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Há algum fundo de verdade na alucinação anticomunista?

Toda fake news, toda narrativa de pós-verdade, tem uma base real. Do contrário não funcionaria. A fake news é uma notícia fraudulenta, mas a fraude é, via de regra, a falsificação de uma notícia verdadeira. A narrativa pós-verdadeira ou alternativamente-verdadeira é construída com o material fornecido pela realidade.

Examinemos a narrativa da extrema-direita de que estamos sendo vítimas de uma grande conspiração comunista, de que as universidades estão tomadas por comunistas, assim como as mídias comerciais, as profissões liberais, algumas religiões tradicionais (como a parte do catolicismo que fez “uma opção preferencial pelos pobres”), boa parte dos partidos e associações sindicais, as organizações não-governamentais, os meios artísticos e culturais e até alguns setores do grande capital transnacional (que seriam globalistas, inclusive por interesse).

Os anticomunistas veem comunistas (imaginários) por toda parte, até debaixo da cama. Quem não concorda com seus pontos de vista é comunista ou foi contaminado por ideologias que pretendem destruir o mundo ocidental cristão (ou judaico-cristão) e, para tanto, querem solapar a família (monogâmica), a igreja (tradicionalista), Deus (ou as religiões ortodoxas que constituem o único caminho para Ele), a pátria (a soberania universal da forma Estado-nação ou de outra forma eterna de nação, em alguns casos de origem divina).

Claro que a narrativa é falsa, tão flagrantemente falsa que seria ocioso tentar desconstrui-la. Mas onde está aquele fundo de verdade sem o qual ela não funcionaria?

Bem, agora chegou a hora de o leitor apertar o cinto, porque o que vai ser dito pode ser chocante.

Há um fundo de verdade (tomada aqui no sentido genérico de correspondência entre a descrição e a realidade) nessas visões alucinadas da grande conspiração comunista ou da nova ordem mundial globalista.

Esse fundo de verdade deve ser buscado nos marxismos. A partir da segunda metade do século 19 e, sobretudo, no século 20, estendendo-se para o século 21 (que ainda não começou), um modo marxista de ver e interagir com o mundo tornou-se, de fato, hegemônico em certos meios.

Quando se fala aqui de marxismo a referência não é o conjunto das contribuições teóricas marxianas e sim as ideologias que se formaram a partir dessas contribuições historicistas e economicistas, como o leninismo (e o trotskismo, e o stalinismo), o gramscismo, os marxismos da Escola de Frankfurt, os marxismos heterodoxos ou até heréticos (Alexandra Kollontai, Rosa Luxemburgo e Karl Liebneckt, Anton Pannekoek, Herman Gorter, Karl Korsch, Ernst Bloch, André Gorz – para dar apenas alguns exemplos), os marxismos dos intelectuais franceses (inclusive os combinados com psicanálise), o maoismo, o castrismo e outros marxismos latino-americanos e africanos, a ideologia (chamada de teologia) da libertação (peruana e brasileira) etc.

A despeito das enormes diferenças entre essas vertentes, há uma base comum a todas elas, que poderia ser resumida assim:

1 – O historicismo (a ideia de que há uma imanência na história, de que a história vai para algum lugar, de que a história é regida por leis que podem ser conhecidas por quem tem a teoria verdadeira e o método correto de interpretação da realidade: o marxismo).

2 – A luta de classes como motor da história (inclusive na sua variante contemporânea de luta identitarista).

3 – A concepção (e a prática) da política como continuação da guerra por outros meios (já que, em sociedades de classes, a luta de classes seria uma espécie de guerra permanentemente presente): o que leva ao “nós” (o verdadeiro povo) contra “eles” (as elites).

Aos poucos, com a ascensão do neopopulismo (o populismo de esquerda, sobretudo na América Latina), os marxistas se reciclaram e conquistaram o poder pela via eleitoral com o propósito de nunca mais dele sair facilmente.

Vejamos. Pulando, por óbvio, os ditadores cubanos – na Nicarágua: Daniel Ortega e Humberto Ortega e López e Borge e Mayorga; na Venezuela: Hugo Chávez e Nicolás Maduro; no Brasil: Lula e Dilma; na Bolívia: Evo Morales e Luis Arce; no Equador: Rafael Correa e Lenin Moreno; no Paraguai: Fernando Lugo; em El Salvador: Maurício Funes e Salvador Cerén; na Argentina: Cristina Kirchner e Alberto Fernandez; no México: López Obrador; no Peru: Pedro Castillo; e na Colômbia: Gustavo Petro. Salvo uma ou outra exceção, que confirma a regra, todo esse pessoal neopopulista é marxista ou pertence ou pertenceu a partidos cujos principais dirigentes ou fundadores são marxistas.

Não há uma conspiração – como nos delírios da extrema-direita, da tal conspiração comunista global – e por isso é mais grave e não menos. É uma cultura estabelecida ao longo de décadas e, portanto, enraizada, com várias camadas sobrepostas.

Tomemos o exemplo das universidades. Os professores da área de humanas, sobretudo das universidades federais, são marxistas em sua maioria. O marxismo para eles, além de profissão de fé, é profissão mesmo. Como as universidades são a escola da escola, professores dos níveis fundamental e médio reproduzem as mesmas formas de pensar, influenciando, voluntária ou involuntariamente, crianças e adolescentes. É claro que a resposta para isso não pode ser a dos populistas-autoritários, defendendo o homeschooling para proteger os seus filhos da doutrinação marxista dos professores, trocando-a pela doutrinação do pai-patrão reacionário e afastando as suas crianças e jovens da interação com os filhos dos outros, que podem estar contaminados.

No Brasil, em particular, pessoas que pretendem fazer carreira na área cultural – artística, intelectual e até jornalística – dificilmente resistem à pressão “ambiental” do PT – um partido que foi fundado e organizado, em parte, por intelectuais marxistas (os nomes são conhecidos). O propósito do neopopulismo lulopetista é transformar toda a população (ou, pelo menos, a sua maioria) em simpatizante do partido. Quem não se torna simpático sofre retaliações indiretas, tendo mais dificuldade para prosseguir na sua carreira e vai ficando sem meios para realizar os seus projetos. Perde financiamentos, perde audiência, é preterido ou ignorado por seus pares, não é convidado para eventos, é recusado por editoras, não é contratado para prestar serviços.

Mas quarenta anos depois, o jornalismo e o colunismo políticos não entenderam quase nada do que é o PT. São influenciados por intelectuais de academia, que escreveram teses especulativas sobre o PT (como a de que o partido é social-democrata, de centro-esquerda e outras tolices). É um partido imaginário, fruto do desejo. Para começar a entender o partido real é preciso perceber que existem:

1 – O partido formal com suas lideranças e representantes eleitos e seus filiados.

2 – Um Partido Interno (cf. Orwell) composto por alguns de seus dirigentes.

3 – Um “Partido Externo” composto por simpatizantes e intelectuais.

Por incrível que pareça, só o primeiro – o partido formal ou “normal” – não é caracteristicamente marxista.

Examinemos a frente de esquerda populista que agora governa o Brasil (hegemonizada pelo PT). Duas fotos são suficientes para ilustrar o que será dito.

A primeira foto foi tirada durante as exéquias de Fidel Castro, em Havana, em 2016 (*).

Tirando Lula (vá-lá), todos que aparecem na foto de Havana são marxistas (ou pertenceram a organizações políticas marxistas). O destaque da foto é a presença de quatro ditadores: Raul (e seu sucessor Canel), Ortega e Maduro. Além destes, os demais não são todos comunistas, porém… todos são marxistas (quer dizer, todos acham que a história é regida por leis, que a luta de classes é o motor da história e que o sentido da política é a ordem; ou seja, que a política é uma espécie de guerra para implantar uma nova ordem mais justa). Quem discordar deve apontar um (com a duvidosa exceção de Lula) – apenas um – que não seja ou tenha sido marxista!

A segunda foto, divulgada pela liderança do PT, foi tirada às vésperas da eleição de Arthur Lira para a presidência da Câmara dos Deputados, em 2023.

Aqui novamente, tirando Arthur Lira, todos que aparecem na foto são marxistas (ou pertenceram a organizações políticas marxistas). Os destaques são José Dirceu (e seu filho) e Rui Falcão – dois dinossauros da esquerda revolucionária brasileira. Além destes, os demais não são todos comunistas, porém… todos são marxistas (quer dizer, novamente, todos acham que a história é regida por leis, que a luta de classes é o motor da história e que o sentido da política é a ordem (ou seja, de novo, que a política é uma espécie de guerra para implantar uma nova ordem mais justa).

Se juntarmos os dirigentes petistas (ou de agremiações de esquerda satelizadas pelo PT) que aparecem nas duas fotos teremos a maior parte da verdadeira direção do PT (aquele Partido Interno, já mencionado, de George Orwell em 1984). Nao há foto do “Partido Externo” (até porque não cabe em uma foto), mas não é difícil encontrá-lo. Basta fazer uma visita aos professores (e alunos) da área de humanas das universidades (sobretudo as federais), onde o marxismo – como já foi dito – não é apenas profissão de fé, mas se confunde com a própria profissão mesmo. Isso está, como se diz, normalizado: a ponto de as pessoas acharem que se trata de uma ciência. Quem não concordar com a visão marxista do mundo, da história, da sociedade, do ser humano, é uma espécie de negacionista científico.

Assim, ai do acadêmico que resolva dizer que a história não é regida por leis, que a luta de classes não é o motor da história e que o sentido da política não é a ordem (ou seja, que a política não é uma espécie de guerra para implantar uma nova ordem mais justa). Será excluído de tudo. Não custa frisar, até repetir ad nauseam. O sujeito nessa situação vira um pária em todos os meios: é excluído de várias atividades, inclusive das articulações de organizações da sociedade civil hegemonizadas pelo “Partido Externo”. Me desmintam.

Nada disso deveria ter grande importância. Como já escrevi em outro artigo, há muitos problemas com o fato de a maioria dos líderes de esquerda da América Latina serem neopopulistas. “Para a democracia, entretanto, o problema não é o fato de eles serem marxistas (ou estarem sob a influência de agremiações marxistas – sim, praticamente todos estão ou estiveram). Em princípio não há problema em ser marxista. A democracia aceita forças políticas que adotem um credo marxista-socialista, desde que respeitem o Estado de direito. Nada há de errado nisso. A democracia não é uma religião com doutrina oficial, dogmas e símbolos canônicos. Cada um pense o mundo, o ser humano e a sociedade como quiser. Só não pode impor sua concepção aos demais (nem classificar quem não adere a ela de traidor, fascista, golpista ou terrorista). O que é estranho é que as forças marxistas no Brasil, sobretudo as que compõem o lulopetismo, escondam que são marxistas. Isso gera desconfiança. Parecem aquele cara que evita gritar “Xô Galinha” para não atrapalhar seu objetivo de pegar a penosa”.

Onde está o problema então? O problema está no comportamento político dos marxistas. Como tomam a política como guerra, quem não for marxista é, no mínimo, suspeito de ser um inocente útil ou uma presa vulnerável nas mãos dos inimigos. E quem são os inimigos? Ora, os que contestam o background, os pressupostos, os supostos, as definições e os corolários do corpus ou do códex marxista. Eu, por exemplo, que estou escrevendo estas linhas.

Outra consequência nefasta é a deturpação da ciência, pelo menos da ciência política. Os analistas e teóricos internacionais da democracia – como Steven Levitsky e, em parte, alguns pesquisadores da Freedom House, da The Economist Intelligence Unit e até do V-Dem – consultam seus pares acadêmicos no Brasil para checar o que está acontecendo por aqui. Como a maioria desses acadêmicos são petistas (e marxistas), os relatos que eles passam falsificam o que acontece ou, se não falsificam, escondem evidências e interpretam enviesadamente o sentido geral dos mudanças em curso. É assim que os teóricos internacionais da democracia não conseguem perceber o nascimento e o renascimento do populismo de esquerda na AL (que, para os intelectuais de esquerda brasileiros, não existe; ou, se existe, é bom para o povo – na linha do que defenderam os marxistas Chantal Mouffe e Ernesto Laclau).

É preciso muito cuidado, porém, ao tratar dessa questão. Não há uma conspiração marxista internacional ou nacional (que, ao fim e ao cabo, seria comunista, como acusam os populistas-autoritários). Há uma cultura, quer dizer, um processo de transmissão não-genética de comportamentos. Essa cultura é formada pelas circularidades inerentes às redes de conversações que acontecem em vários tipos de aglomerados, a começar dos educativos, passando pelos corporativos e pelos partidários, até chegar aos das mídias tradicionais e sociais.

E essa cultura marxista é inegavelmente hegemônica nos mundos da militância. Na militância (não se fala aqui dos simples filiados) do PT, do PSOL, do PCdoB, em parte do PSB, do PDT e até do PSDB e do Cidadania, da Rede, para não falar do PCO, do PSTU, do PCB, da UP, da CUT, da UNE, do MST, do MTST, dos meios de comunicação da rede petista ou parapetista (como Brasil 247, DCM, Revista Forum, Opera Mundi etc.) e da maioria dos movimentos sociais classistas ou identitaristas. Como o caráter de uma força política não pode ser inferido dos discursos de seus dirigentes e sim, somente, do comportamento de seus militantes – e como essa galera está agora no poder ou próxima do poder no Brasil – isso é preocupante.

Numa sociedade aberta, qualquer pessoa deve ter o direito de ser marxista sem ser acusada de comunista no sentido da Terceira Internacional (embora alguns o sejam). Ou de discordar do marxismo sem que, com isso, seja acusada de anticomunista no sentido dos movimentos antiglobalistas (embora alguns o sejam). Não existe mais comunismo como movimento concreto, assim como, a rigor, não existe mais fascismo – a não ser como remanescências vestigiais. Essas foram ameaças do século passado à democracia. As ameaças atuais são outras: o populismo-autoritário de extrema-direita e o neopopulismo de esquerda (embora não sejam iguais).

Sim, não são iguais. Ao contrário dos populistas de extrema-direita, que são autocratas eleitorais, os populistas de esquerda fizeram uma conversão à democracia eleitoral, conquanto não tenham aderido à democracia liberal – e não aderiram à democracia liberal, fundamentalmente, em razão da sua visão marxista, para a qual a democracia liberal é uma “democracia burguesa”, fundada sobre a exploração dos trabalhadores ou de povos estrangeiros e, portanto, é apenas um meio de mascarar a dominação de classe.

A solução para esse problema, da resiliência da visão marxista e do comportamento político (guerreiro, ainda que a guerra agora seja eleitoral) que lhe é compatível, não está em entrar numa guerra contra os marxistas – até porque, em se tratando, como se trata, de uma cultura distribuída na sociedade, não há um centro difusor que possa ser atacado. A solução é mais abertura na sociedade, mais democracia, com a transição da nossa democracia (apenas) eleitoral, para uma democracia liberal, na qual todos os que optaram pela via democrática (e não querem solapá-la) aprendam a conviver respeitando suas diferenças.

Para os democratas liberais, seria até desnecessário dizer (mas nas circunstâncias atuais não é), o sentido da política não é a ordem (nem mesmo a ordem mais justa e perfeita do universo) e sim a liberdade. A liberdade, inclusive, para não ter rumo porque despida de qualquer modelo de ordem previamente concebida. Se dizemos: “não tenho nenhuma ordem para colocar no lugar da sua”, isso é desconcertante para os populistas. Mas é isso mesmo: a democracia liberal é uma aposta de que novas ordens emergirão da livre interação dos cidadãos. Os marxistas, é claro, não concordam com isso. Acham que seu papel é apontar o caminho correto e conduzir as massas para os amanhãs que cantam. Como, para eles, o centro de tudo é a ordem (mais justa), acham que a inexistência de uma ordem ideal (retrógrada), que sequer possa ser combatida, é algo assim como o fim do mundo. Por isso ficam tão ou mais irritados com os liberais do que com os anticomunistas.

Nota

(*) Na primeira fila, da esquerda para a direita: Wagner Freitas (Presidente da CUT), Lula, Daniel Ortega (presidente da Nicarágua), Dilma Rousseff, Raúl Castro, Nicolás Maduro (presidente da Venezuela) e Evo Morales (presidente da Bolívia). Segunda fila: Guillaume Long (chanceler do Equador), Guilherme Boulos (MTST), Fernando Morais (Nocaute), Monica Valente (secretária de Relações internacionais do PT) e Raúl Guillermo Castro (neto de Raúl Castro). Terceira fila: David Choquehuanca (chanceler da Bolívia), Olímpio Cruz Neto, João Pedro Stédile (MST) e Breno Altman (fundador de Opera Mundi). No alto, Miguel Diáz-Canel (vice-presidente de Cuba na época, atual ditador), Delcy Rodríguez (chanceler da Venezuela) e Bruno Rodríguez (chanceler de Cuba).

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Meus artigos de janeiro de 2023 na Crusoé