No dia 25 de março de 2019 os inscritos no programa Novos Pensadores começaram a se debruçar sobre o primeiro volume de A Sociedade Aberta e Seus Inimigos, de Karl Popper (1945), intitulado O Fascínio de Platão.
Entender as razões do fascínio de Platão é fundamental para a aprendizagem democrática.
Como uma canja para os que não estão fazendo o programa vamos publicar aqui os textos originais de Popper – com destaques em vermelho e os comentários provocativos em azul – que geraram conversações democráticas entre os participantes do curso.
Já publicamos os comentários à Introdução do primeiro volume. E também os comentários aos dois primeiros capítulos. E, em seguida, os comentários ao terceiro capítulo e os comentários ao quarto capítulo. E os comentários ao capítulo 5. Segue abaixo o capítulo 6.
O FASCÍNIO DE PLATÃO
Em favor da Sociedade Aberta (cerca de 430 A. C.):
“Embora somente poucos possam dar origem a uma politica, somos todos capazes de julgá-la”.
Péricles de Atenas
Contra a Sociedade Aberta (cerca de 80 anos depois):
“O maior de todos os princípios é que ninguém, seja homem ou mulher, deve carecer de um chefe. Nem deve a mente de qualquer pessoa ser habituada a permitir-lhe fazer ainda que a menor coisa por sua própria iniciativa, nem por zelo, nem mesmo por prazer. Na guerra como em meio à paz, porém, deve ela dirigir a vista para seu chefe e segui-lo fielmente. E mesmo nas mais ínfimas questões deve manter-se em submissão a essa chefia. Por exemplo, deve levantar-se, ou mover-se, ou lavar-se, ou tomar refeições… apenas se lhe for ordenado que o faça. Numa palavra, deve ensinar sua alma, por hábito prolongado, a nunca sonhar em agir independentemente e a tornar-se totalmente incapaz disso”.
Platão de Atenas
CAPÍTULO 6
JUSTIÇA TOTALITÁRIA
A análise da sociologia de Platão facilita a apresentação de seu programa político. Suas exigências fundamentais podem expressar-se por qualquer destas duas fórmulas: a primeira, correspondente à sua teoria idealista da mudança; a segunda, a seu naturalismo. A fórmula idealista é: Detenha-se toda mudança política! A mudança é maléfica; o repouso, divino (1). Toda mudança pode ser detida se se fizer do estado cópia exata de seu original, isto é, a Forma ou Ideia da cidade. E se se perguntasse como seria isso praticável, poder-se-ia responder com a fórmula naturalista: Volte-se à natureza! Voltemos ao estado original de nossos antepassados, o estado primitivo fundado de acordo com a natureza humana e, portanto, estável; voltemos ao patriarcado tribal do tempo anterior à Queda, ao natural governo de classe dos poucos sábios sobre os muitos ignorantes.
Creio que praticamente todos os elementos de programa político de Platão podem derivar-se dessas exigências. Estas, por sua vez, baseiam-se em seu historicismo e têm de ser combinadas com suas doutrinas sociológicas relativas às condições para a estabilidade do regime de classe. Os principais elementos que tenho em mente são:
A) A estrita divisão de classes; isto é, a classe governante, consistente de pastores e cães de vigia, deve ser estritamente separada do gado humano.
B) A identificação do destino do estado com o da classe dirigente; exclusivo interesse por esta classe e por sua unidade; e, subordinadas a essa unidade, regras rígidas para criar e educar essa classe, com estrita supervisão e coletivização dos interesses de seus membros.
Destes elementos principais outros podem ser derivados, como, por exemplo, os seguintes:
C) A classe governante tem o monopólio de coisas tais como as virtudes e o adestramento militares, e o direito de portar armas e de receber educação de qualquer espécie; mas é excluída de qualquer participação em atividades econômicas, especialmente a de ganhar dinheiro.
D) Deve haver censura de todas as atividades intelectuais da classe dirigente e uma propaganda contínua visando a moldar-lhe e unificar-lhe as mentes. Qualquer inovação em educação, legislação e religião deve ser evitada ou suprimida.
E) O estado deve ser auto-suficiente. Deve visar à autarquia econômica, do contrário os governantes teriam de depender dos comerciantes ou tornar-se comerciantes eles próprios. A primeira dessas alternativas minar-lhes-ia o poder, a segunda solaparia sua unidade e a estabilidade do estado.
Creio que tal programa pode ser classificado, com justiça, como totalitário. E é por certo baseado numa sociologia historicista.
Eis um bom resumo. Na sequência, Popper vai justificá-lo.
Isto é tudo porém? Não há outros aspectos do programa de Platão, elementos que nem são totalitários nem baseados no historicismo? Que dizer do ardente anelo de Platão por Bondade e Beleza, ou de seu amor à Sabedoria e à Verdade? Que dizer de sua exigência de que os sábios, os filósofos, devem governar? E de suas esperanças de tomar os cidadãos de seu estado tão virtuosos quanto felizes? E de seu reclamo de que o estado deva ser alicerçado na Justiça? Mesmo escritores que criticam Platão acreditam que sua doutrina política, a despeito de certas similaridades, claramente se distingue do totalitarismo moderno em razão desses seus alvos, a felicidade dos cidadãos e o reino da justiça. Crossman, por exemplo, cuja atitude crítica pode ser aferida por sua observação de que “a filosofia de Platão é o mais selvagem e o mais profundo ataque às ideias liberais que a história pode apresentar” (2), parece ainda crer que o plano de Platão é “a edificação de um estado perfeito, em que cada cidadão seja realmente feliz”. Outro exemplo é Joad, que discute as semelhanças, em certa extensão, entre o programa de Platão e o do fascismo, mas que assevera haver diferenças fundamentais, visto como no estado melhor de Platão “o homem comum… conquista a felicidade que corresponde à sua natureza” e esse estado se baseia em ideias de “um bem absoluto e uma absoluta justiça”.
Apesar de tais argumentos, acredito que o programa político de Platão, longe de ser superiormente moral, ao totalitarismo, identifica-se fundamentalmente com ele. Creio que as objeções contra este ponto de vista se baseiam num preconceito enraizado e antigo em favor de um Platão idealizado. Crossman muito fez para expor e destruir essa inclinação, como se vê do que diz: “Antes da Grande Guerra… Platão… raras vezes era diretamente condenado como um reacionário, resolutamente oposto a qualquer princípio de credo liberal. Em vez disso, era elevado a um nível superior… removido da vida prática, a sonhar uma transcendente Cidade de Deus” (3). O próprio Crossman, contudo, não se libertou da tendência que tão claramente assinalou. E é interessante que essa tendência pudesse persistir por tão longo tempo, a despeito do fato de já haverem Grote e Gomperz apontado o caráter reacionário de certas doutrinas da República e das Leis. Mesmo eles, porém, não viram tudo quanto tais doutrinas implicam; nunca duvidaram de que Platão fosse, fundamentalmente, humanitário. E sua crítica adversa foi ignorada, ou interpretada como uma incapacidade de compreender e apreciar Platão, considerado pelos cristãos “um cristão anterior a Cristo” e pelos revolucionários, um revolucionário. Esta espécie de completa fé em Platão sem dúvida é ainda predominante, e Field, por exemplo, considera necessário advertir seus leitores de que “inteiramente nos enganaremos na compreensão de Platão se pensarmos nele como um pensador revolucionário”. Isto, naturalmente, é muito verdadeiro e claramente não teria sentido se não fosse tão amplamente difundida a tendência para fazer de Platão um pensador revolucionário ou, pelo menos, progressista. Mas o próprio Field tem a mesma espécie de fé em Platão, pois, quando passa a dizer que Platão “fortemente se opunha às tendências novas e subversivas”, certamente aceita com demasiada presteza o testemunho de Platão quanto à característica subversiva dessas novas tendências. Os inimigos da liberdade sempre acusaram de subversão os que a defendem. E quase sempre conseguiram persuadir os sinceros e bem-intencionados.
A idealização do grande idealista impregna não só as interpretações dos escritos de Platão, como também suas traduções. Frequentemente, as drásticas observações de Platão que não se adaptam às opiniões do tradutor sobre o que deve dizer um filósofo humanitário são atenuadas ou erroneamente interpretadas. Essa tendência se inicia com a tradução do próprio título da chamada República. O que primeiro nos vem à mente ao ler esse título é que o autor deve ser liberal, se não revolucionário. Mas o título República é simplesmente a forma de traduzir a versão latina de uma palavra grega que não tem associações desse tipo e cuja tradução adequada seria “A Constituição”, ou “A Cidade-Estado”, ou “O Estado”. A tradução tradicional “A República”, indubitavelmente, contribuiu para a convicção geral de que Platão não podia ter sido um reacionário.
Sim, não parece haver nada de republicano (no sentido moderno do termo) na República de Platão. É uma autocracia típica.
Em vista de tudo quanto Platão diz a respeito da Bondade, da Justiça e das outras Ideias mencionadas, minha tese de que suas exigências políticas são puramente totalitárias e anti-humanitárias precisa ser defendida. A fim de empreender essa defesa, deixarei de parte, nos quatro capítulos seguintes, a análise de seu historicismo, para concentrar-me num exame crítico das mencionadas Ideias éticas e da parte que desempenham nos requisitos políticos de Platão. Neste capítulo examinarei a Ideia de Justiça; nos três seguintes, a doutrina de que os mais sábios e melhores devem governar, e as Ideias de Verdade, Sabedoria, Bondade e Beleza.
I
Que queremos realmente dizer, quando falamos de “Justiça”? Não penso que indagações verbais dessa espécie sejam particularmente importantes ou que seja possível dar-lhes resposta definida, visto como tais termos são sempre usados em diversos sentidos. Contudo, acho que a maioria de nós, especialmente aqueles cuja formação geral é humanitária, dá-lhe um sentido mais ou menos de: a) igual distribuição dos ônus de cidadania, isto é, das limitações de liberdade que são necessárias na vida social (4); b) tratamento igual dos cidadãos perante a lei, desde que, naturalmente, c) as leis não se mostrem favoráveis nem desfavoráveis para com determinados cidadãos individuais, ou grupos, ou classes; d) imparcialidade das cortes de justiça; e) parte igual nos benefícios (e não só nos ônus) que o caráter de membro do estado pode oferecer a seus cidadãos. Se por “justiça” Platão tivesse querido significar qualquer coisa dessa espécie, então minha afirmativa de que seu programa é puramente totalitário estaria certamente errada, estando certos todos aqueles que acreditam repousar a política de Platão sobre uma aceitável base humanitária. O fato, porém, é que por “justiça” ele entendia algo inteiramente diferente.
Que entendia Platão por “justiça”? Afirmo que, na República, ele usou a palavra “justo” com sinônimo de “aquilo que é do interesse do estado melhor”. E qual é o interesse do estado melhor? Deter qualquer mudança, por meio da manutenção de rígida divisão de classes e do governo de uma classe. Se certa está minha interpretação, teremos então de dizer que a exigência platônica de justiça deixa seu programa no mesmo nível do totalitarismo e teremos de concluir que nos devemos resguardar do perigo de ser impressionados por meras palavras.
Deve-se entender “classe” aqui como uma espécie de estamento ou casta, não no sentido marxiano do termo.
A justiça é o tópico central da República; de fato, “Da Justiça” é o seu subtítulo tradicional. Em seu inquérito sobre a natureza da justiça, Platão se utiliza do método mencionado no capítulo anterior (5); tenta primeiro buscar essa Ideia no estado e depois procura aplicar o resultado ao indivíduo. Não se pode dizer que a indagação de Platão: “Que é a Justiça?” encontre rápida resposta, pois esta só é dada no Livro Quarto. As considerações que o levam a ela serão mais amplamente analisadas para o fim deste capítulo. São elas, em resumo:
A cidade se baseia na natureza humana, em suas necessidades e limitações (6). “Afirmamos e, como vos lembrareis, repetimos insistentemente que cada homem em nossa cidade deveria fazer apenas uma espécie de trabalho, a saber, aquele trabalho para o qual sua natureza é naturalmente mais capacitada”. Disto, Platão conclui que todos devem cuidar apenas de seu próprio negócio, que o carpinteiro deve limitar-se à carpintaria e o sapateiro a fazer sapatos. Não haverá, porém, muito prejuízo se os dois trabalhadores trocarem seus lugares naturais. “Mas se alguém que é por natureza um trabalhador (ou ainda um membro da classe que ganha dinheiro)… conseguisse penetrar na classe guerreira; ou se um guerreiro se introduzisse na classe dos guardiães, sem ser digno disso;… então essa espécie de mudança e de clandestina conspiração significaria a queda da cidade”. Deste argumento, que estreitamente se liga ao princípio de que o porte de armas deveria ser uma prerrogativa de classe, extrai Platão sua conclusão final de que qualquer mudança ou mescla dentro das três classes deve ser injustiça, sendo o oposto, portanto, justiça: “Quando cada classe na cidade só se preocupa com seus próprios afazeres, a classe que ganha dinheiro assim como os auxiliares e os guardiães, então isto será justiça”. Esta conclusão é reafirmada e resumida um pouco mais adiante: “A cidade é justa… quando cada uma de suas três classes cuida de suas tarefas próprias”. Mas esta afirmativa significa que Platão identifica a justiça com o princípio do predomínio de classe e do privilégio de classe. Realmente, o princípio de que cada classe deve ater-se a suas tarefas próprias significa, em suma e simplesmente, que o estado é justo quando o governante governa, o trabalhador trabalha e o escravo se deixa escravizar (7).
Veremos que o conceito de justiça de Platão é fundamentalmente diferente de nosso ponto de vista comum, tal como o analisamos acima. Platão considera “justo” o privilégio de classe, ao passo que costumeiramente consideramos justiça a ausência de semelhantes privilégios. Mas a diferença ainda vai mais longe. Consideramos justiça certa espécie de igualdade no tratamento dos indivíduos, ao passo que Platão considera a justiça não como uma relação entre indivíduos, mas como uma propriedade de todo o estado, baseada numa relação entre as suas classes. O estado é justo se for sadio, forte, unido… estável.
II
Mas não estaria Platão, talvez, com a razão? Não significaria a “justiça”, talvez, o que ele diz? Não pretendo discutir esta questão. Se alguém sustentar que “justiça” significa o predomínio indiscutível de determinada classe, simplesmente responderei que estou inteiramente ao lado da injustiça. Em outras palavras, creio que nada depende das palavras, e tudo de nossas exigências práticas, ou das propostas para delinear a política que decidimos adotar. Por detrás da definição de justiça de Platão situa-se, fundamentalmente, sua exigência de um predomínio totalitário de classe e sua decisão de levá-lo a efeito.
Não estaria ele, porém, certo em sentido diferente? Corresponderia sua ideia de justiça, talvez, à maneira grega de usar essa palavra? Quereriam os gregos significar por justiça, talvez, algo de holístico, como a “saúde do estado”, e não seria então extremamente injusto e anti-histórico esperarmos de Platão uma antecipação de nossa moderna ideia de justiça como a igualdade dos cidadãos perante a lei? Esta pergunta, em verdade, tem sido respondida afirmativamente, proclamando-se que a ideia holística de Platão de “justiça social” é característica da concepção grega tradicional, do “gênio grego”, que “não era, como o romano, especificamente legal”, mas antes “especificamente metafísico” (8). Mas essa posição é insustentável. Na realidade, o modo por que os gregos empregavam a palavra “justiça” era surpreendentemente semelhante ao nosso próprio emprego individualista e igualitário.
A fim de mostrá-lo, devo primeiramente referir-me ao próprio Platão, que, no diálogo Górgias (que é anterior ao da República), fala da opinião de que “justiça é igualdade” como sustentada pela grande massa do povo, e como concordando não só com a “convenção”, mas com “a própria natureza”. Posso ainda citar Aristóteles, outro adversário do igualitarismo, que, sob a influência do naturalismo de Platão, elaborou, entre outras coisas, a teoria de que certos homens, por natureza, nasceram para ser escravos (9). Ninguém poderia ser menos interessado em difundir uma interpretação igualitária e individualista da palavra “justiça”. Mas, ao falar do juiz, a quem descreve como a “personificação do que é justo”, Aristóteles diz que a tarefa do juiz é “restaurar a igualdade”. Diz-nos que “todos os homens pensam ser a justiça uma espécie de igualdade”, uma igualdade, especialmente, que “pertence às pessoas”. Chega ele a pensar (e aqui se engana) que a palavra grega para “justiça” deriva-se de uma raiz que significa “divisão igual”. (A opinião de que “justiça” significa uma espécie de “igualdade na divisão de honras e prejuízos entre os cidadãos” concorda com os pontos de vista de Platão nas Leis, onde duas espécies de igualdade na distribuição de honras e prejuízos se distinguem: a “numérica” ou “aritmética” e a “proporcional”; a segunda destas leva em conta o grau em que as pessoas em questão possuem virtude, educação e riqueza — daí dizer-se que essa igualdade proporcional constitui a “justiça política”). E quando Aristóteles discute o princípio da democracia, diz ele que “a justiça democrática é a aplicação do princípio da igualdade aritmética (diferente da igualdade proporcional)”. Tudo isto, por certo, não representa sua impressão pessoal sobre o significado de justiça, nem é talvez apenas uma descrição do modo pelo qual se empregava a palavra, de acordo com Platão, sob a influência do Górgias e das Leis; antes, é a expressão de um uso tão antigo quanto popular da palavra “justiça” (10).
Em vista de tais evidências, creio devermos dizer que a interpretação holística e anti-igualitária da justiça na República foi uma inovação, e que Platão tentou apresentar como “justo” seu totalitário regime de classe, ao passo que o povo em geral considerava como “justiça” exatamente o oposto.
Este resultado é surpreendente e abre caminho a numerosas indagações. Por que Platão proclamou, na República, que justiça significava desigualdade, quando, no consenso geral, significava igualdade? Para mim, a única resposta plausível parece ser a de que ele desejava fazer propaganda de seu estado totalitário, persuadindo o povo de que este era o estado “justo”. Mas valeria a pena tal tentativa, considerando que o que importa não são as palavras e sim o que queremos dizer com elas? É lógico que valia a pena; pode-se ver isto pelo fato de que ele conseguiu persuadir seus leitores, até mesmo em nossos dias, de que sinceramente era um advogado da justiça, isto é, daquela justiça por que eles lutavam. E fato é que ele, assim, espalhou a dúvida e a confusão entre igualitaristas e individualistas que, sob a influência de sua autoridade, começaram a perguntar a si mesmos se sua ideia de justiça não era melhor e mais verdadeira do que a deles. Visto como a palavra “justiça” significa para nós um alvo da maior importância e como tantos estão dispostos a tudo sofrer por ela, o engajamento dessas forças humanitárias ou, pelo menos, a paralisação do igualitarismo era por certo um objetivo digno de ser visado por um crente do totalitarismo. Sabia Platão, porém, que a justiça significava tanto para os homens? Sabia, porque escreveu, na República: “Quando um homem cometeu uma injustiça… não é verdade que sua coragem recusa ser estimulada? Mas, quando crê ter sofrido injustiça, não se inflamam imediatamente seu vigor e sua cólera? E não é igualmente verdadeiro que, quando luta do lado que acredita ser justo, pode ele suportar fome e frio e qualquer espécie de privações? E não persevera até conseguir o que busca, permanecendo em seu estado de exaltação até alcançar seu alvo, ou perecer?” (11).
Lendo isto, não podemos duvidar de que Platão conhecesse a força da fé e, acima de tudo, da fé na justiça. Nem podemos duvidar de que a República devesse visar à perversão dessa fé, substituindo-a por uma fé diretamente oposta. À luz das provas disponíveis, parece-me probabilíssimo que Platão soubesse muito bem o que estava fazendo. O igualitarismo era seu arqui-inimigo e ele se dispusera a destruí-lo, sem dúvida acreditando sinceramente ser ele um grande mal e um grande perigo. Mas seu ataque ao igualitarismo não foi um ataque honesto. Platão não ousou enfrentar abertamente o inimigo.
Passo a apresentar a prova que apoia esta afirmação.
III
A República é provavelmente a mais esmerada monografia que já se escreveu a respeito da justiça. Examina variadas opiniões relativas à justiça e o faz de modo que nos leva a crer não haver Platão omitido qualquer das mais importantes teorias que conhecia. De fato, Platão claramente deixa supor que, em razão de suas vãs tentativas para rastreá-la entre as opiniões correntes, nova pesquisa da justiça era necessária. Contudo, em seu exame e discussão das teorias correntes, a opinião de que a justiça é a igualdade perante a lei (“isonomia”) nunca é mencionada. Tal omissão só pode ser explicada de duas maneiras. Ou ele não levou em conta a teoria igualitária (13), ou propositadamente a evitou. A primeira possibilidade parece muito improvável se considerarmos o cuidado com que foi composta a República e a necessidade que Platão tinha de analisar as teorias de seus opositores para fazer uma apresentação convincente da sua. Mas essa possibilidade surge como ainda mais improvável se considerarmos a vasta popularidade, na época, da teoria igualitária. Não precisamos, porém, basear-nos em argumentos simplesmente prováveis, visto como pode ser facilmente mostrado que Platão não só estava a par da teoria igualitária como muito bem lhe conhecia a importância ao escrever a República. Como já mencionamos neste capítulo (secção II) e como será mostrado minuciosamente mais adiante (secção VIII), o igualitarismo desempenhou considerável papel no seu diálogo anterior, Górgias, onde é mesmo defendido; e a despeito do fato de não serem os méritos ou deméritos do igualitarismo em parte alguma da República seriamente discutidos, Platão não mudou de ideia com relação à sua influência, pois a República, em si mesma, dá testemunho de sua popularidade. Alude-se ali a ele como a uma crença democrática muito popular; mas é tratado apenas com desprezo e tudo quanto ouvimos a seu respeito não passa de alguns escárnios e alfinetadas (14), engrenados com um injurioso ataque à democracia ateniense, colocados em lugar em que a justiça não é o tópico em discussão. A possibilidade de não haver Platão levado em conta a teoria igualitária da justiça está, portanto, afastada, assim como a possibilidade de que ele não considerasse necessário discutir uma teoria influente e diametralmente oposta à sua própria. O fato de seu silêncio na República só haver sido quebrado por poucas observações jocosas (ao que parece, julgou-as ele boas demais para serem suprimidas (15) só pode ser explicado como uma recusa consciente em discutir o assunto). Considerando tudo isso, não vejo como o método de Platão induzir seus leitores a crerem que todas as teorias importantes haviam sido examinadas possa conciliar-se com os padrões da honestidade intelectual; devemos, contudo, acrescentar que essa falha foi sem dúvida devida a seu inteiro devotamento a uma causa em cuja bondade firmemente acreditava.
A fim de apreciar plenamente as consequências do silêncio praticamente ininterrupto de Platão a este respeito, devemos em primeiro lugar considerar com clareza que o movimento igualitário, tal como Platão o conhecia, representava tudo quanto ele odiava, e que sua própria teoria, na República e em todas as obras posteriores, era em especial uma réplica ao poderoso desafio do novo igualitarismo e do humanitarismo. Para mostrá-lo, discutirei os princípios mais importantes do movimento humanitarista, pondo-os em contraste com os princípios correspondentes do totalitarismo platônico.
A teoria humanitária da justiça faz três exigências ou propostas, a saber: a) o princípio igualitário propriamente dito, isto é, a proposta de eliminar os privilégios “naturais”; b) o princípio geral do individualismo; e c) o princípio de que deve ser tarefa e objetivo do estado proteger a liberdade dos cidadãos. A cada uma dessas exigências ou propostas políticas, corresponde um princípio diretamente oposto do platonismo, a saber: a1) o princípio do privilégio natural; b1) o princípio geral do holismo ou coletivismo; e c1) o princípio de que deve ser tarefa e objetivo do indivíduo manter e reforçar a estabilidade do estado. Discutirei estes três pontos pela ordem, dedicando a cada um deles uma das secções IV, V e VI deste capítulo.
IV
O igualitarismo propriamente dito é a exigência de que os cidadãos do estado sejam tratados imparcialmente. É a exigência de que o nascimento, as ligações de família ou a riqueza não influenciem aqueles que administram a lei para os cidadãos. Em outras palavras, não reconhece quaisquer privilégios “naturais”, embora os cidadãos possam conferir certos privilégios àqueles em quem confiam.
Esse princípio igualitário havia sido admiravelmente formulado por Péricles, poucos anos antes do nascimento de Platão, numa oração que foi preservada por Tucídides (16). Será ela citada mais amplamente no capítulo 10, mas duas de suas sentenças podem ser dadas aqui. “Nossas leis — diz Péricles — concedem justiça equitativa a todos os homens por igual em suas disputas privadas, mas não ignoramos as reivindicações do mérito. Quando um cidadão se distingue, então é ele preferido para o serviço público, não como um privilégio, mas como uma recompensa ao merecimento; e a pobreza não é um obstáculo…” Estas sentenças expressam alguns dos alvos fundamentais do grande movimento igualitário, que, como vimos, nem mesmo recuou de atacar a escravatura. Na própria geração de Péricles, esse movimento era representado por Eurípides, Antifonte e Hípias, todos citados no capítulo anterior, e também por Heródoto (17). Na geração de Platão, representaram-no Alcidamas e Licofronte ambos citados acima; outro partidário dele foi Antístenes, um dos mais íntimos amigos de Sócrates.
O princípio de justiça de Platão era, sem dúvida, diametralmente oposto a tudo isso. Requeria ele privilégios naturais para os líderes naturais. Como, porém, contestava o princípio igualitário? E como estabelecia suas próprias exigências?
Lembrar-se-á ter sido dito no capítulo anterior que algumas das melhor conhecidas formulações das exigências igualitárias foram expressas na linguagem convincente, mas discutível, dos “direitos naturais”, e que alguns de seus partidários argumentaram em favor de tais exigências apontando a igualdade “natural”, isto é, biológica, dos homens. Já vimos que esse argumento é desvalioso, que os homens são iguais sob certos aspectos importantes e desiguais sob outros, e que as exigências normativas não podem derivar-se desse fato, nem de qualquer outro fato. E é interessante notar que o argumento naturalista não foi utilizado por todos os igualitários; Péricles, por exemplo, nem sequer alude a ele (18).
Platão verificou com presteza que o argumento naturalista era um ponto fraco da doutrina igualitária e tirou a maior vantagem dessa fraqueza. Dizer aos homens que eles são iguais tem certa atração sentimental. Mas essa atração é pequena em comparação à produzida por uma propaganda que lhes diz que são superiores aos outros e que os outros lhes são inferiores. És tu naturalmente igual a teu criado, a teus escravos, ao trabalhador manual que não é melhor do que um animal? A própria pergunta é ridícula! Platão parece ter sido o primeiro a avaliar as possibilidades de tal reação e a opor desprezo, escárnio e ridículo à reivindicação da igualdade natural. Isso explica porque se mostrava ansioso de imputar o argumento naturalista até mesmo àqueles de seus adversários que não o empregavam; no Menexeno, paródia da oração de Péricles, insiste, assim, em ligar os reclamos de leis iguais aos da igualdade natural: “A base de nossa constituição — diz ele ironicamente — é a igualdade de nascimento. Somos todos irmãos e filhos de uma só mãe;… é a igualdade natural de nascimento induz-nos a lutar pela igualdade perante a lei” (19).
Posteriormente, nas Leis, Platão sintetiza sua réplica ao igualitarismo na fórmula: “O tratamento igual dos desiguais engendra a iniquidade” (20); isto foi desenvolvido por Aristóteles na fórmula: “Igualdade para os iguais; desigualdade para os desiguais”. Esta fórmula mostra o que pode ser chamado a objeção-padrão ao igualitarismo; a objeção de que a igualdade seria excelente, se acaso os homens fossem iguais, mas é manifestamente impossível, visto como eles não são iguais nem podem ser tornados iguais. Esta objeção, aparentemente muito realista, é de fato a mais irreal, pois os privilégios políticos nunca se basearam em diferenças naturais de caráter. E, em verdade, Platão não parece ter muita confiança nessa objeção ao escrever a República, pois só a usou em uma de suas zombarias da democracia, ao dizer que ela “distribui igualmente a igualdade aos iguais e aos desiguais” (21). Fora dessa observação, prefere não argumentar contra o igualitarismo, esquecendo-o.
Em resumo, pode-se dizer que Platão nunca subestimou a significação da teoria igualitária, sustentada que era por um homem como Péricles, mas que, na República, absolutamente não tratou dela; atacou-a, mas não aberta e francamente.
Como, porém, tentou estabelecer seu próprio anti-igualitarismo, seu princípio do privilégio natural? Na República, apresentou três argumentos diferentes, dois dos quais dificilmente merecem tal nome. O primeiro (22) é a surpreendente observação de que, visto haverem sido examinadas todas as outras três virtudes do estado, a quarta restante, a de “limitar-se cada qual à sua tarefa”, deve ser a “justiça”. Reluto em crer que isso fosse considerado como um argumento; mas devia ser, pois o principal interlocutor de Platão, “Sócrates”, apresenta-o indagando: “Sabeis como cheguei a esta conclusão”? O segundo argumento é mais interessante, por ser uma tentativa para mostrar que seu anti-igualitarismo pode derivar-se da opinião comum (isto é, igualitária) de que justiça é imparcialidade. Cito a passagem por inteiro. Notando que os governantes da cidade serão também os seus juízes, diz “Sócrates” (23) : “E não terá sua jurisdição como objetivo que nenhum homem tire o que pertence a outro, ou seja privado do que lhe pertence?” —- “Sim, — é a resposta de “Glaucon”, o interlocutor — esta será sua intenção”. — “Porque seria justo?” — “Sim”. — “Em consequência, conservar e gozar do que nos pertence e é nossa propriedade deve ser geralmente considerado como a justiça”.
Estabelece-se assim que a conservação e usufruto do que pertence a cada um é o princípio da justa jurisdição, de conformidade com nossas ideias ordinárias de justiça. Aqui termina o segundo argumento, dando lugar ao terceiro (a ser analisado abaixo), que leva à conclusão de ser justiça conservar cada qual sua própria posição (ou limitar-se à sua própria tarefa), posição (ou tarefa) que é a de sua própria classe ou casta.
O único propósito deste segundo argumento é dar ao leitor a impressão de que “justiça”, no sentido comum da palavra, requer que conservemos nossa própria posição, já que devemos sempre conservar o que nos pertence. Isto é, Platão deseja que seu leitor tire a dedução: “É justo conservar e usufruir o que pertence a cada um. Minha posição (ou meu ofício) me pertence. Portanto é justo que conserve a minha posição (ou usufrua de meu ofício)”. Isto é quase tão válido quanto o argumento: “É justo que cada um conserve e usufrua do que é seu. Este plano de roubar vosso dinheiro é somente meu. Assim, é justo que eu conserve o meu plano e o ponha em prática, isto é, roube o vosso dinheiro”. É claro que a dedução que Platão deseja que tiremos nada mais é do que rude jogo de palavras com a significação da expressão “o que pertence a cada um”. (O problema, em verdade, é se a justiça requer que tudo que em certo sentido “nos pertence”, por exemplo,“ nossa própria” classe, deve ser tratado, não só como propriedade nossa, mas como propriedade inalienável. Mas o próprio Platão não acredita em tal princípio, pois ele tornaria claramente impossível a transição para o comunismo. E que dizer da conservação de nossos próprios filhos?) Este rude jogo de palavras é a maneira pela qual Platão estabelece o que Adam chama “um ponto de contacto entre sua própria opinião sobre a justiça e a significação… popular da palavra”. É assim que o maior filósofo de todos os tempos tenta convencer-nos de que descobriu a verdadeira natureza da justiça.
O terceiro e último argumento que Platão apresenta é muito mais sério. É um apelo ao princípio do holismo ou coletivismo, ligando-se ao princípio de que o objetivo do indivíduo é manter a estabilidade do estado. Discuti-lo-emos adiante, nesta análise, nas secções V e VI.
Antes, porém de passar a esses pontos, quero chamar a atenção para o “prefácio” que Platão coloca antes de sua descrição da “descoberta” que aqui estamos examinando. Deve ele ser considerado à luz das observações até agora feitas. A tal luz, o “extenso prefácio” — é como o próprio Platão a ele se refere — surge como uma engenhosa tentativa a fim de preparar o leitor para a “descoberta da justiça”, fazendo-o crer que um argumento se desenvolve, quando na realidade ele apenas se defronta com uma exibição de recursos dramáticos, destinados a adormecer-lhe as faculdades críticas.
Havendo descoberto que a sabedoria é a virtude própria dos guardiães e que a coragem é a apropriada aos auxiliares, “Sócrates” anuncia sua intenção de fazer um esforço final “para descobrir a justiça. “Restam duas coisas (24) — diz ele — que teremos de descobrir na cidade: a temperança e, finalmente, aquela outra coisa que é o principal objetivo de toda a nossa investigação, a saber, a justiça.” — “Exatamente” — diz Glaucon. Sócrates então sugere que se deixe de parte a temperança. Mas Glaucon protesta e Sócrates cede, dizendo que “seria errado” (ou “desonesto”) recusar. Esta pequena disputa prepara o leitor para re-introdução da justiça, sugere-lhe que Sócrates possui os meios para descobri-la e assegura-lhe que Glaucon cuidadosamente vela pela honestidade intelectual de Platão na condução do argumento, que ele, o próprio leitor, não precisará portanto, em absoluto, controlar (25).
Sócrates passa, a seguir, a discutir a temperança, que descobre ser a única virtude apropriada aos trabalhadores. (A propósito, a muito debatida questão sobre se a “justiça” de Platão se distingue de sua “temperança” pode ser facilmente respondida. Justiça significa conservar-se cada qual em seu lugar; temperança significa conhecer o seu próprio lugar, quer dizer, mais precisamente, satisfazer-se com ele. Que outra virtude poderia ser mais apropriada aos trabalhadores que enchem as barrigas como as bestas?) Após ser descoberta a temperança, Sócrates indaga: “E a respeito do último princípio? Evidentemente, será a justiça.” — “Evidentemente” — responde Glaucon.
O esquema hierárquico de atribuições que caracterizava o Estado de castas de Platão é horrível:
Senhores | Guardiães = Sabedoria
Capatazes (militares e policiais) | Auxiliares (forças de manutenção da ordem) = Coragem
Rebanho de conduzidos: servos e escravos | Trabalhadores = “Temperança” (conformar-se com seu lugar)
“Ora, meu caro Glaucon — diz Sócrates, — devemos, como caçadores, rodear-lhe o esconderijo e manter estreita vigilância, não permitindo que ela escape e fuja; pois, certamente, a justiça deve estar em alguma parte próxima deste local. E se fores o primeiro a vê-la, grita então por mim!” Glaucon, como o leitor, é naturalmente incapaz de fazer qualquer coisa dessa espécie e implora a Sócrates que assuma a direção da busca. “Então, eleva tuas preces comigo — diz Sócrates — e segue-me”. Mas mesmo Sócrates acha o terreno “difícil de atravessar, pois está coberto de mato; é escuro e duro de explorar… Mas — prossegue — devemos levá- la avante.” E em vez de protestar: “Levar avante o quê? Nossa exploração, isto é, nosso argumento? Mas nem mesmo principiamos. Não há uma fagulha de sentido no que disseste até agora” — Glaucon, e o leitor ingênuo a seu lado, replica docilmente: “Sim, devemos levá-la avante”. Então Sócrates relata que teve um “vislumbre” (nós, não) e fica excitado. “Viva! Viva! — grita. — Glaucon, aqui parece haver uma pista! Acho que agora a presa não nos escapará! ” — “Boas novas!” — responde Glaucon. — “Palavra! — diz Sócrates. — Comportamo-nos como tolos. O que havíamos estado procurando à distância jazia, durante todo o tempo, aos nossos próprios pés! E não o víamos!” Com exclamações e repetidas asserções dessa espécie, Sócrates continua por bom espaço, interrompido por Glaucon, que dá expressão aos sentimentos do leitor e indaga de Sócrates que encontrou ele. Mas quando Sócrates diz: “Estivemos a falar disso todo o tempo sem notar que de fato o estávamos descrevendo”, Glaucon expressa a impaciência do leitor e diz: “Este prefácio está um tanto extenso; lembra-te de que quero saber do que se trata”. E só então Platão passa a apresentar os dois “argumentos” que acima resumi.
A última observação de Glaucon pode ser tomada como uma indicação de que Platão tinha consciência do que estava fazendo nesse “extenso prefácio”. Não interpretá-lo como coisa diversa de uma tentativa — que se demonstrou altamente eficiente — de embalar as faculdades críticas do leitor e, por meio de uma dramática exibição de fogos de artifício verbais, distrair-lhe a atenção da pobreza intelectual dessa magistral peça dialogada. Somos tentados a pensar que Platão conhecia sua fraqueza e o modo de ocultá-la.
V
O problema do individualismo e do coletivismo relaciona-se estreitamente com o da igualdade e da desigualdade. Antes de passarmos a discuti-lo, parecem ser necessárias algumas observações terminológicas.
A palavra “individualismo” pode ser usada (de acordo com o Dicionário de Oxford) de dois modos diferentes: a) em oposição ao coletivismo; e b) em oposição ao altruísmo. Não há outra palavra para expressar a primeira significação, mas há diversos sinônimos para a segunda, como por exemplo “egoismo”, “egolatria”. Eis porque, no que se segue, usarei o termo “individualismo” exclusivamente no sentido a), usando a palavra “egoísmo” quando couber o sentido b). Um pequeno esquema pode ser útil:
a) Individualismo é oposto a a’) Coletivismo.
b) Egoísmo é oposto a b’) Altruísmo.
Ora, estes quatro termos descrevem certas atitudes, ou exigências, ou decisões, ou proposições para códigos de leis normativas. Embora necessariamente vagos, podem eles, creio, ser facilmente ilustrados por exemplos e assim ser usados com precisão suficiente para nossos propósitos presentes. Comecemos com o coletivismo, (26) visto como esta atitude já nos é familiar, em face de nossa discussão do holismo de Platão. Sua exigência de que o indivíduo deveria submeter-se aos interesses do todo, seja este o universo, a cidade, a tribo, a raça, ou qualquer outro corpo coletivo, foi ilustrada no capítulo precedente por algumas citações. Citemos uma delas de novo, porém mais amplamente (27): “A parte existe em função do todo, mas o todo não existe em função da parte… Fostes criados em função do todo, e não o todo em função de vós”. Esta citação não só ilustra o holismo e o coletivismo, mas também encerra sua forte atração emocional, de que Platão tinha consciência (como se pode ver do preâmbulo do trecho). Essa atração dirige-se a vários sentimentos, por exemplo, à aspiração de pertencer a um grupo ou uma tribo; e um de seus fatores é o apelo moral em favor do altruísmo e contra o egoismo. Sugere Platão que, se não pudermos sacrificar nossos interesses pelo bem do todo, somos egoístas.
Ora, uma vista em nosso esquema mostrará que não é assim. O coletivismo não se opõe ao egoismo, nem se identifica com o altruísmo ou a generosidade. Por outro lado, um anti-coletivista, isto é, um individualista, pode ao mesmo tempo ser um altruísta; pode estar pronto a fazer sacrifícios a fim de ajudar outros indivíduos. Um dos melhores exemplos dessa atitude é talvez Dickens. Seria difícil dizer o que é mais forte nele, se o ódio apaixonado ao egoismo, se seu apaixonado interesse pelos indivíduos, com todas as suas fraquezas humanas; e esta atitude se combina com uma antipatia não só pelo que hoje chamamos corpos coletivos (29), mas mesmo por um altruísmo genuinamente devotado, desde que dirigido para grupos anônimos, em vez de indivíduos concretos. (Recordo ao leitor a Sra. Jellyby, na Casa Soturna, “uma dama dedicada aos deveres públicos”). Penso que estas ilustrações explicam claramente a significação de nossos quatro termos; e mostram que qualquer dos termos de nosso esquema pode ser combinado com qualquer dos dois termos que estão na linha oposta (o que dá quatro combinações possíveis).
Ora, é interessante notar que, para Platão, e para a maioria dos platônicos, um individualismo altruísta (como por exemplo o de Dickens) não pode existir. De acordo com Platão, a única alternativa para o coletivismo é o egoismo; identifica simplesmente todo altruísmo com o coletivismo e todo individualismo com o egoismo. Não se trata de uma questão de terminologia, de meras palavras, pois, em vez de quatro possibilidades, ele só reconhece duas. Isso criou considerável confusão na especulação sobre assuntos éticos, até mesmo nos dias de hoje.
A identificação do individualismo com o egoismo fornece a Platão poderosa arma para defender o coletivismo, assim como para atacar o individualismo. Ao defender o coletivismo, pode apelar para nosso sentimento humanitário de desprendimento; ao atacar, pode ferretar todos os individualistas como egoístas, incapazes de devotamento a qualquer coisa que não eles próprios. Esse ataque, embora dirigido por Platão contra o sentido que damos ao individualismo, isto é, contra os direitos dos indivíduos humanos, apenas alcança, naturalmente, um alvo muito diferente, o egoismo. Mas essa diferença é constantemente ignorada por Platão e pela maioria dos platônicos.
Por que tentou Platão atacar o individualismo? Acho que ele sabia muito bem o que estava fazendo ao apontar suas armas para essa posição, pois o individualismo, talvez ainda mais do que o igualitarismo, era uma fortaleza das defesas do novo credo humanitário. A emancipação do indivíduo, de fato, era a grande revolução espiritual que conduzira à queda do tribalismo e à ascensão da democracia. A extraordinária intuição sociológica de Platão mostra-se no modo por que ele invariavelmente distinguia o inimigo, onde quer que o encontrasse.
Talvez a melhor palavra não seja ‘individualismo’ para designar o cidadão (ao contrário de súdito) portador de direitos (embora esses conceitos de cidadão e direitos não estivessem claros na época).
O individualismo era parte da velha ideia intuitiva da justiça. A justiça não é, como quereria Platão, a saúde e harmonia do estado, mas antes certo modo de tratar os indivíduos; é o que Aristóteles acentua, como se lembrará, quando diz que “a justiça é algo que pertence às pessoas” (30). Esse elemento individualista fora frisado pela geração de Péricles. O próprio Péricles tornara claro que as leis devem assegurar justiça equitativa “igualmente para todos, em suas disputas privadas”; mas foi além. “Não somos chamados — diz ele — a censurar nosso próximo se ele prefere seguir o seu caminho”. (Compare-se isto com a observação de Platão (31) de que o estado não deve produzir homens “para o fim de deixá-los a seu lazer, fazendo cada qual o que lhe aprouver”.) Péricles insiste em que o individualismo deve ser ligado ao altruísmo: “Ensinaram-nos… a nunca esquecer que devemos proteger os ofendidos”. E seu discurso culmina com uma descrição do jovem ateniense, que cresce para alcançar “uma feliz versatilidade e a confiança em si mesmo”.
Esse individualismo, unido ao altruísmo, tornou-se a base de nossa civilização ocidental. É a doutrina central do cristianismo (“Ama a teu próximo”, dizem as Escrituras, ‘e não “ama a tua tribo”); e forma o âmago de todas as doutrinas éticas que surgiram de nossa civilização e a estimularam. É também, por exemplo, a doutrina prática central de Kant (“reconhecei sempre que os indivíduos humanos são fins e não os utilizeis como simples meios para vossos fins”). Não há outro pensamento que tenha sido tão poderoso para o desenvolvimento moral do homem.
Platão estava certo ao ver nessa doutrina o inimigo de seu estado de castas, e odiava-a mais do que a quaisquer outras doutrinas “subversivas” da sua época. A fim de mostrá-lo ainda mais claramente, citarei dois trechos das Leis (32), cuja hostilidade realmente espantosa para com o indivíduo é, creio, demasiado pouco avaliada. A primeira delas é famosa como uma referência à República, cuja “comunidade de homens, mulheres e crianças” discute. Platão descreve aqui a constituição da República como “a mais elevada forma de estado”. Nesse seu estado mais elevado, diz-nos, “há comum propriedade de mulheres, de filhos e de todos os bens móveis. E fez-se todo o possível para erradicar de nossa vida, em toda parte e de todas as maneiras, tudo quanto é privado e individual. Até onde isso possa ser feito, mesmo aquelas coisas que a natureza tornou privada e individuais, de algum modo, passaram a ser propriedade comum de todos. Nossos próprios olhos, ouvidos e mãos parecem ver, ouvir e agir como se não pertencessem a indivíduos, mas à comunidade. Todos os homens são moldados para serem unânimes no mais extremo grau ao concederem louvor ou censura, chegando mesmo a regozijar-se ou a lastimar-se pelas mesmas coisas, ao mesmo tempo. E todas as leis são aperfeiçoadas para unificar a cidade ao extremo.” Prossegue Platão dizendo que “homem algum pode encontrar melhor critério da suprema excelência de um estado do que os princípios que acabam de ser expostos”; e descreve tal estado como “divino” e como o “modelo”, ou “padrão”, ou “original” do estado, isto é, sua Forma ou Ideia. Tal é a própria opinião que Platão tem da República, expressa em um tempo em que ele desistira da esperança de realizar seu ideal político na plenitude de sua glória.
A segunda citação, também das Leis, é, se possível, ainda mais franca. Dever-se-ia acentuar que o trecho trata principalmente de expedições militares e de disciplina militar, mas Platão não deixa dúvidas de que esses mesmos princípios militaristas devem receber adesão não só na guerra, mas também “na paz e a partir da primeira infância”. Como outros totalitários militaristas e admiradores de Esparta, Platão insiste em que os ultra-importantes requisitos da disciplina militar estejam acima de tudo, mesmo na paz, devendo condicionar toda a vida dos cidadãos; pois não só os cidadãos adultos (que são todos soldados) e as crianças, como também os próprios animais, devem passar a vida inteira num estado de permanente e total mobilização (33). “O maior de todos os princípios — escreve ele — é que ninguém, homem ou mulher, esteja sem um líder. Nem deve o espírito de alguém ser habituado a deixá-lo fazer qualquer coisa por sua própria iniciativa, nem por zelo, nem mesmo por prazer. Na guerra, porém, como em meio da paz, para o líder deve cada qual volver a vista, seguindo-o fielmente. E mesmo nas menores questões deve permanecer sob liderança. Por exemplo, só deve levantar-se, ou mover-se, ou banhar-se, ou tomar refeições (34)… se assim lhe for ordenado… Numa palavra, deve ensinar sua alma, por hábito prolongado, a nunca sonhar em agir independentemente e a tornar-se absolutamente incapaz disso. Desse modo, a vida de todos será passada em comunidade total. Não há lei, nem nunca haverá, superior a esta, ou melhor e mais efetiva para assegurar a salvação e a vitória na guerra. E nos tempos de paz, a partir da mais tenra infância, deve ser estimulado este hábito de governar os outros e de ser governado pelos outros. Qualquer traço de anarquia deve ser completamente erradicado da vida de todos 0s homens, e mesmo dos animais selvagens que estão sujeitos ao homem”.
Aqui se revela que o “modelo” platônico era mesmo Esparta (esse Estado ideal, forma perfeita antes da degeneração, é mera conversa fiada). Platão não queria apenas um Estado militarizado, mas uma sociedade militarizada. Aliás, não há nenhum conceito de sociedade em Platão. Na sua distopia, tudo é Estado.
São palavras fortes. Nunca houve homem mais empenhado em sua hostilidade para com o indivíduo. E tal ódio se enraíza profundamente no dualismo fundamental da filosofia de Platão; odiava o indivíduo e sua liberdade tanto quanto odiava as variáveis experiências particulares, a variedade do mundo mutável das coisas sensíveis. No campo da política, o indivíduo é, para Platão, o Mal em pessoa.
Entenda-se aqui que o mal era uma sociedade independente do Estado.
Tal atitude, anti-humanitária e anti-cristã como é, tem sido insistentemente idealizada. Tem sido interpretada como humana, como desprendida, como altruísta, como cristã. E. B. England, por exemplo, classifica (35) a primeira dessas duas passagens das Leis como “vigorosa denúncia do egoismo”. Palavras semelhantes são usadas por Barker ao discutir a teoria platônica da justiça. Diz ele que o alvo de Platão era “substituir o egoismo e a discórdia civil pela harmonia” e que “a antiga harmonia dos interesses do Estado e do indivíduo… é assim restaurada nos ensinamentos de Platão; mas restaurada em novo e mais elevado nível, porque elevada a um sentido consciente de harmonia”. Tais afirmativas, e um sem-número de outras semelhantes, podem ser facilmente explicáveis se recordarmos a identificação que Platão faz do individualismo com o egoismo; pois todos esses platônicos acreditam que o anti-individualismo é a mesma coisa que o anti-egoismo. Isso ilustra minha asseveração de que tal identificação teve o efeito de uma bem sucedida peça de propaganda anti-humanitária, trazendo confusão à especulação sobre as questões éticas até aos dias de hoje. Mas devemos também compreender que aqueles a quem essa identificação e as altissonantes palavras enganaram, levando-os a exaltar a reputação de Platão como mestre de moral e a anunciar ao mundo que sua ética é a mais estreita aproximação do cristianismo surgida antes de Cristo, estão preparando o caminho para o totalitarismo e para uma interpretação totalitária e anti-cristã do cristianismo. E isto é uma coisa perigosa, pois tempos houve em que a cristandade foi dominada por ideias totalitárias. Já houve uma Inquisição; e, sob outras formas, ela pode voltar.
Em consequência, podem ser dignas de menção outras razões ainda pelas quais pessoas desprevenidas se persuadiram da humanidade das intenções de Platão. Uma delas é que, ao preparar o campo para suas doutrinas coletivistas, Platão normalmente começa por citar uma máxima ou provérbio (o que parece ser de origem pitagórica): “Os amigos têm em comum todas as coisas que possuem” (36). Isto, sem dúvida, é um sentimento excelente, elevado, nada egoísta. Quem poderia suspeitar de que um argumento partido de tão recomendável admissão chegaria a uma conclusão inteiramente anti-humanitária? Outro ponto importante é que há muitos sentimentos genuinamente humanitários expressos nos diálogos de Platão, especialmente naqueles escritos antes da República, quando ele ainda estava sob a influência de Sócrates. Menciono em particular a doutrina de Sócrates, no Górgias, de que é pior praticar a injustiça do que sofrê-la. Claramente, esta doutrina não só é altruísta como individualista; pois, numa teoria coletivista da justiça como a da República, a injustiça é um ato contra o estado, e não contra um homem particular, e embora um homem possa cometer um ato de injustiça, só a coletividade pode sofrê-lo. Mas no Górgias nada disso encontramos. Ali, a teoria da justiça é perfeitamente normal e os exemplos de injustiça dados por “Sócrates” (que aqui provavelmente tem em si muito do verdadeiro Sócrates) são os de esmurrar os ouvidos de alguém, feri-lo ou matá-lo. O ensinamento de Sócrates quanto a ser melhor sofrer tais atos do que praticá-los é realmente muito semelhante ao ensinamento cristão e sua doutrina de justiça adapta-se excelentemente ao espírito de Péricles. (Uma tentativa de interpretar isto será feita no capítulo 10.)
Ora, a República desenvolve uma nova doutrina de justiça que não só é incompatível com tal individualismo, mas extremamente hostil para com ele. Mas um leitor pode facilmente acreditar que Platão ainda adere à doutrina do Górgias. De fato, na República, Platão frequentemente alude à doutrina de que melhor é sofrer injustiça do que cometê-la, a despeito do fato de não ter isto qualquer significação do ponto de vista da teoria coletivista da justiça apresentada nessa obra. Além do mais, ouvimos, na República, os opositores de “Sócrates” proclamarem a teoria oposta, de que é bom e agradável infligir injustiça e é mau sofrê-la. Todo humanitarismo, sem dúvida, sente repulsa por tal cinismo. E quando Platão formula seus objetivos pela boca de Sócrates: “Temo cometer um pecado se permitir que se fale mal da Justiça em minha presença sem fazer o máximo para defendê-la” (37), então o leitor confiante se convence das boas intenções de Platão e se prontifica a segui-lo aonde ele quiser ir.
O efeito desta garantia de Platão é muito fortalecido pelo fato de que ela acompanha, de modo contrastante, os cínicos e egoístas discursos de Trasímaco, que é pintado como um bandido político da pior espécie. Ao mesmo tempo, o leitor é levado a identificar o individualismo com as opiniões de Trasímaco e a pensar que Platão, em sua luta contra ele, está lutando contra todas as tendências subversivas e niilistas de sua época. Não devemos, porém, deixar que nos assuste um espantalho individualista tal como Trasímaco (há grande semelhança entre seu retrato e o moderno espantalho coletivista do “bolchevismo”), levando-nos a aceitar outra forma de barbarismo mais real e mais perigosa, porque menos evidente. Pois Platão substitui a doutrina de Trasímaco de que a força do indivíduo é o direito pela doutrina igualmente bárbara de que o direito é tudo quanto promova a estabilidade e a força do estado.
Em suma: por causa de seu coletivismo radical, Platão nem mesmo se interessa por aqueles problemas que os homens costumam chamar problemas de justiça, isto é, a avaliação imparcial das reclamações dos indivíduos em pleito. Nem se interessa em ajustar às do estado as reivindicações do indivíduo, pois o indivíduo é inteiramente inferior. “Legislo tendo em vista o que é melhor para todo o estado”, diz Platão, “… pois coloco justamente os interesses do indivíduo num nível inferior de valor” (39). A ele só importa o coletivo como um todo e a justiça, para ele, nada mais é do que a saúde, unidade e estabilidade desse todo coletivo.
Talvez a melhor palavra não seja ‘coletivismo’. Trata-se de estatismo mesmo, no sentido político do termo.
VI
Até aqui, vimos que a ética humanitária requer uma interpretação individualista e igualitária da justiça; mas não esboçamos ainda a concepção humanitária do estado como tal. Por outro lado, vimos que a teoria de Platão sobre o estado é totalitária; mas ainda não explanamos a aplicação dessa teoria à ética do indivíduo. Ambas essas tarefas serão agora empreendidas, a segunda em primeiro lugar; e começarei por analisar o terceiro dos argumentos de Platão na sua “descoberta” da justiça, argumento que até aqui só foi esboçado muito toscamente. Eis o terceiro argumento de Platão (40):
“Vê agora se concordas comigo — diz Sócrates. — Achas que faria muito mal à cidade se um carpinteiro passasse a fazer sapatos e um sapateiro se tomasse carpinteiro?” — “Não muito”. — “Mas se alguém que é por natureza um trabalhador, ou um membro da classe negociante… conseguisse entrar na classe dos guerreiros; ou se um guerreiro se introduzisse na classe dos guardiães sem ser digno disso; tal espécie de mudança, tal conspiração clandestina não significaria a queda da cidade?” — “Significa-lo-ia, definitivamente”. “Temos três classes na cidade; não devo considerar que qualquer dessas conspirações ou mudanças de uma classe para outra seja um grande crime contra a cidade, devendo com razão ser denunciado como a extrema vileza?” — “Certamente”. — “Então, isto é injustiça. E, inversamente, diremos que, quando cada classe na cidade se limita a suas próprias funções, tanto a dos negociantes como a dos auxiliares e dos guardiães, então teremos justiça”.
Ou seja, justiça, para Platão, era estar cada membro das três castas em seu lugar. Não há mobilidade social pois isso seria injusto, fruto de uma conspiração, anarquia, revolução (mudança).
Ora, se observarmos este argumento, encontraremos: a) a admissão sociológica de que qualquer relaxamento do rígido sistema de castas levará à queda da cidade; b) a constante reiteração do único argumento de que o que prejudica a cidade é injustiça; e c) a inferência de que o oposto é justiça. Podemos admitir aqui a suposição sociológica a), visto como representa o ideal de Platão de deter a mudança social e já que ele entende por “prejuízo” tudo que possa conduzir à mudança; e provavelmente é bem verdade que a mudança social só possa ser detida por um rígido sistema de castas. Podemos, além disso, admitir a inferência c) de que o oposto da injustiça é a justiça. Nosso maior interesse, porém, está em b); uma vista ao argumento de Platão mostra que todo o seu fio de pensamento é dominado pela indagação: isto causa dano à cidade? Causa muito ou pouco dano? Constantemente ele reitera que o que ameaça prejudicar a cidade é moralmente perverso e injusto.
Quando Platão se refere à cidade, está se referindo ao Estado, não aos habitantes, à população, às pessoas.
Vemos aqui que Platão só reconhece um derradeiro padrão, o interesse do estado. Tudo o que o beneficia é bom, virtuoso e justo; tudo quanto o ameaça é mau, perverso e injusto. As ações que o servem são morais; as que o põem em perigo, imorais. Em outras palavras, o código moral de Platão é estritamente utilitário. O critério de moralidade é o interesse do estado. A moralidade nada mais é do que higiene política.
Eis a teoria coletivista, tribal, totalitária da moralidade: “É bom o que é do interesse de meu grupo, ou de minha tribo, ou de meu estado”. Fácil é ver o que implicava essa moralidade nas relações internacionais: que o próprio estado nunca pode estar errado em qualquer de suas ações, enquanto for forte; que o estado tem o direito não só de praticar a violência para com seus cidadãos, desde que isso leve a um acréscimo de sua força, mas também de atacar outros estados, contanto que o faça sem enfraquecer-se. (Esta inferência, reconhecimento explícito da amoralidade do estado e, consequentemente, a defesa do niilismo moral nas relações internacionais, foi extraída por Hegel).
Realpolitik – e, como toda realpolitik, autocrática.
Do ponto de vista da ética totalitária, do ponto de vista da utilidade coletiva, a teoria de justiça de Platão é perfeitamente correta. Manter-se cada qual em seu lugar é uma virtude militar da disciplina. E essa virtude desempenha precisamente o papel que a “justiça” exerce no sistema de virtudes de Platão. De fato, as engrenagens do grande mecanismo de relógio do estado podem mostrar “virtude” de duas maneiras. Em primeiro lugar, devem ser adequadas à sua tarefa, em virtude de seu tamanho, formato, força, etc.; e, em segundo, deve adaptar-se cada qual a seu lugar certo, não se afastando desse lugar. O primeiro tipo de virtudes, adequação a uma tarefa específica, levará a uma diferenciação, de conformidade com a tarefa específica da engrenagem. Certas engrenagens só serão virtuosas, isto é, adequadas, se forem (“por sua natureza”) grandes; outras, se forem fortes; e outras se forem macias. Mas a virtude de conservar-se cada qual em seu lugar será comum a todas elas; e será, ao mesmo tempo, uma virtude do todo: a de estar devidamente engrenado em conjunto, a de estar em harmonia. A esta virtude universal dá Platão o nome de “justiça”. Esse proceder é perfeitamente consistente e plenamente se justifica do ponto de vista da moralidade totalitária. Se o indivíduo nada mais é do que uma engrenagem, então a ética nada mais é do que o estudo de como adequá-lo ao conjunto.
Quero tornar claro que acredito na sinceridade do totalitarismo de Platão. Sua exigência de um domínio indiscutido de uma classe sobre as demais era extrema, mas seu ideal não era a máxima exploração das classes trabalhadoras pelas classes superiores; era a estabilidade do todo. A razão, porém, que ele dá para a necessidade de manter a exploração dentro de limites volta a ser puramente utilitária. É o interesse de estabilizar o regime de classe. Se os guardiães tentassem obter demais, argumenta, acabariam por nada ter em absoluto. “Se não se satisfizerem com uma vida de estabilidade e segurança… e forem tentados, por seu poder, a apropriar-se de toda a riqueza da cidade, certamente serão levados a verificar quão sábio fora Hesíodo ao dizer “a metade é melhor do que o todo” (41). Mas devemos notar que mesmo esta tendência a restringir a exploração dos privilégios de classe é um ingrediente bem comum ao totalitarismo. O totalitarismo não é simplesmente amoral. É a moralidade da sociedade fechada, do grupo, da tribo; não é o egoismo individual, mas é o egoismo coletivo.
Considerando ser o terceiro argumento de Platão direto e consistente, pode-se indagar por que necessitou ele do “extenso prefácio”, assim como dos dois argumentos precedentes. Por que todo esse trabalho? (Os platônicos, sem dúvida, responderão que esse trabalho só existe em minha imaginação. Pode ser. Mas o caráter irracional daqueles trechos continua difícil de explicar.) Creio que a resposta a esta pergunta está em que o maquinismo coletivo de Platão dificilmente teria atraído seus leitores se lhes fosse apresentado em toda a sua nudez e falta de significação. Platão sentia-se atribulado porque conhecia e receava o vigor e a atração moral das forças que tentava quebrar. Não ousava desafiá-las, mas tentava conquistá-las, tendo em vista seus próprios objetivos. Se observamos nos escritos de Platão uma tentativa cínica e consciente de utilizar os sentimentos morais do novo humanitarismo para seus próprios fins, ou se observamos antes uma trágica tentativa para persuadir sua própria e melhor consciência dos males do individualismo, nunca o saberemos. Minha impressão pessoal é de que se trata do último caso, sendo este conflito interno o principal segredo da fascinação de Platão. Acho que Platão se comoveu, até às profundezas da alma, com as novas ideias, e especialmente com o grande individualista Sócrates e seu martírio. E penso que ele lutou contra essa influência, em si mesmo como nos outros, com todo o poder de sua inteligência ímpar, embora nem sempre abertamente. Isso explica também a razão pela qual, de vez em quando, em meio a todo o seu totalitarismo encontramos ideias humanitárias. E explica por que foi possível a filósofos apresentarem Platão como um humanitário.
Forte argumento em favor desta interpretação é o modo por que Platão tratou, ou antes, maltratou, a teoria humanitária e racional do estado, teoria que pela primeira vez foi desenvolvida em sua geração.
Numa clara apresentação dessa teoria, a linguagem das exigências políticas ou das proposições políticas (ver Cap. 5, III) deveria ser usada; isto é, não deveríamos tentar responder à indagação essencialista: que é o estado, qual a sua verdadeira natureza, a sua real significação? Nem tentaríamos dar resposta à pergunta historicista: como se originou o estado e qual a origem da obrigação política? Deveríamos, antes, apresentar a questão deste modo: que exigimos de um estado? Que nos propomos considerar como o alvo legítimo da atividade do estado? E, a fim de descobrir quais são nossas fundamentais exigências políticas, podemos perguntar: por que preferimos viver num estado bem ordenado a viver sem estado, isto é, na anarquia? Este modo de fazer nossa pergunta é racional. É a questão que um tecnologista deve tentar responder, antes de passar à construção ou reconstrução de qualquer instituição política. Com efeito, só sabendo o que deseja poderá ele decidir se certas instituições são ou não bem adaptadas à sua função.
Ora, se fizermos nossa pergunta dessa maneira, a resposta do humanitário será: o que exijo do estado é proteção, não só para mim, mas também para os outros. Exijo proteção para minha própria liberdade e para a dos outros. Não desejo viver à mercê de alguém que tenha os punhos mais fortes ou as maiores armas. Em outras palavras, quero ser protegido contra a agressão da parte de outros homens. Quero que seja reconhecida a diferença entre a agressão e a defesa, e que a defesa seja apoiada pelo poder organizado do estado. (A defesa é a do status quo, e o princípio proposto leva a isto: o status quo não deve ser mudado por meios violentos, mas só de conformidade com a lei, por acordo ou arbitramento, exceto onde não houver processo legal para sua revisão.) Estou perfeitamente disposto a ver algo restringida minha própria liberdade de ação, desde que possa obter proteção para a liberdade restante e desde que saiba que certas limitações de minha liberdade são necessárias; por exemplo, devo desistir de minha “liberdade” de atacar, se quero que o estado apoie a defesa contra qualquer ataque. Mas exijo que não se perca de vista o objetivo fundamental do estado, quero dizer, a proteção daquela liberdade que não causa dano aos outros cidadãos. Exijo, assim, que o estado deva limitar a liberdade dos cidadãos tão igualmente quanto possível, e não além do que for necessário para conseguir uma limitação igual da liberdade.
Algo como isto seria a exigência do humanitário, do igualitário, do individualista. É uma exigência que permite ao tecnologista político enfrentar racionalmente os problemas políticos, isto é, do ponto de vista de um alvo perfeitamente claro e definido.
Contra a reivindicação de que um alvo como este possa ser formulado de modo suficientemente claro e definido, muitas objeções se têm levantado. Tem-se dito que, uma vez reconhecido que a liberdade deve ser limitada, todo o princípio de liberdade se desmorona e a questão de quais sejam as limitações necessárias e quais as supérfluas não pode ser decidida racionalmente, mas só por autoridade. Tal objeção, porém, é devida a uma confusão. Mistura a questão fundamental do que queremos de um estado com certas importantes dificuldades tecnológicas no processo de realização de nossas metas. Por certo é difícil determinar exatamente o grau de liberdade que pode ser deixado aos cidadãos sem por em perigo aquela liberdade cuja proteção é a função do estado. Mas o fato de ser possível algo como uma determinação aproximada desse grau está provado pela experiência, isto é, pela existência de estados democráticos. Efetivamente, este processo de determinação aproximada é uma das principais tarefas da legislação nas democracias. É um processo difícil, mas suas dificuldades não chegam ao ponto de forçar-nos a uma mudança em nossas exigências fundamentais. Estas são, em suma, as de que o estado seja considerado como uma associação para prevenção do crime, isto é, da agressão. E toda a objeção de que é difícil saber onde termina a liberdade e onde começa o crime é respondida pela famosa história do rufião que protestava que, sendo um cidadão livre, podia mover seus punhos na direção que lhe aprouvesse; ao que o juiz sabiamente respondeu: “A liberdade de movimento de vossos punhos é limitada pela posição do nariz de vosso vizinho.”
A concepção do estado que aqui delineei pode ser chamada “protecionismo”. O termo “protecionismo” tem sido muitas vezes utilizado para descrever tendências opostas à liberdade. Assim, o economista entende por protecionismo a política de proteger os interesses de certas indústrias contra a competição; e o moralista entende por ele o pedido de que os funcionários do estado estabeleçam uma tutela moral sobre a população. Embora a teoria política que chamo protecionismo não se ligue a qualquer dessas tendências, embora seja ela fundamentalmente uma teoria liberal, creio que o nome pode ser empregado para indicar que, liberal embora, nada tem ela a ver com a política da estrita não-intervenção (muitas vezes, mas não de todo corretamente, denominada “laissez-faire”.) Liberalismo e interferência do estado não se opõem mutuamente. Ao contrário, qualquer espécie de liberdade será claramente impossível se não for assegurada pelo estado (42).
O conceito de liberdade empregado aqui por Popper é fraco e problemático. Do contrário uma sociedade sem Estado não poderia ser considerada livre. Nos dois primeiros milênios de Jericó não havia liberdade? Nas aldeias agrícolas neolíticas não havia liberdade? Os membros de uma tribo paleolítica não têm liberdade? Quer dizer que, em todos esses tipos de sociedades pré-estatais não há liberdade? O assunto, porém, requer uma discussão mais profunda. Talvez a liberdade só faça sentido diante da desliberdade (assim como a democracia só faz sentido diante da autocracia).
Certo grau de controle do estado é necessário, por exemplo, na educação, para que os jovens sejam protegidos de uma negligência que os tornaria incapazes de defender sua liberdade, e o estado deve cuidar de que todas as facilidades educacionais estejam ao alcance de todos. Demasiado controle do estado em questões educacionais, porém, é um perigo fatal para a liberdade, pois deve levar à doutrinação. Como já antes indicamos, a importante e difícil questão das limitações da liberdade não se pode resolver mediante uma fórmula seca e cortante. E o fato de sempre haver casos fronteiriços, longe de assustar-nos, deve converter-se em mais uma coluna de nossa posição, visto como, sem o estímulo dos problemas políticos e das lutas desse tipo, a presteza dos cidadãos em lutarem por sua liberdade logo desapareceria e, com ela, a própria liberdade. (Encarado a esta luz, o suposto choque entre liberdade e segurança, isto é, uma segurança garantida pelo estado, surge como uma quimera. De fato, não há liberdade se não for assegurada pelo estado; e inversamente só um estado controlado por cidadãos livres pode oferecer alguma segurança razoável.)
A passagem grifada aqui já foi comentada imediatamente acima. A afirmação de que “não há liberdade se não for assegurada pelo estado” é lamentável. Claro que, depois do surgimento do Estado, só o controle exercido pelos cidadãos poderá garantir a liberdade (como fizeram os modernos com a fórmula do Estado democrático de direito, usada para drogar o Leviatã).
Assim exposta, a teoria protecionista do estado acha-se liberta de quaisquer elementos de historicismo ou essencialismo. Não diz que o estado se originou como uma associação de indivíduos com uma finalidade protecionista, ou que qualquer estado existente na história tenha sido conscientemente governado com esse alvo em vista. E nada diz a respeito da natureza essencial do estado, ou acerca de um direito natural à liberdade. Nada também diz sobre o modo pelo qual o estado efetivamente funciona. Formula uma exigência política, ou, mais precisamente, uma proposição para a adoção de determinada política. Suspeito, porém, de que muitos convencionalistas que descreveram o estado como originando-se de uma associação para a proteção de seus membros pretenderam expressar essa própria exigência, embora o fizessem em linguagem desajeitada e confusa — a linguagem do historicismo. Maneira similar e confusa de exprimir essa exigência é asseverar que, essencialmente, a função do estado é proteger os seus membros, ou afirmar que o estado se define como uma associação de proteção mútua. Todas essas teorias devem ser traduzidas, por assim dizer, para a linguagem de exigências e proposições de ações políticas, antes de poderem ser discutidas seriamente. De outro modo, serão inevitáveis discussões infindáveis, de caráter meramente verbal.
Um exemplo de tal tradução pode ser dado. Uma crítica do que chamo protecionismo foi apresentada por Aristóteles (43), e repetida por Burke e por muitos platônicos modernos. Afirma tal crítica que o protecionismo adota uma visão muito mesquinha das tarefas do estado, o qual (usando as palavras de Burke) “deve ser encarado com outra reverência, pois não constitui uma sociedade nas coisas submetidas apenas à grosseira existência animal, de natureza temporária e perecível”. Em outras palavras, afirma-se ser o estado algo de mais elevado e nobre do que uma associação com fins racionais; é um objeto de adoração. Tem tarefas mais altas do que a proteção dos seres humanos e de seus direitos. Tem tarefas morais. “Cuidar da virtude é função de um estado que realmente mereça esse nome”, diz Aristóteles. Se tentarmos traduzir essa crítica na linguagem das exigências políticas, veremos então que esses críticos do protecionismo querem duas coisas. Primeiro, desejam tornar o estado um objeto de adoração. De nosso ponto de vista, nada há a dizer contra esse desejo. É um problema religioso; e os adoradores do estado devem resolver por si mesmos como conciliarão tal credo com suas outras crenças religiosas, como, por exemplo, com o Primeiro Mandamento. A segunda exigência é política.
Na prática, essa exigência significaria simplesmente que os funcionários do estado deveriam preocupar-se com a moralidade dos cidadãos e usar de seus poderes não tanto para proteger a liberdade dos cidadãos quanto para controlar-lhes a vida moral. Em outras palavras, é a exigência de que o reino da legalidade, isto é, das normas impostas pelo estado, seja aumentado à custa do reino da moralidade propriamente dita, vale dizer, das normas impostas, não pelo estado, mas pelas nossas próprias decisões morais, pela nossa consciência. Esta exigência ou proposição pode ser objeto de uma análise racional e, assim, poderia arguir-se contra ela o fato de aparentemente não se darem conta, aqueles que a proclamam, de que sua adoção representaria o fim da responsabilidade moral do indivíduo, terminando por destruir a moralidade, em vez de aprimorá-la. Com efeito, a responsabilidade pessoal seria substituída por tabus do tipo tribal e pela irresponsabilidade totalitária do indivíduo. Contra toda essa atitude, o individualista deve sustentar que a moralidade dos estados (se é que existe) tende a ser consideravelmente inferior à dos cidadãos médios, de modo tal que é muito mais conveniente que a moralidade do estado seja controlada pelos cidadãos, e não o inverso. O que necessitamos, o que queremos é moralizar a política, e não politizar a moral.
Nem uma coisa nem outra. O que queremos – os democratas – é que a política permita a auto-organização. É que os seres humanos vivam como seres políticos, regulando pacificamente seus conflitos e determinando, a partir da livre interações de suas opiniões, os destinos da sociedade.
Deveria ser mencionado que, do ponto de vista protecionista, os estados democráticos existentes, embora longe de perfeitos, representam um considerável aprimoramento na mecânica social da reta espécie. Muitas formas de crime, de ataque aos direitos dos indivíduos humanos por outros indivíduos, têm sido praticamente suprimidas ou extremamente reduzidas, e tribunais administram a justiça com pleno sucesso, em difíceis conflitos de interesses. Pensam muitos que a extensão de tais métodos (44) ao crime internacional, ao conflito internacional, seja apenas um sonho utópico; não faz muito, porém, a instituição de um poder executivo capaz de manter a paz civil parecia utópica àqueles que sofriam a permanente ameaça de toda espécie de delinquentes, em países onde a paz civil se acha agora perfeitamente estabelecida. Creio que os problemas mecânicos relativos ao controle do delito internacional não são em realidade tão difíceis, uma vez que os encaremos aberta e racionalmente. Se se expõe com clareza a questão, não será difícil levar o povo a concordar em que as instituições protetoras são necessárias, tanto em escala local como em escala mundial. Deixemos que os cultores do estado continuem a adorá-lo, mas exijamos que os tecnologistas institucionais tenham a possibilidade de aperfeiçoar não só seu maquinismo interno, mas também de edificar uma organização para prevenção do crime internacional.
VII
Voltando agora à história desses movimentos, parece que a teoria protecionista do estado foi apresentada em primeiro lugar pelo sofista Licofronte, discípulo de Górgias. Já se mencionou que ele (assim como Alcidamas, também pupilo de Górgias) fora um dos primeiros a atacar a teoria do privilégio natural. Aristóteles registra que ele sustentou a teoria a que dei o nome de “protecionismo” e fala a seu respeito de tal modo que é bem provável tenha sido ele o seu autor. Da mesma fonte sabemos que ele a formulou com uma clareza raramente atingida por qualquer de seus sucessores.
Diz-nos Aristóteles, que Licofronte considerava a lei do estado como um “convênio pelo qual os homens asseguram a justiça uns aos outros” (e não como tendo poder para fazer os cidadãos bons e justos). Diz-nos mais (45) que Licofronte encarava o estado como um instrumento para proteção dos cidadãos contra atos de injustiça (e para permitir-lhes o intercâmbio pacífico, especialmente o comércio), exigindo que fosse o estado “uma associação cooperativa para prevenção do crime”. É interessante notar que não há indicação, no relato de Aristóteles, de que Licofronte expressasse sua teoria de uma forma historicista, isto é, como uma teoria relativa à origem histórica do estado num contrato social. Ao contrário, emerge claramente do texto aristotélico que Licofronte, em sua teoria, apenas se preocupava com os fins do estado; pois Aristóteles argumenta que Licofronte não vira que o fim essencial do estado é tornar virtuosos os seus cidadãos. Isso indica que Licofronte interpretava tal fim racionalmente, de um ponto de vista tecnológico, adotando as exigências do igualitarismo, do individualismo e do protecionismo.
Desse modo, a teoria de Licofronte está completamente resguardada das objeções a que se expõe a teoria historicista tradicional do contrato social. Muitas vezes tem sido dito, por Barker por exemplo (46), que a teoria do contrato “tem sido rebatida, ponto por ponto, por pensadores modernos”. Pode ser assim; mas um exame das opiniões de Barker mostrará que eles certamente não rebateram a teoria de Licofronte, em quem Barker vê (e neste ponto inclino-me a concordar com ele) o provável fundador da mais antiga forma de uma teoria que mais tarde foi denominada teoria do contrato. Os pontos de Barker podem ser assim expostos: a) historicamente, nunca houve um contrato; b) historicamente, o estado nunca foi instituído; c) as leis não são convencionais, mas surgem da tradição, da força superior, talvez do instinto, etc.; costumes, antes de serem códigos; d) a força das leis não reside nas sanções, no poder protetor do estado que as impõe, mas na presteza dos indivíduos em prestar-lhes obediência, isto é, na vontade moral dos indivíduos.
Vê-se logo que as objeções a), b) e c), que em si mesmas parecem plenamente corretas, (embora tenha havido alguns contratos) só se referem à teoria em sua forma historicista nada significando, pois, quanto à versão de Licofronte. Não precisaremos, pois, de considerá-las. A objeção d), porém, merece mais estreita consideração. Que pode significar ela? A teoria atacada acentua a “vontade”, ou melhor, a decisão do indivíduo, mais do que qualquer outra teoria; de fato, a palavra “contrato” sugere um acordo por “livre vontade”; sugere, talvez mais do que qualquer outra teoria, que a força das leis reside na presteza do indivíduo em aceitá-las e prestar-lhes obediência. Como, então, pode d) ser uma objeção contra a teoria do contrato? A única explicação parece ser a de que Barker não pensa que o contrato nasça da “vontade moral” do indivíduo, e sim de uma vontade egoísta ; e esta interpretação é tanto mais provável quanto anda a par da crítica de Platão. Não é mister, porém, que se seja egoísta para ser protecionista. A proteção não significa necessariamente auto-proteção; muitos fazem seguro de vida para proteger os outros, e não a si mesmos, e do mesmo modo podem exigir proteção do estado principalmente para os outros, e em menor grau (ou absolutamente nenhum) para si mesmos. A ideia fundamental do protecionismo é: proteger os fracos de serem intimidados pelos fortes. Tal exigência não tem sido feita só pelos fracos, mas, muitas vezes, também pelos fortes. É enganador, para dizer o menos, sugerir que ela seja uma exigência egoísta ou imoral.
Creio que o protecionismo de Licofronte está livre de todas essas objeções. É ele a expressão mais adequada do movimento igualitário e humanitário da época de Péricles. E, contudo, tem-nos sido escamoteado. Tem sido passado às gerações sucessivas apenas em forma alterada: como a teoria historicista de origem do estado num contrato social, ou como uma teoria essencialista proclamando que a verdadeira natureza do estado é a da convenção, e como uma teoria de egoísmo, baseada na admissão de ser fundamentalmente imoral a natureza do homem. Tudo isto se deve à opressiva influência da autoridade de Platão.
VIII
Pouca dúvida pode haver de que Platão conhecesse bem a teoria de Licofronte, pois fora (com toda a probabilidade) contemporâneo mais jovem deste. E, em verdade, essa teoria pode ser facilmente identificada com uma que é mencionada primeiramente no Górgias e mais tarde na República. (Em nenhum dos pontos Platão menciona o autor, processo muitas vezes adotado por ele, quando seu opositor era vivo.) No Górgias, essa teoria é exposta por Calicles, um niilista ético como o Trasímaco da República. Na República, é exposta por Glaucon. Em nenhum dos dois casos o expositor se identifica com a teoria que apresenta.
Os dois trechos, sob muitos aspectos, são paralelos. Ambos apresentam a teoria sob uma forma historicista, isto é, com uma teoria sobre a origem da “justiça”. Ambos a apresentam como se suas premissas lógicas fossem necessariamente egoístas e mesmo niilistas, isto é, como se a concepção protecionista do estado fosse sustentada apenas por aqueles que gostariam de infligir injustiça, mas são demasiado fracos para fazê-lo e que, portanto, exigem que os fortes também não o possam fazer. Tal exposição não é por certo honesta, visto como a única premissa necessária da teoria é a de que o crime, ou a injustiça, sejam suprimidos.
Até aí as duas passagens do Górgias e da República correm paralelamente, e muitas vezes tem sido comentado esse paralelismo. Mas há entre elas uma tremenda diferença que, creio, tanto quanto sei tem sido desprezada pelos comentadores. É esta: no Górgias, a teoria é apresentada por Calicles como merecendo sua oposição; e como ele também se opõe a Sócrates, a teoria protecionista, implicitamente, não é atacada, mas antes defendida por Platão. Realmente, um exame mais atento mostra que Sócrates sustenta diversos de seus aspectos contra o niilista Calicles. Mas, na República, a mesma teoria é apresentada por Glaucon como uma elaboração e desenvolvimento das opiniões de Trasímaco, isto é, do niilista que aqui toma o lugar de Calicles; em outras palavras, a teoria é apresentada como niilista e Sócrates surge como o herói que vitoriosamente destrói essa diabólica doutrina do egoísmo.
Assim os trechos em que os comentadores, na maioria, encontram similaridade entre as tendências do Górgias e da República, na realidade revelam mudança completa de frente de batalha. A despeito da apresentação hostil de Calicles, a tendência do Górgias é favorável ao protecionismo; mas a da República é violentamente contra ele.
Eis aqui um extrato da fala de Calicles no Górgias (47): “As Leis são elaboradas pela grande massa do povo, que se compõe principalmente de homens débeis. Desse modo.. . fazem as leis a fim de proteger-se a si mesmos e a seus interesses. Assim dissuadem os mais fortes… todos os outros que poderiam levar vantagens sobre eles, de fazê-lo;… e entendem, pela palavra “injustiça”, a tentativa de um cidadão para obter o melhor de seu próximo; e, sendo conscientes de sua inferioridade, ficam satisfeitíssimos, diria eu, se conseguirem ao menos obter igualdade”. Se examinarmos este relato e eliminarmos o que se deve ao franco desprezo e à hostilidade de Calicles, encontraremos então todos os elementos da teoria de Licofronte: igualitarismo, individualismo e proteção contra a injustiça. Mesmo a referência aos “fortes” e aos “fracos” que têm consciência de sua inferioridade calha à concepção protecionista muito bem, descontado o elemento caricatural. Não é de todo improvável que a doutrina de Licofronte explicitamente erguesse a exigência de que o estado protegesse os fracos, exigência que sem dúvida pode ser tudo, menos ignóbil. (A esperança de que essa exigência será um dia cumprida é expressa pelo ensinamento cristão: “Os mansos herdarão a terra”).
O próprio Calicles não aprecia o protecionismo; é a favor dos direitos “naturais” dos mais fortes. Muito significativo é que Sócrates, em seu argumento contra Calicles, venha em auxílio do protecionismo, pois o relaciona com sua própria tese central, a de que é melhor sofrer injustiça do que infligi-la. Diz ele, por exemplo (48): “Não são muitos da opinião, como estiveste ultimamente dizendo, de que a justiça é igualdade? E, também, de que é mais lastimável infligir injustiça do que sofrê-la?” E, mais adiante: “a própria natureza, e não só a convenção, afirma que infligir injustiça é mais lastimável do que sofrê-la, e que justiça é igualdade.” (Apesar dessas tendências individualistas, igualitárias e protecionistas, o Górgias também mostra algumas inclinações fortemente anti-democráticas. A explicação pode ser a de que, ao escrever o Górgias, Platão ainda não desenvolvera suas teorias totalitárias; embora suas simpatias já fossem antidemocráticas, ainda se achava sob a influência de Sócrates.
Há aqui uma valoração positiva das opiniões políticas de Sócrates, que seria anti-democrático mas não totalitário. A ver.
Não consigo compreender como pode alguém pensar que o Górgias e a República sejam ambos, ao mesmo tempo, verdadeiros relatos das opiniões de Sócrates.)
Voltemos agora à República, onde Glaucon apresenta o protecionismo como uma versão logicamente mais rigorosa, mas eticamente inalterada, do niilismo de Trasímaco. “Meu tema, diz Glaucon (49), é a origem da justiça e a espécie de coisa que ela realmente é. De acordo com alguns, é por natureza uma coisa excelente infligir injustiça a outros, e má coisa o sofrê-la. Mas eles sustentam que a maldade de sofrer injustiça excede em muito à desejabilidade de infligi-la. Por certo tempo, pois, os homens farão injustiças uns aos outros, e naturalmente as sofrerão, e não gostarão de ambas as coisas. Mas, por fim, aqueles que não são bastante fortes para repelir a injustiça, ou para sentir prazer em cometê-la, decidirão ser mais proveitoso para eles juntarem-se num contrato, assegurando-se mutuamente uns aos outros que ninguém infligirá injustiça nem a sofrerá. Este é o modo por que se estabeleceram as leis… E esta é a natureza e origem da justiça, de acordo com tal teoria.”
Até onde vai seu conteúdo racional, esta é claramente a mesma teoria; e o modo por que ela é apresentada também se assemelha, nos detalhes (50), ao discurso de Calicles no Górgias. Contudo, Platão mudou completamente sua frente de combate. A teoria protecionista não mais é agora defendida contra a alegação de basear-se em cínico egoísmo. Ao contrário. Nossos sentimentos humanitários, nossa indignação moral, já provocados pelo niilismo de Trasímaco, são utilizados para tornar-nos inimigos do protecionismo. Essa teoria, cujo caráter humanitário fora indicado no Górgias, é agora apresentada por Platão como anti-humanitária e, na verdade, como o produto da doutrina repulsiva e absolutamente não convincente de que a injustiça é uma coisa ótima — para aqueles que se encontrem em condições de praticá-la. E ele não hesita em insistir nesse ponto. Numa extensa continuação da passagem citada, Glaucon expõe com muitas minúcias as admissões ou premissas supostamente necessárias do protecionismo. Entre estas, menciona, por exemplo, a concepção de que infligir injustiça “é a melhor de todas as coisas (51)”; de que a justiça só se estabelece porque muitos homens são demasiado fracos para cometer crimes; e de que, para o cidadão individual, uma vida de crimes seria proveitosa em alto grau. E “Sócrates”, isto é, Platão, explicitamente (52) assegura a autenticidade da interpretação dada por Glauco à teoria apresentada. Através desse método, Platão parece ter triunfado em persuadir a maioria de seus leitores, e de qualquer modo a todos os platônicos, de que a teoria protecionista ali desenvolvida é idêntica ao egoísmo cínico e implacável de Trasímaco (53); e de que, o que é mais importante, todas as formas de individualismo convergem para o mesmo ponto, isto é, para o egoísmo. Mas não persuadiu apenas a seus admiradores; conseguiu mesmo persuadir seus opositores, especialmente os adeptos da teoria do contrato. De Carneades (54) a Hobbes, não só adotaram eles essa fatal apresentação historicista, como também as asseverações de Platão de que a base da teoria deles era um niilismo ético.
Devemos agora notar que a elaboração dessa base supostamente egoísta constitui todo o argumento de Platão contra o protecionismo; e, considerando o espaço tomado por essa elaboração, podemos admitir com segurança não ter sido em razão de reticência que ele não apresentou argumento melhor, mas pelo fato de não ter nenhum. Assim, o protecionismo tinha de ser repelido através de um apelo a nossos sentimentos morais: como uma afronta à ideia de justiça e a nossos padrões de decência.
Tal é o método por que Platão lida com uma teoria que não só era perigosa rival de sua própria doutrina, como também representativa do novo credo humanitário e individualista isto é, o arqui-inimigo de tudo quanto lhe era caro. O método é hábil; seu espantoso sucesso o demonstra. Mas eu não seria sincero se não dissesse francamente que esse método de Platão me parece desonesto. Pois a concepção mais imoral que tem a teoria atacada é a de que a injustiça é um mal, isto é, de que deve ser evitada e submetida a controle. E Platão sabia muito bem que tal teoria não se baseava no egoísmo, pois no Górgias a havia apresentado, não como idêntica à teoria niilista do qual é “derivada” na República, mas como oposta a ela.
Em suma, podemos dizer que a teoria de Platão sobre a justiça, tal como apresentada na República e em obras posteriores, é uma tentativa consciente para levar a melhor sobre as tendências igualitárias, individualistas e protecionistas de seu tempo e para restabelecer as reivindicações do tribalismo, através do desenvolvimento de uma teoria moral totalitária. Ao mesmo tempo, estava ele fortemente impressionando pela nova moralidade humanitária; mas, em vez de combater o igualitarismo com argumentos, evitava sequer discuti-lo. E obteve êxito em engajar os sentimentos humanitários, cuja força tão bem conhecia, na causa do governo totalitário de classe de uma raça dominadora naturalmente superior.
Essas prerrogativas de classe, proclamava ele, são necessárias para sustentar a estabilidade do estado. Constituem, portanto, a essência da justiça. Em última análise, essa reivindicação se baseia no argumento de que a justiça é útil ao poder, à saúde e à estabilidade do estado, argumento que é por demais semelhante à moderna definição totalitária: direito é tudo quanto for útil ao poder de minha nação, de minha classe ou de meu partido.
Aqui se encontram as visões fascista (mussolinista, hitlerista) e socialista (marxista-leninista) do Estado.
Esta ainda não é, porém, toda a história. Por sua ênfase sobre as prerrogativas de classe, Platão suscita o problema: “Quem deve governar”, no centro da teoria política. Sua resposta a esta indagação foi a de que deveriam governar os mais sábios, os melhores. Não modifica essa excelente resposta o caráter de sua teoria?
Notas
As notas abaixo estão sem revisão, sem as imagens e ainda precisam ser organizadas
1 — Cf. nota 3 ao cap. 4 e texto, especialmente o fim daquele parágrafo. Além disso, nota 2 (2) àquele capítulo. Relativamente à fórmula Retorno à Natureza, desejo chamar a atenção para o fato de que Rousseau foi grandemente influenciado por Platão. Na verdade, uma olhadela ao Contrato Social revelará abundância de analogias, especialmente com aqueles textos platônicos sobre o naturalismo que foram comentados no capítulo anterior. Cf. especialmente nota 14 ao cap. 9. Há também interessante similaridade entre a Rep., 591a sgs. (e Gorgias, 472e sgs., onde ideia semelhante ocorre num contexto individualista) e a famosa teoria de Rousseau (e de Hegel) sobre a punição. (Barker, Greek Political Theory, I, 388 sgs., com razão salienta a influência de Platão sobre Rousseau. Mas não vê o forte elemento de romantismo em Platão; e não é geralmente levado em conta que o romantismo rural que influenciou tanto a França como a Inglaterra de Shakespeare, por meio da Arcádia de Sanazzarro, teve sua origem nos pastores dóricos; cf. notas 11 (3), 26 e 32 ao cap. 4 e nota 14 ao capítulo 9).
2 — Cf. R. H. S. Crossman, Plato To-Day (1937), 132; a citação seguinte corresponde à pág. 11. Este interessante livro (como as obras de Grote e T. Gomperz) me animou consideravelmente a desenvolver meus conceitos bastante pouco ortodoxos sobre Platão e a segui-los até extrair suas conclusões antes desagradáveis. Para as citações de E. M. Joad, ver seu Guide to the Philosophy of Morais and Politics (1938), 661 e 660. Também cabe referir-me aqui às interessantes observações de C. L. Setevenson sobre a concepção platônica da justiça em seu artigo “Definições Persuasivas” (Mind, N. S., vol. 47, 1938, p. 331 sgs.).
3 — Cf. Crossman, ob. cit., p. 132 sgs. As duas citações seguintes correspondem a: Field, Plato, etc., 91; cf. as observações similares de Barker em Greek Political Theory, etc. (ver nota 13 ao cap. 5).
A idealização de Platão desempenhou considerável papel nos debates acerca da autenticidade das diversas obras que nos chegaram com seu nome. Muitas delas foram repelidas pelos críticos simplesmente por conterem passagens que não se enquadravam em sua visão idealizada de Platão. Uma expressão bastante ingênua, assim como típica, de tal atitude pode ser encontrada na Introductory Notice de Davies e Vaughan (cf. edição da República do Golden Treasury, p. VI) : “O sr. Grote, em seu afã de derrubar Platão de seu pedestal sobre-humano, parece demasiado disposto a atribuir-lhe certos trabalhos que foram julgados indignos de tão divino filósofo”. Parece não ocorrer a esses autores que seu juizo sobre Platão deveria basear-se no que este escreveu, e não ao contrário, e que, se essas obras são tão autênticas como indignas, então Platão não deviã ter sido um filósofo tão divino como eles supõem.
4 — A formulação de (a) é uma reminiscência de Kant, que descreve uma constituição justa como “ a constituição que proporciona a maior liberdade possível aos indivíduos humanos, sancionando as leis de forma tal que a liberdade de cada um possa coexistir com a dos demais’’. (Crítica da Rasão Pura, 2, 373). Ver também sua Teoria do Direito, onde expressa: “O direito (ou a justiça) é a soma total das condições necessárias para que a livre escolha 4e cada um coexista com a dos demais, de acordo com uma lei geral de liberdade”. Kant acredita que era esta a meta visada por Platão na República, de onde se deduz que Kant foi um dos muitos filósofos que, ou se deixaram enganar por Platão, ou o idealizaram atribuindo-lhe suas próprias ideias humanitárias. Cabe assinalar, neste sentido, que o ardente liberalismo de Kant é muito pouco apreciado pelos autores ingleses e norte-americanos que se ocuparam da filosofia política (apesar da obra de Hastie, Kant’s Principles of Politics’). Com demasiada frequência é ele considerado precursor de Hegel, o que profundamente injusto, se levarmos em conta que ele viu no romantismo tanto de Herder como de Fichte uma doutrina diamètralmente oposta à sua. A tremenda influência do hegelianismo é que levou à aceitação corrente dessa tese, que, a meu ver, é totalmente insustentável e só poderia ter merecido a desaprovação do próprio Kánt.
5 — Cf. texto de notas 32/33 do cap. 5.
6 — Cf. texto de notas 25 a 29 do cap. 5. As citações do presente parágrafo são: 1) Rep., 433a; 2) Rep., 434a/b; 3) Rep., 441 d. Em relação à frase de Platão na primeira citação, “temos repetido continua- damente”, cf. também esp. Rep. 397e, onde se prepara cuidadosamente a teoria da justiça, assim como, sem dúvida, Rep. 369b-c, cit. no texto de nota 29, cpp. 5. Ver ainda as notas 23 e 40 ao presente capítulo.
7 — Como se indicou no cap. 4 (nota 18 e texto, e nota 29), Platão não disse grande coisa a respeito dos escravos na Rep., embora o pouco que diga seja bastante significativo; entretanto, nas Leis dissipa qualquer dúvida possível acerca de sua atitude (cf. esp. o art. de G. R. Morrow publicado em Mind, a que nos referimos na nota 29 ao cap. 4).
8 — As citações são de Barker, Greek Political Theory, I, p. 180. Barker afirma (p. 176 segs.) que a “Justiça platônica” é a “justiça social” e insiste corretamente em sua natureza holista. Menciona, ainda (178 segs.) a possível objeção de que esta fórmula “não… tange a essência do que os homens querem significar geralmente com a palavra Justiça”, isto é, “um princípio para tratar os conflitos de vontades”, o que significa que a justiça incumbe aos indivíduos. Mas considera que “uma objeção semelhante está à margem da questão” e que a ideia de Platão “não é uma questão de direito”, mas “uma concepção de moralidade social” (179) ; e continua dizendo que esse tratamento da justiça corresponde de certa forma às ideias gregas sobre a justiça mais difundidas naquela época: “Ao conceber a justiça nesse sentido, também não se acharia Platão muito distante das ideias então predominantes na Grécia”. Nem mesmo menciona que existem certas provas em contrário, como discutimos nas notas seguintes e no texto.
9 — Cf. Gorgias, 488e segs.; a passagem é mais amplamente citada e discutida na secção VIII deste capítulo (ver nota 48 a este cap. e texto). Para a teoria aristotélica da escravidão, ver nota 3 ao cap. 11 e texto. As citações de Aristóteles neste parágrafo são: 1) e 2) Ética a Nicomaco, V, 4, 7 e 8; 3) Pol. III, 12, 1; (1282b; ver também as notas 20 e 30 a este cap. A passagem contém uma referência à Et. Nicom.) ; 4) Et, Nicom., V, 4, 9. 5) Pol., IV (VI), 2, 1 (1317b). Na Et. Nicom. V, 3, 7 (cf. também Pol, III, 9, 1, 1280a) Aristóteles menciona também que o significado da palavra “justiça” varia nos estados democrático, oligárquico e aristocrático, de acordo com suas diferentes ideias sóbre o mérito.
Em relação com as Ideias de Platão, nas Leis, acerca da justiça e igualdade políticas, ver especialmente a passagem relativa aos dois tipos de igualdade (Leis, 757b/d), citada mais abaixo em (1). Quanto ao fato mencionado no texto de que não só a virtude e a origem como também a riqueza deveriam ser tidas em conta para a distribuição as honras e benefícios (e até mesmo o porte e a boa aparência) veja-se a passagem cb Leis, 744c, citada na nota 20 (1) a este capítulo, onde também se analisam outros textos de importância.
(1) Nas Leis, 757b/d, Platão analisa “duas espécies de igualdade”. “Uma delas… é a igualdade de medida, peso ou número (isto é, igualdade numérica ou aritmética) ; mas a verdadeira e melhor igualdade… é a que distribui mais aos maiores e menos aos menores, dando a cada um a medida devida, de acordo com a natureza… Ao conceder maiores honras aos que são superiores por suas virtudes e menores aos que são inferiores em virtude e origem, ela distribui a cada um o que é apropriado, de acordo com este princípio das proporções (racionais). E isto precisamente é o que chamaremos “justiça política”. Quem quer que funde um estado deve fazer disto o único objetivo de sua legislação…, a saber, esta justiça que, como dizemos, é a única igualdade natural e que se distribui, como o requer a situação, aos desiguais.” A segunda destas .duas igualdades, que constitui o que Platão chama “justiça política” (e que Aristóteles denomina “justiça distributiva”), descrita pelo primeiro (e também por Aristóteles) como igualdade proporcional — a melhor, a mais verdadeira e mais natural das igualdades — recebeu posteriormente o nome de geométrica (por exemplo, em Moralia, 719b e seg., de Plutarco), em contraposição à primeira, isto é, à igualdade inferior e democrática, que se denominou aritmética. Sobre esta identificação talvez lancem algo na luz as considerações contidas em (2).
(2) De acordo com a tradição (ver Comm. in Arist. Oraeca pars, XV, Berlim, 1897, p. 117,.29 e pars XVIII, Berlim, 1900, p. 118, 18), sobre a porta da Academia de Platão via-se a seguinte legenda : “ Quem não conhecer geometria não pode entrar em minha casa!” Suspeito de que a significação disto não é apenas acentuar a importância dos estudos matemáticos, mas, antes, quer dizer: “A aritmética (isto é, mais precisamente, a teoria pitagórica dos números) não é bastante; é mister conhecer geometria!” E tentarei esboçar as razões que me fazem crer que esta última frase resume adequadamente uma das mais importantes contribuições de Platão á ciência grega. Ver também “Adenda”.
Como agora geralmente se acredita, o primitivo tratamento pitagórico da geometria adotava um método um tanto similar ao que hoje se chama “aritmetização”. A geometria era tratada como parte da teoria dos números inteiros (ou números “naturais”, isto é, dos números compostos de mônadas, ou “ unidades indivisíveis”; cf. Rep. 525e) e de seus logoi, isto é, suas proporções “ racionais”. Por exemplo, os triângulos retângulos pitagóricos eram os de lados com tais proporções racionais. (São exemplos 3: 4: 5 ou 5: 12: 13. Uma fórmula geral, atribuída a Pitágoras é esta: 2n + 1: 2n(n + 1) : (2n + 1) +1. Mas esta fórmula, derivada do gnõmõn, não é bastante geral, como o mostra o exemplo 8:15:17. A seguir damos uma fórmula geral da qual se pode extrair a pitagórica, equiparando m = n+1; ei-la: m2-n2: 2mn: m2-|-n2 (de onde m > n). Embora esta fórmula seja uma consequência imediata do conhecido “ teorema de Pitágoras” (se considerada juntamente com esse tipo de álgebra que parece ter’ sido conhecido pelos primeiros pitagóricos platônicos), não só era desconhecida, presumivelmente, por Pitágoras, como também por Platão, (que propôs, segundo Proclo, outra fórmula menos geral) ; e parece ainda que o “teorema de Pitágoras” era ignorado, em sua forma geral, não só por Pitágoras como também por Platão. (Veja-se, para uma opinião menos radical a respeito, T. Heath, A History of Greek Mathematics, 1921, vol. I, p. 80-82. A fórmula que aqui classificamos como geral pertence, em essência, a Euclides ; pode-se chegar à fórmula desnecessariamente complicada de Heath, p. 82, obtendo primeiramente os três lados de um triângulo e multiplicando-os logo por 2/mn e substituindo no resultado final p e q por m e n).
A descoberta da irracionalidade da raiz quadrada de 2 (a que Platão alude no Hípias Maior e no Menon; cf. nota 10 ao cap. 8; ver também Aristóteles, Anal. Priora, 41a, 26 e segs.) destruiu o programa pitagó- rico de “ aritmetizar” a geometria e, com ele, ao que parece, a vitalidade da própria Ordem Pitagórica. A tradição de que a princípio se manteve rigoroso segredo esta descoberta parece ver-se confirmada pelo fato de que Platão continua ainda a chamar o irracional arrhêtos, isto é, o segredo, o mistério inefável; cf. Hípias Maior, 303b/c; Rep., 546c. (Um termo posterior é o de “incomensurável”; cf. Teetetes, 174c e Leis, 820c. O termo “alogos” parece apresentar-se pela primeira vez em Demócrito, que escreveu dois tratados Acerca das linhas irracionais e dos átomos (ou dos Corpos plenos), que se perderam; Platão conhecia o termo, como o demonstra sua alusão um tanto desrespeitosa ao título de Demócrito na República, 534d, mas nunca o usou ele próprio como um sinônimo de arrhêtos. O primeiro uso existente e indubitável nesse sentido é de Aristóteles, Anal. Post., 76b9. Ver também T. Heath, ob. cit., vol. I, p. 84 seg., 156 seg.).
Parece que a derrocada do programa pitagórico, isto é, do método aritmético da geometria, levou ao desenvolvimento do método axiomático de Euclides, isto é, a um novo método que de um lado se destinava a salvar da derrocada o que pudessem ser salvo (incluindo o método da prova racional) e de outro lado a aceitar a irredutibilidade da geometria à aritmética. Admitido tudo isso, pareceria altamente provável que o papel de Platão na transição do velho método pitagórico para o de Euclides fosse enormemente importante; de fato, Platão foi um dos primeiros a desenvolver um método especificamente geométrico tendente a salvar do naufrágio do pitagorismo o que pudesse ser salvo, lançando- se fora o imprestável. Muito disto deve ser considerado como hipótese histórica altamente incerta, mas alguma confirmação pode ser encontrada em Aristóteles, Anui. Post., 76b9 (acima mencionado), especialmente se essa passagem for comparada com Leis, 818c, 895e (par e ímpar) e 819e/820a, 820c (incomensurável). Diz a passagem “A Aritmética supõe a significação de “par” e “ímpar”, a geometria a de “irracional”…” Ou “incomensurável”; cf. Anal. Pr., 41a26 seg., 50a37. Ver também Metaf., 983a20, 106lbl-3, onde o problema da irracionalidade é tratado como se fosse o proprium da geometria, e 1089a, onde, como em Anal. Post., 76b40, há uma alusão ao método do “pé quadrado” do Teetetes, 147d).. O grande interesse de Platão pelo problema da irracionalidade é especialmente mostrado em duas das passagens acima mencionadas, o Teetetes, 147c-148a, e Leis, 819d-822d, onde Platão declara envergonhar-se dos Gregos por serem indiferentes ao grande problema das magnitudes incomensuráveis.
Ora, sugiro que a “Teoria dos Corpos Primários” (no Timeu, 53c a 62c, e talvez mesmo até 64a; ver também Rep., 528b-d) era parte da resposta de Platão ao desafio. Ela, de um lado, preserva o caráter atomista do pitagorismo — as unidades indivisíveis (“mônadas”) que também têm um papel na escola dos Atomistas — e introduz, por outro lado, as irracionalidades (das raízes quadradas de 2 e 3), cuja admissão no mundo se tornara inevitável. Faz isso tomando dois dos martirizantes triângulos retângulos — o que é metade de um quadrado e incorpora a raiz quadrada de 2 e o equivalente á metade de um triângulo equilátero e que incorpora a raiz quadrada de 3 — como unidades de que se acham compostas todas as demais coisas. Na verdade, a doutrina de que esses dois triângulos irracionais são os limites (peras; cf. Menon, 75d-76a) ou Formas de todos os corpos físicos elementares pode ser considerada uma das doutrinas físicas centrais do Timeu.
Tudo isso sugeriria que a advertência àqueles desconhecedores de geometria (uma alusão a ela talvez se encontre no Timeu, 54a) poderia ter tido a significação mais acentuada acima mencionada, e que se possa ter ligado à crença de que a geometria é algo de mais alta importância do que a aritmética. (Cf. Timeu, 31c). E isto, por sua vez, explicaria por que razão a “igualdade proporcional” de Platão, considerada por ele algo de mais aristocrático do que a igualdade democrática aritmética ou numérica, foi mais tarde identificada com a “igualdade geométrica”, mencionada por Platão no Górgias, 508a, (cf. nota 48 a este cap) e por que (por ex., Plutarco, ob. cit.) a aritmética e a geometria foram associadas, respectivamente, com a democíacia e a aristocracia espartana — apesar do fato, então aparentemente esquecido, de que os pitagóricos haviam sido de mentalidade tão aristocrática quanto a do próprio Platão, de que seu programa havia insistido na aritmética e de que o “geométrico”, em sua linguagem, é o nome de certa espécie de proporção numérica (aritmética).
(3) No Timeu, Platão necessita, para a construção dos Corpos Primários, de um Quadrado Elementar e de um Triângulo Equilátero Elementar. Estes dois, por sua vez, são compostos de duas espécies diferentes de triângulos sub-elementares, — o meio-quadrado, que incorpora V 2, e o meio equilátero, que incorpora V 3 respectivamente. A razão pela qual ele escolheu esses dois triângulos sub-elementares, em vez dos próprios Quadrado e Equilátero, tem sido muito discutida; e, similarmente, uma segunda questão — ver abaixo, em (4) a razão por que ele construiu seus Quadrados Elementares com quatro meios- quadrados sub-elementares, em vez de dois. (Ver as duas primeiras das três figuras abaixo).
Com relação à primeira destas duas questões, parece ter sido geralmente deixado de parte o fato de que Platão, com seu ardente interesse pelo problema da irracionalidade, não teria introduzido as duas irracionalidades V 2 e V 3 (que ele explicitamente menciona em 54b) se não estivesse ansioso por introduzir precisamente essas -irracionalidades como elementos irredutíveis em Seu mundo. (Cornford, Plato’s Cosmology, p. 214 e 231 segs., oferece longa discussão de ambas as questões, mas a solução comum que apresenta a ambas — sua “hipótese”, como ele a chama, à p. 234 — parece-me inteiramente inaceitável; se Platão tivesse querido realizar alguma “ gradação” como a discutida por Comford — e note-se que não há em Platão qualquer sugestão de existir algo menor do que aquilo que Comford chama “ Grau B”, — ter-lhe-ia bastado dividir em dois os lados dos Quadrados Elementares e dos Equiláteros do que Cornford chama “ Grau B”, construindo cada um deles a partir de quatro triângulos elementares que não contêm qualquer irracionalidade. Mas, se Platão estivesse ansioso por introduzir essas irracionalidades no mundo, como os lados de triângulos sub-elementares de que tudo o mais é composto, então ele deve ter crido que podia, a seu modo, resolver um problema; e sugiro que esse problema era o dá “natureza do (comensurável e do) incomensurável” (Leis, 820c). Este problema, claramente, era especialmente difícil de resolver á base de uma cosmologia que fizesse uso de algo como ideias atomistas, pois os irracionais não são múltiplos de qualquer unidade capaz de medir racionais; mas se a unidade que os mede contém lados de “ proporções irracionais”, então o grande paradoxo poderia ser resolvido, pois então ela poderia medir uns e outros e a existência de irracionais não seria mais incompreensível ou “ irracional”.
Mas Platão sabia que há mais irracionalidades do que V 2 e V 3, pois ele explicitamente menciona no Teetetes a descoberta de uma infinita sequência de raízes quadradas irracionais (fala também, 148b, de “ considerações similares relativas aos sólidos”, mas isto não necessita referir-se ás raízes cúbicas, e sim pode referir-se á diagonal cúbica, isto é, á raiz de 3) ; e ele também menciona, no Hípias Maior, 303b-c; cf. Heath, ob. cit., 304) o fato de que, somando (ou compondo de outro modo) irracionais, outros números irracionais podem ser obtidos (mas também números racionais, provavelmente alusão ao fato de que 2 menos V 2, por exemplo, é irracional; mas este número, mais V 2, dá sem dúvida um número racional). Em vista dessas circunstâncias, parece que, se Platão queria, resolver o problema da irracionalidade através da introdução de seus triângulos elementares, deveria ter pen-sado que todos os irracionais, (ou pelo menos seus múltiplos) podem ser compostos pelo acréscimo de: a) unidades; b) V2; c) V3 e múltiplos destes. Isto, sem dúvida, teria sido um engano, mas temos todas as razões para crer que não existia prova em contrário naquele tempo; e a proposição de que só há duas espécies de irracionalidades atômicas, as diagonais dos quadrados e dos cubos, e de que todas as outras irracionalidades são comensuráveis relativamente a: a) a unidade; b) V 2; cj V 3, tem certa porção de plausibilidade, se considerarmos o caráter relativo das irracionalidades. (Refiro-me ao fato de podermos dizer, com igual justificativa, que a diagonal de um quadrado com um lado igual á unidade é irracional ou que o lado de um quadrado com uma diagonal igual á unidade é irracional. Devemos lembrar também que Euclides, no Livro X, Def., 2, chama ainda todas as raízes quadradas incomensuráveis, “comensuráveis por seus quadrados”). Deste modo, Platão poderia ter acreditado nesta proposição, ainda que carecesse de uma prova válida de sua verdade. (Ao que parece, o primeiro a apresentar-lhe uma refutação foi Euclides). Ora, não pode haver dúvida de existir uma referência a certa conjectura não provada na’ mesma passagem do Timeu em que Platão se refere á razão que teve para escolher seus triângulos sub-elementares, pois diz: (Timeu, 53c/d)
“Todos os triângulos derivam de dois, cada um dos quais tem um ângulo reto…; destes triângulos, um (a metade de um quadrado) tem em cada lado a metade de um ângulo reto… e lados iguais; o outro (o escaleno)… tem lados desiguais. Suporemos que estes dois constituem os princípios primordiais … de acordo com uma explicação que combina a probabilidade (ou a conjectura provável) com a necessidade (a prova). Princípios como este e ainda outros mais remotos ainda são conhecidos pelo céu e por aqueles homens a quem o céu favoreceu”. E mais adiante, depois de explicar que existe um número interminável de triângulos escalenos, dos quais deve ser escolhido “o melhor”, e após explicar” que considera como o mais perfeito o equivalente á metade de um equilátero, diz Platão (Timeu, 54a/b; Cornford teve de modificar a passagem para enquadrá-la em sua interpretação; cf. sua nota 3 á p. 214) : “ A razão é muito longa de narrar; mas se alguém colocar este assunto á prova e demonstrar que ele tem esta propriedade, então o prêmio é seu, com toda a nossa boa vontade”. Platão não diz claramente que significa “ esta propriedade”; deve ser uma propriedad: matemática (provável ou refutável) que justifique que, havendo escolhido o triângulo que incorpora V 2, a escolha do que incorpora V 3 é “a melhor”; e penso que, em vista das considerações precedentes, a propriedade que ele tinha em mente era a conjectura racionalidade relativa dos outros irracionais, isto é, relativa á unidade e às raízes quadradas de 2 e 3.
(4) Uma razão adicional para nossa interpretação, embora para ela eu não encontre mais qualquer evidência nos textos de Platão, pode talvez emergir da consideração seguinte: É um fato curioso que V 2 -f- V3 muito de perto se aproximem de ir. (Minha atenção foi atraída para este fato, num diferente contexto, por W. Marinelli. A diferença para mais é inferior a 0,0047, isto é, menos do que 1 1/2 por mil de ir, e temos razão para crer que não se provou existir nenhum melhor limite superior para w. Uma espécie de explicação desse curioso fato é decorrer ele do fato de que a média aritmética das áreas do hexágono circunscrito e do octógono inscrito é uma boa aproximação da área do círculo. Ora, parece, de um lado, que Bryson operou com as médias dos polígonos circunscritos e inscritos (cf. Heath, ob. cit., 224); e sabemos, de outro lado, (pelo Hípias Maior) que Platão estava interessado em somar irracionais, de modo que deve ter somado V 2 + V 3. Há, assim, dois meios pelos quais Platão pode ter descoberto a equação aproximada V2 + V3«sir;eo segundo desses meios parece quase iniludível. Parece hipótese plausível a de que Platão conhecesse essa equação, mas fosse incapaz de provar se era ela ou não uma igualdade estrita ou apenas uma aproximação.
Mas, se assim é, então talvez possamos dar resposta à “ segunda questão” mencionada acima em (3), isto é, qual a razão por que Platão compôs seus quadrados elementares de quatro triângulos sub-elementares. (meios-quadrados) em vez de dois, e seus equiláteros elementares de seis triângulos sub-elementares (meios-equiláteros) em vez de dois. Se olharmos para as primeiras duas figuras abaixo, então veremos que esta construção acentua o centro dos círculos inscritos e circunscritos e, em ambos os casos, os raios do círculo circunscrito. (No caso do equilátero, o raio do círculo inscrito também aparece; mas acho que Platão tinha em mente o do círculo circunscrito, pois o menciona, em sua descrição do método de compor o equilátero, como a “diagonal”; cf. Tinteu. 54d/e; cf. também 54b).
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Se agora traçarmos estes dois círculos circunscritos, ou, mais especificamente, se inscrevermos o quadrado e o triângulo equilátero elementares num círculo de raio r, acharemos que a soma dos lados destas duas figuras se aproxima de nr; em outras palavras, a construção de Platão sugere uma das soluções aproximadas mais simples da quadratura do círculo, como o demonstram nossas três figuras. Em vista de tudo isso, bem poderia ocorrer que a conjectura de Platão e seu oferecimento de um “prêmio com toda a nossa boa vontade” — de que falamos em (3) — se referissem não só ao problema geral da comensurabilidade dos irracionais, mas também ao problema especial de se, a partir da soma das raízes quadradas de 2 e 3, se pode ou não chegar á quadratura do círculo.
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O retângulo ABCD tem uma área que excede a do círculo em menos de 1 1/2 por mil. Devo insistir novamente em que não possuo qualquer prova direta de que Platão haja pensado em tudo isto; mas se considerarmos a evidência indireta aqui oferecida, a hipótese já não parece tão descabelada. Não penso que o seja mais do que a hipótese de Cornford; e, se verdadeira, daria melhor explicação de importantes passagens.
(5) Se algo existe em nossa afirmação, desenvolvida na secção (2) desta nota, de que a inscrição de Platão significava — “A Aritmética não basta; é mister conhecer a geometria!” e em nossa asserção de que essa ênfase se ligava à descoberta da irracionalidade das raízes quadradas de 2 e 3, então isto pode lançar alguma luz sobre a teoria das Ideias e sobre os muito debatidos relatos de Aristóteles. Explicaria por que razão, em vista desta descoberta, a concepção pitagórica de que as coisas (formas, volumes) são números e as ideias morais proporções de números, teria de desaparecer — talvez para ser substituída, como no Timeu, pela doutrina de que as formas elementares, ou limites (“peras”; cf. a passagem de Menon, 75d-762, acima referida), ou volumes, ou ideias de coisas, são triângulos. Mas também explicaria por que, uma geração mais tarde, podia a Academia voltar à doutrina pitagórica. Uma vez dissipado o choque causado pela descoberta da irracionalidade, os matemáticos começaram a acostumar-se à ideia de que os irracionais devem ser números, apesar de tudo, visto como permanecem dentro das relações elementares de maior ou menor para com os outros números (racionais). Alcançada esta etapa, desaparecem as razões contra o pitagorismo, embora a teoria de serem as formas números ou razões de números signifique, após a admissão dos irracionais, algo diferente do que significara antes disso (ponto que possivelmente não foi avaliado por inteiro pelos adeptos da nova teoria).
10 — A conhecida representação de Temis com os olhos vendados, isto é, sem prestar atenção aos rogos do suplicante, e levando uma balança para distribuir a igualdade ou para pesar as aspirações e interesses dos indivíduos em disputa, é uma representação simbólica da ideia igualitária da justiça. Essa representação não pode, porém, ser aqui usada como um argumento em favor da asserção de que essa ideia era corrente na época de Platão, pois, como o Prof. E. H. Gombrich bondosamente me informa, ela data da Renascença, remontando a uma passagem de De Iside et Oriside de Plutarco, mas não á Grécia clássica. * Por outro lado, a representação de Diké com balanças é clássica (sobre tal representação, de Timócares, uma geração depois de Platão, ver R. Eisler, The Royal Art of Astronomy, 1946, p. 100, 266 e gravpra 5) ç remonta, provavelmente, á identificação feita por Hesíodo da constelação da Virgem com Diké (em vista da proximidade das balanças). E em vista de outros dados aqui apresentados para mostrar a associação da Justiça, ou Diké, com a igualdade distributiva, as balanças provavelmente significam o mesmo que no caso de Têmis.
11 — Rep., 440c-d. A passagem conclui com Uma característica metáfora de cão ovelheiro: “ Ou então, até que ele tenha sido chamado de volta e acalmado, pela voz de sua própria razão, como um cão por seu pastor?” Cf. nota 32 (2) ao cap. 4.
12 — Platão, de fato, implica isso quando, por duas vezes, apresenta Sócrates como hesitante a respeito de onde procurar pela justiça. (Cf. 368b e segs., 432b e segs.).
13 — Adam evidentemente não leva em conta (sob a influência de Platão) a teoria igualitária em sua nota à Rep., 331 segs., onde diz, provavelmente com razão, que “a ideia de que a Justiça consiste cm fazer bem aos amigos e dano aos inimigos constitui um fiel reflexo da moralidade grega predominante”. Erra entretanto quando acrescenta que esta era “uma ideia universal”, pois esquece seu próprio testemunho (nota a 561e28) que demonstra que a igualdade perante a lei (isonomia) “era a orgulhosa aspiração da democracia”. Ver também as notas 14 e 17 a este capítulo.Uma das referências mais antigas (senão a mais antiga) á “isonomia” se encontra num fragmento original de Alcmeon, o médico (princípios do século V; ver Diels S, cap. 24, fragm. 4) ; fala ele da isonomia como uma condição da saúde e a opõe à “monarquia”, o domínio de uma só pessoa sobre todas as demais. Encontramos aqui, pois, uma teoria política do organismo, ou melhor, da fisiologia humana. Cf. também notas 32 ao cap. S e 59 ao cap. 10.
14 — Uma referência passageira á igualdade (semelhante á de Górgias, 483c/d; ver também esta nota, abaixo, c nota 47 a este capítulo) é feita no discurso de Glaucon na República, 359c; mas o problema não é encarado. (Sobre essa passagem cf. nota 50 a este capítulo).
No injurioso ataque de Platão á democracia (ver texto de notas 14-18, cap. 4) ocorrem três referências jocosas e depreciativas. A primeira é uma observação no sentido de que a democracia “distribui igualdade aos iguais e aos desiguais igualmente” (558c; cf. nota de Adam a 558cl6; ver também nota 21 a este capítulo); isto pretende ser uma crítica irônica. (A igualdade fora antes relacionada com a democracia, a saber, na descrição da revolução democrática; cf. Rep., 557a, citada no texto de nota 13, cap. 4). A segunda caracteriza o “homem democrático” como dando satisfação a todos os seus desejos “igualmente”, quer sejam bons ou maus; é ele, portanto, chamado “ igualitarista” (“isonomista”), em trocadilhesca alusão á ideia de “leis iguais para todos” ou “igualdade perante a lei” (“isonomia”; cf. notas 13 e 17 a este capítulo). Este jogo de palavras ocorre na Rep., 561e. O caminho para ele foi bem calçado, pois a palavra “igual” já fora usada três vezes (Rep., 561b e c) para caracterizar a atitude de um homem para o qual todos os caprichos e desejos são “ iguais”. A terceira dessas baratas explosões é um apêlo á imaginação do leitor, típico mesmo hoje desse tipo de propaganda: “ Quase me esquecia de mencionar o grande papel desempenhado por essas famosas “ leis iguais” e por essa famosa “liberdade” nas relações mútuas de homens e mulheres…” (Rep., 563b).
Além das provas da importância do igualitarismo aqui mencionadas (e no texto de notas 9 e 10 deste capítulo) devemos considerar especialmente o próprio testemunho de Platão em (1) Górgias, onde expressa (488e/489a; ver também notas.47, 48 e 50 deste capítulo): “Não crê a multidão (ou seja, aqui, a maioria do povo)… que a justiça é igualdade?”; (2) no Menexeno (238e-239a; ver nota 19 a este capítulo e texto). As passagens das Leis acerca da igualdade são posteriores às da Rep. e não podem ser utilizadas como testemunho de que Platão tivesse consciência do problema quando escreveu a República; não obstante, ver texto de notas 9, 20 e 21 deste capítulo.
15 — Eis o que o próprio Platão disse com relação a esta terceira observação (563b; cf. a nota precedente) : “Devemos dizer o que nos vem aos lábios?”, com o que deseja indicar, aparentemente, que não vê razão para suprimir a pilhéria.
16 — Acredito que a versão de Tucídides (II, 37 segs.) da oração de Péricles pode ser considerada como praticamente autêntica. Com toda probabilidade ele se achava presente quando Péricles a proferiu e, de qualquer modo, tela-ia reconstruído com a maior fidelidade possível. Existem boas razões para supor que naquela época não era extraordinário que um homem aprendesse discursos de outro, mesmo de memória (cf. o Fedro, de Platão), e uma fiel reconstrução de um discurso desse tipo não é deveras tão difícil como se poderia pensar. Platão conhecia a oração, quer através da versão de Tucídides, quer por outras fontes, que, nesse caso, deveriam ser muito parecidas e igualmente autênticas. Cf. também as notas 31 e 34-35 ao cap. 10. (Convém mencionar aqui que, nus começos de sua carreira, Péricles havia feito concessões bastantes duvidosas aos instintos tribais populares e ao egoísmo de grupo do povo, igualmente popular; refiro-me á legislação relativa á cidadania, do ano 451 A. C. Posteriormente, entretanto, retificou sua atitude para com essas questões, provavelmente sob a influência de homens tais como Protágoras).
17 — Cf. Heródoto, III, 80, esp. o elogio da “isonomia”, ou seja, a igualdade perante as leis (III, 80, 6); ver também as notas 13 e 14 a este capítulo. A passagem de Heródoto, que influiu sobre Platão também de outros modos (cf. nota 24 ao cap. 4) é aquela que Platão ridiculariza na Rep., assim como havia feito com a oração de Péricles; cf. nota 14 ao cap. 4 e 34 ao cap. 10.
18 — Nem mesmo o naturalista Aristóteles se refere sempre a esta versão naturalista do igualitarismo; por exemplo, sua formulação dos princípios da democracia na Política, 1317b (cf. nota 9 a este cap. e texto) é completamente independente dela. Mas talvez ainda mais interessante é que, no Górgias, em que a oposição entre natureza e convenção desempenha papel tão importante, Platão apresenta o igualitaristno sem sobrecarregá-lo com a duvidosa teoria da natural igualdade de todos os homens (ver 488e/489a, cit. na nota 14 a este capítulo, e 483d, 484a e 508a).
19 — Cf. Menexeno, 238e-239a. O trecho segue-se imediatamente a uma clara alusão á oração de Péricles (a saber, á segunda sentença citada no texto de nota 17 neste capítulo). — Não parece improvável que a reiteração do termo “nascimento igual” nessa passagem signifique uma alusão escarnecedora ao “’baixo” nascimento dos filhos de Péricles e Aspásia, que só foram reconhecidos como cidadãos atenienses por legislação especial, em 429 A. C. (Cf. E. Meyer, Gesch. d. Altertmns, vol. IV, p. 14, nota ao n.° 392 e p. 323, n.° 558).
Tem sido afirmado (mesmo por Grote; cf. seu Platão, III, p. 11) que Platão no Menexeno, “e, seu próprio discurso retórico… abandona a veia irônica”, isto é, que a parte média do Menexeno, de que foi tirada a citação do texto, não tem intenção irônica. Mas esta opinião me parece insustentável se se leva em conta a passagem citada relativa á igualdade e o aberto desprezo de Platão, na Rep., quando se ocupa desse ponto (cf. nota 14 a este capítulo). E parece-me igualmente impossível por em dúvida o caráter irônico da passagem que precede imediatamente a citada no texto, onde Platão diz de Atenas (cf. 238c/d) : “Nessa época, assim como no presente… nosso governo era sempre uma aristocracia; embora seja às vezes chamado democracia, é, na realidade, uma aristocracia, isto é, o governo dos melhores, com a aprovação da maioria…” Tendo em vista o ódio de Platão à democracia, esta descrição não requer comentário algum.
Outra passagem indubitavelmente irônica é a de 245c/d (cf. nota 48 ao cap. 8) onde “Sócrates” louva Atenas por seu coerente ódio aos estrangeiros e aos bárbaros. Visto como em outra parte Rep., 562 e segs., cit. na nota 68 ao cap. 8), em um ataque à democracia — e isto significa a democracia ateniense — Platão zomba de Atenas devido ao tratamento liberal dispensado aos estrangeiros, seu louvor no Menexeno só pode ser ironia; do mesmo modo, a liberalidade de Atenas é ridicularizada por um partidário de Esparta. (Era proibida a residência de estrangeiros em Esparta, por uma lei de Licurgo; cf. Aristófanes, As Aves). É interessante, a este respeito, notar que no Menexeno (236a; cf. nota 15 (1) ao cap. 10), onde “Sócrates” é um orador que ataca Atenas, Platão diz que este havia sido discípulo do chefe do partido oligárquico, Antifonte, o orador (de Ramnus; não confundir com Antifonte, o Sofista, que era ateniense) ; e é especialmente interessante em vista de “ Sócrates” fazer uma paródia de um discurso registrado por Tucídides, que parece ter sido realmente discípulo de Antifonte, a quem profundamente admirava. * Quanto à autenticidade do Menexeno, ver também nota 35 ao cap. 10.
20 — Leis, 757a; cf. toda a passagem 757a-e, de que foram citadas as partes principais na nota 9 (1) a este capítulo.
(1) Em relação ao que chamo a objeção-padrão ao igualitarismo, cf. também Leis, 744b segs. “Seria excelente se todos pudessem… ter todas as coisas em igual medida; mas já que isto é impossível…”, etc. A passagem é particularmente interessante pelo fato de que muitos escritores que julgam Platão apenas com base na República costumam considerá-lo inimigo da plutocracia. Todavia, nesta importante passagem das Leis (744b e segs.) Platão exige que “os cargos políticos e as contribuições, assim como as distribuições, sejam proporcionais ao montante da riqueza de cada cidadão. E não só dependerão de sua virtude ou da de seus antepassados, de sua aparência ou do porte corporal, como também de sua riqueza ou pobreza. Deste modo, cada cidadão receberá benefícios e cargos tão equitativamente quanto possível, isto é, em pro- porção com sua riqueza, embora de acordo com um princípio de distribuição desigual”. * A doutrina da distribuição desigual das honras e, podemos também admitir, dos proventos, em proporção à riqueza e ao porte corporal, constitui provavelmente um resíduo da época heroica da conquista. Os poderosos, donos de armas pesadas e custosas e dotados de maior vigor físico, são os que em maior medida contribuem para a vitória. (O princípio foi aceito nos tempos homéricos e pode encontrar- se, como assegura R. Eisler, praticamente em todos os casos conhecidos de hordas guerreiras conquistadoras) *. A ideia básica desta atitude, a saber, a de que é injusto tratar igualmente os desiguais, já se pode achar numa observação passageira do Protágoras, 337a (ver também Górgias, 508a seg., mencionado em notas 9 e 48 a este capítulo) ; mas Platão não fez muito uso da ideia antes de escrever as Leis.
(2) Sobre a elaboração destas ideias por Aristóteles, cf. esp. sua Pol. III, 9, 1, 1280a (ver também 1282b-1284b e 1301b29), onde ele escreve: “Todos os homens se aferram a algum tipo de justiça, mas suas concepções são imperfeitas e não abarcam a Ideia total. Por exemplo, pensam da justiça (os democratas) que é igualmente, e assim é, com efeito, mas não igualdade para todos, e tão só para os iguais. E pensam também (os oligarcas) que a justiça é desigualdade; e assim é com efeito, mas não para todos, e tão só para os desiguais”. Cf. ainda Et. Nicom., 1131b27, 1158b30 e segs.
(3) Contra todo esse anti-igualitarismo, sustento, com Kant, que deve ser princípio de toda moral o de que nenhum homem se considere a si próprio mais valioso do que outro. E afirmo que este princípio é o único aceitável, se considerarmos que é evidente a impossibilidade de alguém julgar a si mesmo com imparcialidade. Não posso compreender, portanto, a seguinte observação de um autor de tanto mérito como Catlin (Principies, 314) : “ Há algo de profundamente imoral na moralidade de Kant, que se esforça por colocar todas as personalidades no mesmo nível… e ignora o preceito aristotélico de tornar iguais os iguais e desiguais os desiguais. Um homem não pode possuir social- mente_ os mesmos direitos que outro… Quem escreve estas linhas não poderia de forma alguma estar disposto a negar… que existe algo no “sangue”. E eu indago: se houvesse algo no “sangue”, ou na desigualdade _ de talento, etc., e ainda se valesse a pena perder tempo para verificar essa diferença, e ainda que fosse possível fazê-lo, por que, então, tomá-la como base e de maiores direitos e não, só, de maiores deveres?^ (Cf. o texto de notas 31/32, cap. 4). Devo confessar que não consigo atinar com a profunda imoralidade do igualitarismo de Kant. E não consigo igualmente ver em que baseia Catlin seu juízo moral, desde que considera a moral uma questão de gosto. Por que haveria de ser o “gôsto” de Kant profundamente imoral? (Não será demais mencionar que é o mesmo “gôsto” do cristianismo). A única resposta admissível a esta pergunta é que Catlin julga de seu ponto de vista positivista (cf. nota 18 (2) ao cap. 5) e que reputa imoral a exigência cristã e kantiana porque esta contradiz as avaliações morais impostas positivamente em nossa sociedade contemporânea.
(4) Uma das melhores respostas já dadas a todos estes anti-igualitaristas é devida Rousseau. Digo isto apesar de que seu romantismo (cf. nota 1 a este capítulo) foi uma das mais perniciosas influências da história da filosofia social. Mas ele era também um dos poucos escritores realmente brilhantes desse setor. Cito uma de suas excelentes observações da Origem da Desigualdade (ver, p. ex., a edição Everyman do Contrato Social, p. 174; os grifos são meus) ; e desejo chamar a atenção do leitor para a digna formulação da última frase desta passagem: “Concebo duas espécies de desigualdade na espécie humana; uma, que chamo natural ou física, por ser estabelecida pela natureza, consiste nas diferenças de idade, saúde, vigor físico ou qualidades mentais ou espirituais; a outra, que poderia chamar-se moral ou política, depende de uma série de convenções e está estabelecida, ou pelo menos autorizada, pelo consentimento dos homens. Reside nos diferentes privilégios de que desfrutam alguns homens… tais como os de ser mais ricos, possuir mais honras ou mais poder… É,inútil indagar qual é a fonte da desigualdade natural, porque a própria pergunta é respondida pela simples definição da palavra. E, igualmente, é ainda mais inútil indagar se há ou não alguma relação entre as duas desigualdades; com efeito, isto só equivaleria a indagar, em outras palavras, se os que mandam são ou não necessariamente melhores que os que obedecem, e se o vigor corporal, ou da mente, a sabedoria ou a virtude se acham sempre… em proporção com o poder ou riqueza de um homem; tal questão cabe, talvez, para ser discutida por escravos ao alcance dos ouvidos de seus senhores, mas é altamente inconveniente a homens livres e razoáveis que, buscam a verdade.
21 — Rep., 558c; nota 14 a éste capítulo (primeira passagem do ataque contra a democracia).
22 — Rep., 433b. Adam, que também reconhece ter a passagem a intenção de ser um argumento, tenta reconstruir o argumento (nota a 433bll); mas confessa que “ Platão raras vezes deixa tanto a ser mentalmente suplementado em seu raciocínio”.
23 — Rep., 433e/434a. — Sobre uma continuação da passagem, cf. texto de nota 40 ao capítulo presente; para a sua preparação nas partes anteriores da Rep., ver nota 6 a este capítulo. — Adam assim comenta a passagem que chamo o “segundo argumento” (nota a 433e35) : “ Platão está á busca de um ponto de contacto entre sua própria concepção da Justiça e a popular significação judicial da palavra…” (Ver a passagem citada no parágrafo seguinte do texto). Adam tenta defender o argumento de Platão contra um crítico (Krohn) que, embora não muito claramente, viu que ali havia algo de errado.
24 — As citações deste parágrafo são de Rep., 430d segs.
25 — Este artifício parece ter tido sucesso mesmo com um crítico da agudeza de Gomperz, que, em sua breve crítica (Greek Thinkers, livro V, II, 10; ed. alemã, vol. II, p. 378/379) deixa de mencionar a fraqueza do argumento; diz até, ao comentar os dois primeiros livros (V, II, 5; p. 368) : “ Segue-se uma exposição que pode ser considerada como um milagre de clareza, precisão e genuíno caráter científico…” acrescentando que os interlocutores de Platão, Glaucon e Adeimanto, “ levados por seu ardente entusiasmo, afastam e previnem todas as soluções superficiais”.
Para minhas observações sobre a temperança, no parágrafo seguinte do texto, ver a seguinte passagem da “ Análise” de Davies e Vaughan (cf. a edição Golden Treasury da Rep., p. XVIII; os grifos são meus) : “ A essência da temperança é a restrição. A essência da temperança política reside no reconhecimento do direito do organismo governante á lealdade e obediência dos governados.” Isso pode demonstrar que minha interpretação da ideia platônica da temperança é compartilhada (embora expressa em terminologia diferente) pelos adeptos de Platão. Posso acrescentar que a “ temperança”, isto é, a satisfação com o lugar de cada qual, é uma virtude de que todas as três classes compartilham, embora seja a única virtude de que os trabalhadores podem participar. Assim a virtude atingida pelos trabalhadores ou mercadores é a temperança; as virtudes ao alcance dos auxiliares são a temperança e a coragem; ao alcance dos guardiães, a temperança, coragem e sabedoria.
O “extenso prefácio”, também citado no parágrafo seguinte, é de Rep., 432 segs.
26 — Um comentário terminológico pode ser feito aqui sobre a palavra “coletivismo”. O que H. G. Wells chama “coletivismo” nada tem a ver com o que chamo por esse nome. Wells é um individualista (no sentido que dou á palavra), como se mostra especialmente em seus Rights of Man e Common Sense of War and Peace, que contêm formulações muito aceitáveis das exigências de um igualitarismo individualista. Mas ele também acredita, com razão, no planejamento racional de instituições políticas, com o fito de promover a liberdade e o bem estar dos seres humanos individuais. A isto ele chama “ coletivismo”; para descrever o que acredito ser a mesma coisa que o seu “coletivismo” eu deveria usar uma expressão como “planejamento racional institucional para a liberdade”. Esta expressão pode ser extensa e arrastada, mas evita o perigo de que o “ coletivismo” possa ser interpretado no sentido anti-individualista em que é tantas vezes usado, e não só no presente livro.
27 — Leis, 903c; cf. texto de nota 35, cap. 5. O “preâmbulo” mencionado no texto (“Mas ele tem necessidade… de algumas palavras de conselho para agirem como um encanto sobre ele”, etc) é de Leis, 903b.
28 — Há inúmeros locais na República e nas Leis em que Platão adverte contra o irrefreado egoísmo de grupo; cf., por exemplo, Rep.. 519e e as passagens referidas na nota 41 a este capitulo.
Com relação á identidade que tantas vezes se alega existir entre coletivismo e altruísmo, posso citar, nesta conexão, a muito pertinente pergunta de Sherrington, que indaga, em Man On His Nature (p. 388) : “Têm altruísmo o cardume e o rebanho?”
29 — Para o errôneo desprezo de Dickens pelo Parlamento cf. também nota 23 ao cap. 7.
30 — Aristóteles, Pol., III, 12, 1 (1282b) ; cf. texto de notas 9 e 20 deste capítulo. (Cf. também observação de Aristóteles em Pol., III, 9, 3, 1280a, no sentido de que a justiça pertence às pessoas assim como às coisas). Com a citação de Péricles, mais adiante neste parágrafo, cf. texto de nota 16 a este capítulo e nota 31 ao cap. 10.
31 — Esta observação é de uma passagem (Rep., 519e sg.) citada no texto de nota 35, cap. 5.
32 — As importantes passagens das Leis citadas neste parágrafo (1) e no seguinte (2) são:
(1) Leis, 739c segs. Platão refere-se aqui a Rep. e aparentemente, em especial, a Rep. 462a sgs., 424a e 449e.
(Uma lista de trechos sobre o coletivismo e o holismo pode ser encontrada na nota 35 ao cap. 5. Sobre seu comunismo, ver nota 29 (2) ao cap. 5 e outros pontos ali mencionados). O trecho aqui citado começa, caracteristicamente, com uma citação da máxima pitagórica “ Os amigos têm em comum todas as coisas que possuem”. Cf. nota 36 e texto; cf. também as “refeições em comum” mencionadas na nota 34.
(2) Leis, 942a sg.; ver a nota seguinte. Ambas essas passagens são classificadas como anti-indivídualistas por Gompers (ob. cit., vol. II, 406).
33 — Cf. nota 42, cap. 4 e texto. — A citação que se segue no presente parágrafo é de Leis, 942a sg. (ver a nota anterior).
Não devemos esquecer que a educação militar nas Leis (como na Rep.) é obrigatória para todos os que têm permissão de portar armas, isto é, para todos os cidadãos, aqueles todos que têm algo como direitos civis (cf. Leis, 753b). Os detnais são todos “banáusicos”, quando não escravos (cf. Leis, 741e e 743d, e nota 4 ao cap. 11).
É interessante ver que Barker, que odeia o militarismo, acredita que Platão mantinha opinião semelhante (Greek Political Theory, 298-301). Na verdade, Platão não elogia a guerra e chega mesmo a falar contra ela. Mas muitos militaristas pregam paz e praticam guerra ; e o estado de Platão é governado pela casta militar, isto é, pelos sábios ex-soldados. Esta observação vale tanto para as Leis (cf. 753b) comó para a República.
34 — Estrita legislação a respeito das refeições — especialmente das “refeições em comum” — e também acerca dos costumes de beber, desempenha considerável parte na obra de Platão; cf. p. ex., Rep. 416e, 458c, 547d/e; Leis, 625e, 633a (onde as refeições obrigatórias em comum se dizem instituídas com vistas à guerra), 762b, 780-783, 806c sg., 839c, 842b. Platão sempre acentua a importância das refeições em comum, de acordo com os costumes de Creta e Esparta. Interessante é também a preocupação do tio de Platão, Crítias, com essas questões. (Cf. Diels 2, Crítias, fr. 33).
Com a alusão á anarquia das “bestas ferozes”, no final da presente citação, cf. também Rep. 563c.
35 — Cf. E. B. England, em sua edição das Leis, vol. I, p. 514, nota a 739b8 segs. As citações de Barker, ob. cit., são: pág. 149 e 148. Incontáveis passagens similares podem ser encontradas nos escritos da maioria dos platônicos. Ver, porém, a observação de Sherrington (cf. nota 28 a éste capítulo) de que dificilmente será correto dizer que um cardume ou um rebanho sejam inspirados pelo altruísmo. O instinto de grei e o egoísmo tribal, assim como o apêlo a esses instintos, não devem ser misturados com a abnegação.
36 — Cf. Rep., 424a, 449c ; Fedro, 279c ; Leis, 739c : ver nota 32 (1). (Cf. também Lisis, 207c e Eurípides, Orest., 725). Para a possível conexão deste princípio com o comunismo dos cristãos primitivos e dos marxistas ver nota 29 (2) ao cap. 5.
Com referência à teoria individualista da justiça e da injustiça do Górgias, cf. p. ex. os exemplos dados no Górgias, 468b segs., 508d/e. Essas passagens provavelmente ainda mostram influência socrática (cf. nota 56 ao cap. 10). O individualismo de Sócrates é mais claramente expresso em sua’ famosa doutrina da auto-suficiência do homem bom; doutrina que é mencionada por Platão na Rep., (387d/e) apesar do fato de contradizer redondamente uma das principais teses da Rep., a saber, a de que somente o estado por ser auto-suficiente. (Cf nota 25 e o texto dessa e das notas seguintes, cap. 5).
37 — Rep., 368b/c.
38 — Cf. especialmente Rep., 344a segs.
39 — Cf. Leis, 923b.
40 — Rep., 434a-c. (Cf. também texto de nota 6 e nota 23 ao presente capítulo, e notas 27 (3) e 31, cap. 4).
41 — Rep., 466b-c. Cf. também Leis, 715b-c e muitas outras passagens contra o mau uso anti-holístico das prerrogativas de classe. Ver também nota 28 a este capítulo e nota 25 (4) ao cap. 7.
42 — O problema a que aqui se alude é o do “paradoxo da liberdade”; cf. nota 4, cap. 7. — Para o problema do controle da educação pelo estado, ver nota 13 ao cap. 7.
43 — Cf. Aristóteles, Pol., III, 9, 6, sgs. (1280a). Cf. Burke, French Révolution (ed. 1815, vol. V, 184; a passagem é apropriadamente citada por Jowett em suas notas ao trecho de Aristóteles; ver sua edição da Pol. de Aristóteles, vol. II, 126). A citação de Aristóteles mais
adiante no parágrafo é ob. cit., III, 9, 8 (1280b).
Field, por exemplo, oferece crítica semelhante (em seu Plato and His Contemporaries, 117): “Não se discute que a cidade e suas leis exerçam algum efeito educativo sobre o caráter moral de seus cidadãos”. Green, contudo, claramente mostrou (em suas Lectures on Political Obligation) que é impossível ao estado impor a moralidade por meio da lei. Ele teria certamente concordado com a fórmula: “Queremos moralizar a política e não politizar a moral”. (Ver o fim deste parágrafo no texto). A opinião de Green é antecipada por Spinoza {Tract. Theol. Pol. cap. 20): “Quem procura regular tudo por meio da lei tem mais possibilidade de encorajar o vicio que de sufocá-lo.”
44 — Considero a analogia entre a paz civil e a paz internacional, e entre o crime comum e o crime internacional, como fundamental para qualquer tentativa de colocar sob controle o crime internacional. Para essa analogia e suas limitações, assim como para a pobreza do método historicista em tais problemas, cf. nota 7 ao cap. 9.
Entre aqueles que consideram um sonho utópico os métodos racionais para estabelecimento da paz internacional, pode ser mencionado H. J. Morgenthau (cf. seu livro Scientific Man Versus Power Politics, ed. inglesa, 1947). A posição de Morgenthau pode ser resumida como a de um historicista desiludido. Compreende ele que as predições históricas são impossíveis; mas, como admite (com os marxistas, por exemplo) que o campo de aplicabilidade da razão (ou do método científico) é limitado ao campo da previsibilidade, conclui da imprevisibilidade dos acontecimentos históricos que a razão é inaplicável ao campo dos negócios internacionais.
A conclusão não é imediata, pois a predição científica e a predição no sentido da profecia histórica não são a mesma coisa. (Nenhuma das ciências naturais, com praticamente a exceção exclusiva da teoria do sistema solar, tenta qualquer coisa de parecido á predição histórica). A tarefa da ciência social não é predizer “inclinações” ou “tendências” do desenvolvimento, nem é essa a tarefa das ciências naturais. “O melhor que as chamadas “ leis sociais” podem fazer é exatamente o que de melhor podem fazer as chamadas “leis naturais”, a saber, indicar certas tendências… Nem as ciências sociais, nem as naturais, são capazes de prever quais as condições que efetivamente ocorrerão e ajudarão determinada tendência em particular a materializar-se. Também não podem prever, com mais certeza do que um alto grau de probabilidade, que, em presença de certas condições, certas tendências se materializem”, escreve Morgenthau (p. 120 sg.; grifos meus). Mas- as ciências naturais não tentam a predição de tendências e só os historicistas acreditam que elas e as ciências sociais tenham tais objetivos. Em consequência, a verificação de que esses objetivos não são realizáveis desilude somente os historicistas. “Muitos… cientistas políticos, entretanto, afirmam que podem… efetivamente… predizer acontecimentos sociais com alto grau de certeza. Na verdade… são vítimas de… ilusões”, escreve Morgenthau. Concordo, certamente; mas isto apenas mostra que o historicismo deve ser repudiado. Admitir, porém, que o repúdio do historicismo signifique o repúdio do racionalismo em política revela um preconceito fundamentalmente historicista: a saber, o preconceito de que a profecia histórica é a base de qualquer política racional (Mencionei essa concepção como característica do historicismo no início do cap. 1).
Morgenthau ridiculariza todas as tentativas de colocar o poder sob o controle da razão e de suprimir a guerra, como oriundas de um racionalismo e um cientismo inaplicáveis à sociedade por sua própria essência. Mas é claro que ele prova demais. A paz civil tem sido estabelecida em muitas sociedades apesar daquela ambição essencial de poder que, de acordo com a teoria de Morgenthau, deveria impedi-la. Ele admite esse fato, sem dúvida, mas não vê que ele destrói a base teórica de suas asserções românticas.
45 — A citação é de Aristóteles, Pol., III, 9, 8 (1280).
(1) Digo no texto “além disso” porque acredito que as passagens a que o texto alude, isto é, Pol. III, 9, 6 e III, 9, 12 possivelmente também representem opiniões de Licofronte. Minhas razões para assim crer são as seguintes. De III, 96 a III, 9, 12, Aristóteles empenha-se numa crítica á doutrina que chamei protecionismo. Em III, 9, 8, cit. no texto, diretamente ele atribui a Licofronte uma concisa e perfeitamente clara formulação dessa doutrina. Das outras referências de Aristóteles a Licofronte (ver (2) nesta nota) é provável que Licofronte, dada sua idade, tenha sido, quando não o primeiro, pelo menos um dos primeiros a formular o protecionismo. Assim, parece razoável supor (embora não seja absolutamente certo) que todo o ataque ao protecionismo, isto é, III, 9, 6 a III, 9, 12, é dirigido contra Licofronte e que as várias mas equivalentes formulações do protecionismo sejam todas deste. (Também se pode mencionar que Platão descreve o protecionismo como uma “opinião comum”, em Rcp., 358c).
As objeções de Aristóteles pretendem todas mostrar que a teoria protecionista é incapaz de explicar a unidade local assim como a interna do estado, não levando em conta, sustenta ele (III, 9, 6), o fato de que o estado existe em função do bem estar, de que nem os escravos nem os animais podem ter quinhão (isto é, em função do bem estar do virtuoso proprietário de terras, pois todos os que percebem dinheiro, em vista de sua ocupação “banáusica”, são impedidos de obter cidadania). E ainda não leva em conta a unidade tribal do “verdadeiro” estado, que é (II, 9, 12) “uma comunidade de bem estar em famílias e uma agregação de famílias em razão de uma vida completa e auto- suficiente… estabelecida entre pessoas que vivem no mesmo lugar e que se casam entre si.”
(2) Para o igualitarismo de Licofronte, ver nota 13 ao cap. 5. — Jowett (em Aristotle’s Politics, II, 126) descreve Licofronte como um “retórico obscuro”; mas Aristóteles deve ter pensado diversamente, pois, nos escritos que dele nos restam, menciona Licofronte pelo menos seis vezes. (Em Pol., Ret., Frag., Met., Fis., Sof. El.).
É improvável que Licofronte fôsse muito mais jovem do que Alcidamas, seu colega na escola de Górgias, pois seu igualitarismo não teria chamado tanta atenção se tivesse sido conhecido depois que Alci- damas sucedeu a Górgias na direção da escola. Os interesses epistemológicos de Licofronte (mencionados por Aristóteles em Met., 1045b9, e Fis., 185b27) são também um fator a notar, pois tornam provável que ele fôsse discípulo do primeiro período de Górgias, isto é, antes que Górgias se limitasse prática e exclusivamente á retórica. Sem dúvida, qualquer opinião sobre Licofronte deve ser altamente especulativa, dadas as escassas informações que temos.
46 — Barker, Greek Political Theory, I, p. 160. Para a crítica de Hume à versão histórica da teoria do contrato, ver nota 43 ao cap. 4. Relativamente á afirmação posterior de Barker (p. 161) de que a justiça de Platão, em contraposição á da teoria do contrato, não é “ algo externo” e sim interno, com respeito á alma, permito-me recordar ao leitor as frequentes recomendações de Platão para que se usassem severas sanções a fim de obter’a justiça; permanentemente aconselha ele o uso da “persuasão e da força” (cf. notas 5, 10 e 18 ao cap. 8). Por outro lado, alguns estados democráticos mostraram que é possível ser liberal e indulgente sem aumentar a criminalidade.
Quanto á minha observação de que Barker ve em Licofronte (como eu vejo) o autor da teoria do contrato, cf. Barker, ob. cit., p. 63: “ Protágoras não se antecipou ao sofista Licofronte ao elaborar a teoria do contrato”. (Cf. com isto o texto de nota 27, cap. S).
47 — Cf. Górgias, 483b sgs.
48 — Cf. Górgias, 488 sgs. Dado o modo por que aqui Sócrates replica a Calicles, parece possível que o Sócrates histórico (cf. nota 56 ao cap. 10) tenha rebatido os argumentos em favor do naturalismo biológico do tipo de Píndaro, raciocinando da maneira seguinte: se é natural que o mais forte mande, então é natural que impere a igualdade, pois a multidão (que mostra sua força pelo fato de governar) exige a igualdade. Em outras palavras, é muito provável que haja demonstrado o caráter vazio e ambíguo da exigência naturalista. E seu sucesso poderia ter inspirado Platão a apresentar sua própria versão do naturalismo.
Não desejo asseverar que a observação posterior de Sócrates (508a) sobre a “igualdade geométrica” seja interpretada necessariamente no sentido anti-igualitarista, isto é, para que signifique o mesmo que a “igualdade proporcional” das leis, 744b sgs. e 757a-e (cf. notas 9 e 20 (1) a este capítulo). É isto o que Adam sugere em sua segunda nota á Rep., 558cl5. Mas talvez haja algo nesta sugestão, pois a igualdade “geométrica” do Górgias (508a) parece revelar uma influência pitagórica (cf. nota 56 (6) ao cap. 10; ver também as observações formuladas nessa nota acerca do Crátilo) e bem poderia ser uma alusão a “proporções geométricas”.
49 — Rep., 358e. Glaucon renuncia à autoria, em 385c. Ao ler esta passagem, a atenção do leitor é fàcilmente distraída pelo problema “natureza versus convenção” que nessa passagem desempenha um papel importante, assim como no discurso de Calicles no Górgias. Contudo, o principal intento de Platão na Rep. não é derrotar o convencionalismo, mas denunciar cómo egoísta a consideração racional protecionista. (Das notas 27-28 ao cap. 5 e texto vê-se que o principal inimigo de Platão não era a teoria convencionalista do contrato).
50 — Se compararmos a apresentação que Platão faz do protecionismo na Rep. com a do Górgias, veremos então que realmente se trata da mesma teoria, embora, na Rep., muito menos ênfase se dê á igualdade. Mas mesmo a igualdade é mencionada, embora só de passagem, em Rep., 359c: “A natureza… pela lei convencional… é dobrada e compelida pela força a honrar a igualdade”. Esta observação aumenta a similaridade com o discurso de Calicles. (Ver Górgias, esp. 483c/d). Mas, ao contrário do que ocorre no Górgias, Platão abandona imediatamente a igualdade (ou antes, nem mesmo cuida do assunto) e a ela não volta, o que apenas deixa ainda mais evidente estar ele agoniado para evitar o problema. Em vez disso, deleita-se Platão na descrição do egoísmo cínico, que apresenta como a única fonte de que se origina o protecionismo, (para o silêncio de Platão sobre o igualitarismo, cf. esp. nota 14 a este capítulo e texto). A. E. Taylor, em Plato, the Man and His Work (1926) pág. 268, sustenta que enquanto Calicles parte da “natureza”, Glaucon parte da “convenção”.
51 — Cf. Rep., 359a; minhas seguintes alusões no texto são a 359b, 360d sgs.; ver também 358c. Quanto á insistência, cf, 359a-362c e a elaboração do raciocínio até 367e. A descrição que Platão faz das tendências niilistas do protecionismo enche por inteiro nove páginas da edição Everyman da Rep., indicação da significação que ele lhe dava. (Há uma passagem paralela em Leis, 890a sg.).
52 — Quando Glaucon termina sua apresentação, Adeimanto toma o seu lugar (com um desafio muito interessante e realmente muito pertinente para que Sócrates critique o utilitarismo), mas não antes de haver Sócrates afirmado que considera excelente a apresentação de Glaucon (362d). O discurso de Adeimanto é uma emenda ao de Glaucon e reitera a asserção de que o que chamo protecionismo provém do niilismo de Trasímaco (ver esp. 367a sgs.). Depois de Adeimanto, fala o próprio Sócrates, cheio de admiração por Glaucon assim como por Adeimanto, por não ter sido abalada sua fé na justiça apesar do fato de haverem apresentado tão excelentemente a causa cm favor da injustiça, isto é, a teoria de que é bom infligir injustiça enquanto se puder “sair-se bem”. Ao insistir na excelência dos argumentos de Glaucon e Adelmanto, ” Sócrates’’ (isto é Platão) dá a entender que esses raciocínios são uma expressão apropriada das ideias debatidas e enuncia por fim sua própria teoria, não para demonstrar que a exposição de Glaucon precise de emendas, mas — como ele acentua — para demonstrar que, ao contrário do sustentado pelos protecionistas, a justiça é boa e a injustiça é má. (Não se deve esquecer — cf. nota 49 a este capitulo — que o ataque de Platão não é dirigido á teoria do contrato como tal, mas tão só contra o protecionismo; de fato, o próprio Platão não tarda em aceitar a teoria contratual (Rep., 369b-c; cf. texto de nota 29, cap. S), pelo menos em’ parte, incluindo a teoria de que o povo “ se reúne em coletividades” porque “ cada um espera promover desse modo os seus próprios interesses”).
Deve-se também mencionar que a passagem culmina com a impressionante observação de “Sócrates” citada no texto de nota 37 deste capítulo. Isto mostra que Platão só combate o protecionismo apresentando-o como uma forma imoral e verdadeiramente ímpia do egoismo.
Finalmente, ao formar nosso juízo sobre o procedimento de Platão, não devemos esquecer que este gosta de argumentar contra a retórica e a sofisticaria; na verdade, foi ele o homem que, por seus ataques aos “ Sofistas”, criou as más associações relacionadas com essa palavra. Acredito que, portanto, temos todas as razões para censurá-lo quando ele próprio faz uso da retórica e da sofisticaria em lugar da argumentação (Cf. também nota 10 ao cap. 8).
53 — Podemos tomar Adam e Barker como representantes dos platônicos aqui mencionados. Adam diz (nota a 358e sgs.) de Glaucon que ele ressuscita a teoria de Trasímaco, acrescentando (nota a 373a sgs.) que esta teoria “é a mesma que mais tarde (cm 358e sgs.) Glaucon volta a apresentar”. Barker diz (ob. cit., 159) que a teoria a que chamamos protecionismo e a que ele dá o nome de “ pragmatismo” está “no mesmo espírito de Trasímaco.”
54 — Que o grande cético Carnéades acredita na apresentação de Platão, isso se pode ver em Cícero (De República, III, 8 ,13, 23), onde a versão de Glaucon é apresentada, praticamente sem alteração, como a teoria adotada por Carnéades. (Ver também o texto de notas 65 e 66 e nota 56 ao cap. 10).
A este respeito, desejo expressar minha opinião de que se pode achar grande conforto no fato de sempre os anti-humanitários julgarem necessário apelar para nossos sentimentos humanitários; e também no fato de nos haverem eles frequentemente conseguido persuadir de sua sinceridade. Isso mostra que eles estão bem conscientes de quão profundamente se acham esses sentimentos arraigados na maioria de nós, e de que os desprezados “muitos” são antes demasiado bons, demasiado simples e demasiado confiantes do que demasiado maus, ao mesmo tempo que dispostos até a ouvir, de seus muitas vezes inescrupulosos “melhores”, que são indignos e egoístas de tendências materialistas, só desejosos de “encher as barrigas como as bestas”.
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