma 1 e 2 assumiu. Idem quando Temer assumiu. Idem-idem quando Bolsonaro assumiu. E continua sendo uma democracia com Lula 3. Sempre, porém, uma democracia eleitoral, não liberal.
Afastado o perigo bolsonarista de transformar nossa democracia eleitoral em uma autocracia eleitoral – sim, esse perigo era iminente com a reeleição de Bolsonaro – estamos diante de novo desafio. Sob o domínio do lulopetismo nossa democracia (apenas) eleitoral jamais virará uma democracia liberal.
(Um parêntesis. Falar em democracia liberal ficou difícil no Brasil. Confunde-se a palavra liberal com liberalismo-econômico ou neoliberalismo. E sobretudo, não se entende que a democracia liberal é medida por uma visão negativa do poder político: não pela capacidade de um governo de se impor à sociedade e sim pela capacidade da sociedade de controlar o governo.)
As razões pelas quais não viraremos uma democracia liberal sob o domínio lulopetista, a esta altura, são quase-óbvias (para quem não adotou a postura cínica de tapar voluntariamente os olhos). A força política no poder: acha que tem o dever de reescrever a história (e está instalando, aos poucos, uma espécie Ministério da Verdade orwelliano); estimula a prática da política como continuação da guerra por outros meios (na base do “nós x eles”) e tem um comportamento hegemonista; quer (e até agora vem conseguindo) uma imprensa chapa-branca (com a participação, inédita, de grandes meios de comunicação profissionais); incentiva o culto à personalidade de um líder sem muita noção de democracia, que tem uma visão excessivamente positiva do poder político (democracia como governo e não como controlar o governo), uma visão econômica desenvolvimentista e estatista (o Estado como o principal promotor do desenvolvimento e educador da sociedade) e uma visão de política externa de um mundo que não existe mais.
Como é impossível, num só artigo, comentar todos esses pontos, vamos tratar aqui apenas dos mais escandalosos.
Ministério da Verdade
Neste exato momento a história está sendo reescrita por uma espécie de Miniver orwelliano.
Não se fala mais em mensalão. É como se não tivesse existido, embora Lula tenha confessado que sim, existiu, em entrevistas na Granja do Torto e em Paris no final de 2005, confundido-o porém espertamente com caixa 2 de campanha, “que todo mundo faz” (versão falsa urdida pelos falecidos Thomaz Bastos e Arnaldo Malheiros).
Não se fala mais em petrolão. O PT nada teve a ver com aquele mega esquema de corrupção, apesar da montanha de evidências (e da devolução de vultosos valores pelos criminosos).
Não se fala em aparelhamento do Estado por militantes petistas. Embora haja relatórios muito precisos sobre isso. O governo Lula I criou mais de um cargo público por hora. Foram 37.543 cargos entre janeiro de 2003 e fevereiro de 2006. Dividindo sucessivamente por 38 meses, por 30 dias e por 24 horas, dá o total de 1,37 cargos por hora, representando uma despesa extra de 625 milhões por ano. Levantamentos feitos durante o primeiro mandato de Lula provaram que o grau de infestação ultrapassou todos os limites do bom senso (e. g., cerca de 90% dos cargos de direção do Ministério das Cidades sob o comando de Olívio Dutra, estavam, na época, nas mãos de petistas).
Não se fala da rede suja de sites e blogs petistas, que introduziram, pela primeira vez, as fake news no debate público brasileiro. É como se nunca tivessem existido veículos, não raro financiados por dinheiro público ou propaganda de estatais, emissores de notícias fraudulentas. Alguns exemplos (dos que já existiam em 2014): Brasil 247, Opera Mundi, Correio do Brasil, Revista Forum, Carta Capital, Pragmatismo Político, O Cafezinho, Viomundo, Brasil de Fato, Diário do Centro do Mundo, Conversa Afiada, GGN, Caros Amigos, Plantão Brasil, Tijolaço, Mídia Ninja, Outras Palavras, Carta Maior.
Não se fala da responsabilidade do PT na introdução do “nós” contra “eles” na luta política, quer dizer, da visão populista de que a sociedade está vincada por uma única clivagem “povo” x “elites”, sendo que ‘povo’, aqui, não é um conceito sociológico e sim político-ideológico (o “verdadeiro povo” é composto pelos que seguem o líder populista).
Não se fala do apoio do PT às ditaduras cubana, angolana, venezuelana e nicaraguense. Inventa-se, então, que o PT é socialdemocrata para esconder o seu caráter neopopulista de esquerda (tal como seus aliados históricos estratégicos Chávez e Maduro, Ortega, Evo, Correa, Lugo, Funes).
Diz-se que o PT nunca quis controlar a mídia (inventando a versão de que o partido defendia um tipo de regulação democrática como a que vigora no Reino Unido ou que o PT quer regular as mídias sociais – que nem existiam na ocasião em que essa bandeira começou a ser agitada).
Pela fragilidade das provas da Lava Jato, tenta-se dizer que o sítio de Atibaia não era de Lula (embora todo mundo soubesse que era de Lula, ocupado regularmente por ele, ainda que não estivesse formalmente em seu nome). Ora, os bens de Putin também não estão em seu nome.
Tenta-se dizer que Lula nunca se interessou pelo triplex de Guarujá (ainda que não o tivesse comprado de papel passado, pois ficou registrado em nome da OAS). Para não falar do empreendimento fraudulento da Bancoop, que está na raiz de tudo, dirigido por Berzoini e Vacccari.
Repete-se, repete-se e repete-se, diariamente, que não há provas contra Lula e que tanto é assim que seus processos foram anulados. Como se ele tivesse sido absolvido pela justiça e como se os atropelos de Moro, Deltan e Cia. inocentassem Lula.
Por último, insiste-se na tese, falsa, de que o processo constitucional do impeachment de Dilma foi um golpe (e isso foi agora até publicado em site oficial do governo brasileiro). Ora, se o impeachment foi golpe, chegou a hora de processar os golpistas. Quem são? As mesas da Câmara e do Senado em 2016? A imensa maioria dos deputados e senadores que votaram a favor do impedimento? O Supremo Tribunal Federal, que presidiu o processo no Senado? Se a hora é a de fazer valer a força da lei e do Estado de direito, denunciar oficialmente um golpe e não tomar nenhuma medida para punir os golpistas é, no mínimo, prevaricar.
A visão de democracia do líder
Lula tem repetido que democracia é comida no prato do pobre. Embora isso seja desejável (e necessário), a democracia liberal é o regime em que as pessoas, caminhando com suas próprias pernas, possam conquistar seus recursos sobrevivenciais do seu jeito em vez de ficarem de boca aberta para cima esperando as dádivas de um líder provedor.
Na sua entrevista ao jornal El País (de 20/11/2021), Lula teve a coragem de dizer:
“Os democratas precisam aprender que a democracia é uma coisa séria. O povo não quer uma democracia para gritar que está desempregado; ele quer trabalho. Não quer democracia para gritar que está com fome; quer comer. O povo não gosta da democracia para dizer que não tem possibilidade de estudar; ele tem que estudar. E a democracia precisa garantir esses direitos. Na verdade, a democracia falhou em muitos lugares”.
Há aqui uma confusão deliberada entre a democracia e o papel dos governos. Governos populistas podem bravatear que vão dar “casa, comida e roupa lavada” para todos (em especial para os pobres). Isso, porém, não é função da democracia. Democracia não pode ser reduzida à comida na mesa. Os chineses têm hoje mais comida na mesa do que tinham anteontem. As populações atuais de Singapura e do sultanato de Brunei nem sabem mais o que é fome. E todos esses regimes são ditaduras (autocracias fechadas ou eleitorais).
O fato é que o populismo de esquerda está alterando o significado da palavra democracia para que ela passe a designar cidadania. A ideia é colocar a universalização da cidadania como pré-condição para uma verdadeira democracia. Mas se fosse assim jamais teríamos ouvido a palavra democracia. E se fosse assim só teríamos “verdadeira democracia” num futuro reino da abundância (ou seja, nunca – a não ser nas mentes infectadas pelas distopias igualitaristas).
Não é de hoje que Lula tem dificuldade de ententer o que é democracia.
No dia 20/4/2005, Lula discursou em um congresso de trabalhadores: “É importante saber o que nós éramos há três anos e o que nós somos agora… O que aconteceu no Brasil… o que aconteceu no Equador, o que aconteceu na Venezuela, que foi já um pouco mais para frente (sic), e o que pode acontecer na evolução política de outros países do continente…”.
No dia 29/9/2005, em outro discurso, este no Palácio do Planalto, disparou: “Eu não sei se a América Latina teve um presidente com as experiências democráticas colocadas em prática na Venezuela. Um presidente que ganha as eleições, faz uma Constituição e propõe um referendo para ele mesmo; faz um referendo e ganha as eleições outra vez. Ninguém pode acusar aquele país de não ter democracia. Poder-se-ia até dizer que tem excesso”.
No dia 7/6/2007, numa entrevista à Folha de São Paulo, na embaixada do Brasil em Berlim, Lula disse: “O fato de ele (Chávez) não renovar a concessão (da RCTV) é tão democrático quanto dar. Não sei por que a diferença entre dois atos democráticos”.
E no dia 14/11/2007, em outra entrevista, no Itamaraty, ele reafirmou: “Podem criticar o Chávez por qualquer outra coisa. Inventem uma coisa para criticar. Agora, por falta de democracia na Venezuela, não é”.
Ora, já se sabia naquela época que a Venezuela caminhava a passos largos para se transformar em uma ditadura (uma autocracia eleitoral) – o que de fato se consumou com a ascensão de Maduro (cuja reeleição foi apoiada por Lula, com vídeo e tudo).
Mas Lula parece não saber direito a diferença entre uma democracia liberal e uma ditadura. Em entrevista ao jornal El País (20/11/2021), ele perguntou: “Por que Angela Merkel pode ficar 16 anos no poder, e Daniel Ortega não? Por que Margaret Thatcher pode ficar 12 anos no poder, e Chávez não?” A fala dispensa comentários.
A visão econômica do lulopetismo
Na área econômica os sinais emitidos por Lula até agora são preocupantes. Citem-se apenas alguns: abolir privatizações em nome da soberania nacional; retomar uma política industrial século 20; julgar teto de gastos como “estupidez”; não entender a conveniência de um Banco Central independente; avaliar responsabilidade fiscal como crueldade dos financistas contra o povo; desprezar o papel das agências reguladoras e desvalorizar marcos regulatórios como os do saneamento e das ferrovias; e, novamente, como não poderia deixar de ser, apostar todas as fichas no Estado como o grande promotor do desenvolvimento.
Mal foi entrando, Lula – estatista que é – já retirou da lista (até então cogitada) de privatizações: os Correios, a Empresa Brasil de Comunicação (EBC), a Dataprev, a Nuclebrás, o Serpro, os imóveis da Conab, a Petrobras, a Pré-Sal Petróleo S.A. – PPSA.
E nesta semana mesmo Lula – demonstrando que não aprendeu nada e não esqueceu nada – reafirmou sua incompreensão sobre a independência do Banco Central. Ele disse que é “uma bobagem” considerar que o presidente de um BC independente faça mais pela economia do que um indicado pelo presidente da República.
Visão anacrônica de política externa
Apesar de tudo que aconteceu na última década, o PT insiste na política externa ideológica do Sul Global.
O sinal mais horroroso é que Lula e o PT, até hoje, se recusaram a apoiar a resistência ucraniana à invasão militar de Putin e as sanções impostas à Rússia. Lula, por tudo que já declarou, não quer essas medidas. Aliás, em entrevista à revista Time (04/05/2022), Lula culpou e acusou Zelensky e os países democráticos (incluse Biden) pela invasão criminosa de Putin à Ucrânia.
“Ele [Zelensky] quis a guerra. Se ele [não] quisesse a guerra, ele teria negociado um pouco mais… Você fica estimulando o cara [Zelensky] e ele fica se achando o máximo. Ele fica se achando o rei da cocada, quando na verdade deveriam ter tido conversa mais séria com ele: ‘Ô, cara, você é um bom artista, você é um bom comediante, mas não vamos fazer uma guerra para você aparecer’.”
Na mesma linha, por tudo que já declarou sobre a China, o novo governo brasileiro não tomará a defesa da democracia liberal de Taiwan (contra as tentativas imperiais de anexação do ditador Xi Jinping).
Parece óbvio que o governo lulopetista também nunca fará uma condenação explícita e inequívoca das ditaduras latinoamericanas de esquerda (como Cuba, Venezuela e Nicarágua) e africanas (como Angola).
Outro sinal negativo é a politização indevida do papel dos BRICs (dominado por grandes autocracias como Rússia, China e Índia), transigindo com o seu uso para combater os supostos imperalismo norte-americano e expansionismo da OTAN. Além disso, ao que tudo indica, tenderá a apoiar a ampliação dos BRICs, inclusive com a entrada da teocracia assassina do Irã.
O governo do PT não vai se alinhar, preferencialmente, à coalizão das democracias liberais (UE, Canadá, USA, Costa Rica, Coréia do Sul, Japão, Austrália, Nova Zelândia etc.) em detrimento do bloco das ditaduras (Rússia, China, Índia, Irã, Síria, Cuba, Venezuela, Nicarágua, Hungria, Turquia etc) que está se articulando para iniciar uma segunda grande guerra fria mundial.
Nas Américas o Brasil não vai privilegiar as seis únicas democracias liberais existentes (Canadá, EUA, Costa Rica, Barbados, Chile e Uruguai) e sim as ditaduras (Venezuela, Nicarágua e Cuba) ou as democracias (apenas) eleitorais parasitadas por forças políticas neopopulistas (como Bolívia, Peru, Argentina, Honduras, México e agora, infelizmente, Colômbia).
Nada disso, ao contrário do que dizem os agentes petistas na imprensa, tem a ver com as necessárias relações comerciais do Brasil com esses países, sejam autocracias fechadas ou eleitorais ou mesmo democracias eleitorais parasitadas pelo populismo dito de esquerda. É preciso separar as duas coisas e não usar as relações comerciais como biombo para justificar alianças políticas ou geopolíticas antidemocráticas.
Para concluir. São muitas evidências, montanhas de evidências de que a democracia brasileira continuará sendo um regime insuficientemente liberal (e, pior, ficará ainda menos liberal), e só não as vê quem adotou a postura ideológica de não querer vê-las – como certos “liberais”, que tapam os olhos alegando que é um imperativo, a despeito das barbaridades que cometa, que o governo Lula dê certo. Para quê?
Lula está mais Maduro
Crusoé (25/01/2023)
Esperava-se que Lula, após vencer a eleição, caminhasse para o centro. De fato, foi com a ajuda do centro democrático que Lula derrotou Bolsonaro, por um triz (menos de 2% dos votos).
A criação do factoide de frente ampla reforçava essa expectativa. Expectativa que se frustrou quando ficou patente que Lula apenas se aproveitou dos votos de centro para vencer a disputa eleitoral, mas praticamente excluiu esse centro da composição do seu governo. O governo Lula é o governo de uma frente de esquerda, hegemonizada pelo PT, que adotou dois enfeites de frente ampla (Alckmin e Simone) e alugou setores fisiológicos para ter maioria no Congresso (Renan, Jader, Silveira, Fávaro, de Paula, Juscelino, Daniela, Waldez).
E aí foi ficando cada vez mais claro que Lula 3 não está caminhando para o centro e sim para a esquerda. Em outras palavras, como se lê no Twitter:
“Lula está mais Maduro”.
Claro que a opção de segundo turno por Lula, para impedir a reeleição de Bolsonaro, foi correta. Sob Lula 3 nossa democracia continuará sendo uma democracia eleitoral, ainda que perca conteúdo liberal. Sob Bolsonaro 2 correria risco iminente de virar uma autocracia eleitoral. Seria pior para a democracia.
Mas… a julgar pela composição do governo, Lula 3 está mais para Dilma 2 do que para Lula 1. E a julgar pelos discursos de palanque, Lula 3 não caminhou para o centro. Foi mais para a esquerda do que Lula 1. É quase-óbvio que Lula 1, 2 ou 3, é a mesma entidade com dificuldade de aprender.
Como Lula ainda não desceu do palanque, é sobre isso que temos de nos debruçar agora: o palanque na Argentina.
Já se disse que é na política externa que o desastre lulopetista se revela. A sua viagem a Argentina forneceu muitas indicações da “maduridade” de Lula.
Lá ele disse:
“Com relação a Cuba, eu acho que a criação da Celac foi uma inspiração extraordinária… é o único fórum internacional em que Cuba participa. E eu tenho orgulho de ter participado da construção desse fórum. E tenho muito orgulho de os cubanos participarem”.
Ele ainda afirmou que deve-se respeitar o direito do povo cubano de escolher o seu caminho, como se isso fosse possível numa ditadura.
Em outra ocasião, disparou:
“Da mesma forma que eu sou contra a ocupação territorial que a Rússia fez na Ucrânia, eu sou contra muita ingerência no processo da Venezuela”.
O que a invasão militar da Ucrânia (uma democracia eleitoral, segundo relatório do V-Dem Institute 2022) por uma ditadura (a Rússia) tem a ver com a defesa da democracia em outra ditadura (a Venezuela)?
Mas a escorregada fatal ocorreu anteontem a noite, num evento cultural em Buenos Aires, com a presença do presidente argentino. Transcrevendo a parte mais absurda:
“Vocês sabem que depois de um momento auspicioso no Brasil, quando governamos de 2003 a 2016, houve um golpe de Estado”.
Muito bem. Alguém poderia dizer: cabe agora, então, identificar e processar os golpistas. Do contrário é mentira.
É gravíssimo. No exercício da presidência da República, Lula declarou, em país estrangeiro, que o processo constitucional do impeachment foi “um golpe de Estado” contra o PT. Poderia ter dito que foi hard ball, uma “forçação de barra”. Que foi um “golpe branco” parlamentar. Ou, ainda, que foi um “golpe baixo”, desses que são frequentes na luta política. Mas golpe de Estado, não. É crime.
Se o presidente do STF presidiu a sessão de votação do impeachment no Senado e avalizou os procedimentos, não pode ter sido golpe de Estado. Do contrário Lewandowski deve ser processado. E também a imensa maioria dos senadores que votaram pelo impedimento. Todos estavam articulados para dar um golpe no PT? Foi uma grande conspiração do tipo daquela – acusada por Bolsonaro – para fraudar as urnas eletrônicas?
Será que Lula está dizendo que “as urnas eletrônicas” do Senado, na votação de 31 de agosto de 2016, que deu 61 x 20 votos a favor do impedimento de Dilma Rousseff, “foram fraudadas”? Claro que não, mas a gravidade dessa afirmação – feita por quem foi – é semelhante.
Que um militante do PT diga isso, vá-lá. Que o presidente da República, no exercício do seu mandato, em país estrangeiro, repita tal fake news, é um atentado ao Estado de direito. O impeachment é dispositivo do nosso ordenamento jurídico.
Não vem ao caso se houve ou não houve pedalada, se houve ou não houve prova robusta, se o julgamento, do ponto de vista jurídico, foi duvidoso ou precário. O impeachment é um processo político que requer alguma base jurídica, mas a decisão legítima é a dos seus juízes – os senadores da República – que compõem um tribunal político.
Ao dizer que foi golpe de Estado, Lula está questionando a Constituição, as leis e os procedimentos que levaram o tribunal político a uma decisão legítima. Pior, está lançando uma suspeição sobre a instituição (o Senado da República) e seus integrantes.
Golpe de Estado é crime segundo as leis brasileiras. Se o presidente da República afirma que o impeachment foi “um golpe de Estado”, ele está denunciando um crime. Como a OAB também entrou com pedido de impeachment, ela deverá ser processada juntamente com as mesas da Câmara e do Senado, com o presidente do STF que presidiu a sessão e os 61 senadores que aprovaram o impedimento.
Miguel Reale Jr, um dos autores do pedido de impeachment de Dilma, reagiu ontem pelo Estadão:
“Houve um processo regular previsto na Constituição, tendo a OAB federal também entrado com igual pedido em face do desastre… O PT entrou com mais de cem pedidos de impeachment contra FHC. É uma narrativa que não ajuda o país agora”.
O processo de impeachment de Dilma Rousseff teve início em 2 de dezembro de 2015 e durou 273 dias, com amplo direito de defesa (até exagerado, ao ver de alguns) e rigorosa observância dos ritos legais. Não há nenhum indício de golpe de Estado, como afirmou falsamente Lula.
Qual a necessidade de Lula, quase 7 anos depois, já de novo como presidente da República, dizer em país estrangeiro que o impeachment de Dilma foi “um golpe de Estado”? Isso ajuda em quê? Além de fake news, revela revanchismo. E muita irresponsabilidade.
Lula tem que entender que não é mais um candidato no palanque. Não é mais um militante petista criando narrativas (como a de que o impeachment foi “um golpe de Estado”) para travar lutas políticas sectárias. É o presidente da República. O cargo exige um mínimo de decoro.
Uma oposição democrática no parlamento: a esperança está por um fio
Crusoé (27/01/2023)
Não há democracia sem oposição democrática. Nenhuma democracia do mundo chegou a ser uma democracia liberal (ou uma democracia plena) sem oposição democrática. Eis o nosso problema. Onde está nossa oposição democrática? Quem a representa neste momento (em que muitos democratas foram engolidos pela grande baleia governista)?
Por certo, oposição não se faz apenas no parlamento, mas se uma oposição democrática liberal (quer dizer, não-populista) – que se diferencie da oposição antidemocrática bolsonarista – não conseguir se articular no Congresso, a situação ficará ainda mais difícil para a democracia no Brasil.
Apenas para dar um exemplo. O governo Lula prepara um PL para flexibilizar a Lei das Estatais, abrindo espaço para a indicação de aliados aos conselhos e a cargos nas diretorias. Se ninguém gritar, vai fazer o mesmo contra os marcos legais do Saneamento, da Responsabilidade Fiscal e das Agências Reguladoras. Mas quem vai gritar? Se não houver uma oposição democrática não-populista, praticamente ninguém.
Ou se articula agora uma oposição democrática não-populista – mesmo que pequena para começar, não importa – ou nem em 2030 será possível ter esperanças de um governo não-populista.
Haverá, entretanto, alguma dificuldade para fazer isso. Parte do chamado mundo político, inclusive grandes meios de comunicação que viraram veículos chapa-branca, difunde a ideia de que todos devem se juntar à Lula, do contrário não será possível limpar as instituições do bolsonarismo, evitar novos movimentos golpistas e reprimir o terrorismo. Segundo esse “consenso”, que está sendo forçado diariamente, nossa tarefa seria passar os próximos quatro anos criticando o governo que saiu (e nos abstendo de criticar o que entrou), do contrário o bolsonarismo volta. E qualquer oposição democrática seria inconveniente, pois Lula já representa um governo de união nacional para reconstruir o Brasil e resgatar a democracia.
E o próprio PT, enquanto isso, vem insuflando sua militância – o que inclui seus parlamentares eleitos – com ideias abstrusas: de que o único partido que representa os interesses do povo é o PT, de que Lula é a própria democracia e uma espécie de síntese do nosso povo, de que só a esquerda (quando hegemonizada pelo PT) está certa e todos os demais atores políticos são agentes das elites ou golpistas (a menos que tenham sido alugados para fazer maioria no Câmara e no Senado, aprovar projetos de lei de interesse do governo e, em última instância, é claro, impedir um impeachment).
Aos poucos vai ficando claro o significado do que chamam de “governo de transição”. Será uma transição, sim, mas para outro governo do PT (ou da esquerda satelizada pelo PT). Aliás, a campanha de 2022 não terminou (pois Lula ainda não desceu do palanque) e a campanha de 2026 já começou (é uma transição: para outro – ou o mesmo – palanque).
Por isso, Lula ainda não desceu do palanque onde exercita seu modo-revanche de fazer política, reescrevendo a história em cada declaração, feita no país ou no exterior, para alimentar a guerra. Repete uma conversa ressentida e vingativa de que o PT foi vítima de um golpe de Estado desferido pelas elites. Ainda que essa conversa não vá convencer os que não votaram nele (que vão ficar mais revoltados), nem os que só votaram nele para impedir a reeleição de Bolsonaro, ela esteriliza o ambiente: os que votaram em Lula como veto a Bolsonaro tendem a ficar desiludidos com a política e só vão passar a questionar o governo com mais vigor se houver uma oposição democrática visível, sobretudo no parlamento federal.
É uma hora difícil porque os parlamentares eleitos dispostos a exercer uma oposição democrática são poucos. Nestas circunstâncias, não havendo força para apresentar chapas independentes para disputar a condução das casas legislativas, parece que não há saída a não ser aproveitar a oportunidade da eleição das mesas diretoras da Câmara e do Senado para fazer uma aliança tática com Lira e Pacheco, derrotando e isolando os candidatos alinhados ao bolsonarismo e, com sorte, galgando alguns postos que ajudem a dar maior visibilidade (além de fornecer instrumentos de articulação) a uma proposta democrática não-populista.
Uma aliança tática com Lira e Pacheco, entretanto, não pode ser uma aliança com Lula (que, no caso, significa subordinação). Ao que tudo indica Lula ainda não entendeu – e não vai entender facilmente, porque não quer entender – que é presidente do Brasil e não da sua facção. A facção é tudo, a parte predestinada à supremacia substitui o conjunto. O sonho do PT é transformar a população em simpatizante do partido (e a população aqui inclui os seus representantes no parlamento). É assim que o partido entende o conceito de hegemonia: como hegemonismo. Ocioso dizer que esse é um sonho de raiz totalitária, como percebeu Hannah Arendt (1951) estudando a Schutzstaffel.
Ainda que o regime brasileiro, sob o domínio do populismo lulopetista, não vá virar um regime totalitário, nem mesmo autoritário, é quase certo que ficará ainda menos liberal do que já é, depois da experiência trágica do populismo iliberal bolsonarista.
Há uma esperança, sempre há uma esperança. Mas ela está por um fio. Neste momento a parcela da sociedade que toma a democracia como valor universal e principal valor da vida pública tem que conversar com seus representantes. Se quem for capaz de entender a situação não se mexer, esse fio se romperá.