Tuitei ainda há pouco que, seu eu fosse o Temer, criaria o Ministério da Mudança Cultural.
Só posso explicar dizendo o que entendo por cultura. E o que entendo por cultura é, basicamente, o que Humberto Maturana também entendeu, com alguns acréscimos fornecidos pelas minhas investigações na nova ciência das redes.
O que Maturana entende por cultura? Ele fez questão de deixar claro seu ponto de vista no livro Amar e brincar (1993), na primeira parte, intitulada Conversações matrísticas e patriarcais:
Sustento que aquilo que conotamos na vida cotidiana, quando falamos de cultura ou de assuntos culturais, é uma rede fechada de conversações que constitui e define uma maneira de convivência humana como uma rede de coordenações de emoções e ações.
Esta se realiza como uma configuração especial de entrelaçamento do atuar com o emocionar da gente que vive essa cultura. Desse modo, uma cultura é, constitutivamente, um sistema conservador fechado, que gera seus membros à medida que eles a realizam por meio de sua participação nas conversações que a constituem e definem. Daí se segue, também, que nenhuma ação e emoção particulares definem uma cultura, porque esta, como rede de conversações, é uma configuração de coordenações de ações e emoções.
Por fim, de tudo isso resulta que diferentes culturas são redes distintas e fechadas de conversações, que realizam outras tantas maneiras diversas de viver humano como variadas configurações de entrelaçamento do linguajear com o emocionar. Também se segue que uma mudança cultural é uma alteração na configuração do atuar e do emocionar dos membros de uma cultura. Como tal, ela ocorre como uma modificação na rede fechada de conversações que originalmente definia a cultura que se modifica.
Deveria ser aparente, pelo que acabo de dizer, que as bordas de uma cultura, como modo de vida, são operacionais. Surgem com seu estabelecimento. Ao mesmo tempo, deveria ser também aparente que a pertença a uma cultura é uma condição operacional, não uma condição constitutiva ou propriedade intrínseca dos seres humanos que a realizam. Qualquer ser humano pode pertencer a diferentes culturas em diversos momentos do seu viver, segundo as conversações das quais ele participa nesses momentos.
Em seguida Maturana vai dizer o que entende por mudança cultural:
Se uma cultura, como modo humano de vida, é uma rede fechada de conversações, ela surge logo que uma comunidade humana começa a conservar uma rede especial de conversações como a maneira de viver dessa comunidade. Por outro lado, desaparece ou muda quando tal rede de conversações deixa de ser preservada.
Dito de outra forma: uma cultura – na qualidade de rede particular de conversações – é uma configuração especial de coordenações de coordenações de ações e emoções (um entrelaçamento específico do linguajear com o emocionar). Ela surge quando uma linguagem humana começa a conservar, geração após geração, uma nova rede de coordenações de coordenações de ações e emoções como sua maneira própria de viver. E desaparece ou se modifica quando a rede de conversações que a constitui deixa de se conservar. Assim, para entender a mudança cultural devemos ser capazes de caracterizar a rede fechada de conversações que – como prática cotidiana de coordenações de ações e emoções entre os membros de uma comunidade específica – constituem a cultura que vive tal comunidade. Devemos também reconhecer as condições de mudança emocional sob as quais as coordenações de ações de uma comunidade podem se modificar, de modo a que surja nela uma nova cultura.
O que devemos acrescentar? Para começar, que a cultura é um programa de conservação que, quando começa a rodar, mantem as configurações da rede que estavam presentes em determinado momento. Esta função conservadora é extremamente importante para o processo de ser humano, envolvendo – dentre muitas outras – a noção (na verdade, a operação) que chamamos de identidade. Mas como ser humano é tornar-se humano (um processo contínuo, que não está dado, nem é definido completamente pela sua origem: ser humano é tornar-se humano a cada instante pela interação com o outro, ou seja, refazer continuamente a sua pessoalidade), tão importante quanto a cultura é a mudança cultural. O humano não é um ente homeostático e sim alostático. O que chamamos propriamente de humano é uma trajetória de adaptações, uma história fenotípica e não um ponto determinado nessa trajetória ou um evento nessa história. Em outras palavras, se um ser humano parar de se modificar (culturalmente), se desumaniza. A única maneira de ser humano é continuar se humanizando.
É por isso que a única visão humanizante da cultura é aquela que aponta para a miscigenação, para a interação entre diferentes culturas. E, inversamente, é por isso que a visão multiculturalista, que quer preservar as culturas como importantes legados humanos que devem ter garantida sua expressão tal como são (quer dizer, como foram), sobretudo se levada ao seu extremo, não é compatível com uma visão do humano como ser em-humanização.
Identidade é importante, sim, mas quando aberta à interação. Uma identidade erigida e mantida contra tudo aquilo que possa alterá-la é como um banco de germoplasmas in vitro. Ou seja, esse banco, para não sair do fluxo interativo da convivência social, deve ser cultivado in situ. O ecossistema é vivo, o que significa que muda continuamente com a mudança do meio ou das circunstâncias. Uma semente guardada num tubo de ensaio pode não florescer quando for plantada futuramente, num ambiente que já se modificou.
Essa visão, digamos, “museológica”, da cultura, a pretexto de respeitar as diferentes culturas evitando o seu desaparecimento ou a sua homogeneização por força de uma invasão cultural dominante, pode nos levar à Al Qaeda (sim, nas localidades que forneceram a base social da Al Qaeda – não por acaso o seu nome significa ‘a base’ – está a proteção de culturas particulares contra as influências, julgadas deletérias pelos caciques locais da Arábia Saudita, da globalização). Isso é homeostase. Eu me recuso a mudar meus parâmetros de adaptação e, então, bloqueio ou filtro as mudanças do meio que possam afetar o meu estado (pretérito). Isso, quando instrumentalizado pela militância por uma causa (como costumam fazer os ativistas ditos culturais: o fundamentalismo islâmico, sobretudo a jihad ofensiva, é – antes de qualquer estratégia violenta – um movimento cultural), em geral acaba em guerra, quer dizer, em saídas antidemocráticas.
Para compreender tudo isso é preciso voltar ao princípio. A cultura é social, não totalmente no sentido apontado por Maturana, mas no sentido do metabolismo da rede social. Há um condicionamento recíproco entre o metabolismo (a dinâmica) e o corpo (a estrutura). Por isso foi afirmado acima que ela funciona mantendo determinadas configurações do ambiente (social). Toda cultura sulca caminhos. E caminhos mantidos à revelia da interação significam bloqueios de outros caminhos e, consequentemente, redução de caminhos. Fluxos recorrentes denotam sempre obstrução de fluxos. Isso é manter a mesma configuração. A saída, obviamente, não é destruir as culturas ou impedir que elas nasçam (o que, a rigor, é impossível e se fosse possível não seria desejável) e sim, pelo contrário, não separá-las do meio, não protegê-las das influências das outras culturas para que elas floresçam e se modifiquem (quer dizer, passem a se reproduzir dentro – e não à margem – de outras culturas). O fluxo quer fluir. Mas tem uma galera que não quer aceitar a imprevisibilidade da política democrática e não suporta – onde já se viu? – ficar assim ao léu…
Sim, os militantes estatistas contemporâneos, profundamente contrariados – como todos os autocratas – com o acaso, quer dizer, com a liberdade, com aquilo que não nos leve para um futuro pre-concebido por um caminho já pavimentado pela ideologia, não encontraram outra saída senão promover uma guerra cultural. O que importa mesmo é a guerra, não esta ou àquela cultura particular cujos germens – uma vez miscigenados – pudessem ser fatores de mudança cultural. Assim, os que defendem os indígenas não estão preocupados em reconhecer o “DNA” de uma cultura indígena particular – como a dos Pirahãs, por exemplo – como fator potencialmente modificador da cultura patriarcal e sim em defendê-los contra algum inimigo que construíram para fazer a guerra (e dizer isso é até meio redundante porquanto fazer guerra nada mais é do que construir e manter inimigos). E o mesmo vale para todas as culturas dos povos da floresta ou das cidades, dos quilombos, dos negros ou das populações das periferias urbanas. Na verdade, na sua abordagem, todas as periferias são transformadas em uma única periferia: a periferia do capitalismo (ao fim e ao cabo, o único inimigo). É uma instrumentalização forçada pela luta que imaginam que seja necessária para chegar ao que chamam de socialismo (mas que, na verdade, não passa de uma variante estatista, posto que baseada numa visão estadocêntrica do mundo, não sociocêntrica). A guerra cultural é a guerra para manter e reproduzir uma narrativa do mundo e não para implantar um modelo que foi guardado in vitro e não pode mais ser aplicado no mundo atual a não ser como farsa (como estamos assistindo nos dias que correm com a perversa pantomima de Maduro na Venezuela). Se fossem realmente revolucionários – os que instrumentalizam a luta por um Ministério da Cultura como uma luta contra qualquer governo que não patrocine sua narrativa – deveriam querer um ministério da mudança cultural. Mas eles estão querendo mesmo é preservar uma cultura particular que adoeceu terminalmente no século 20 por deficit de alostase e que no século 21 só pode ser mantida por aparelhos. Não, não é só uma metáfora. Eles querem um aparelho para promover uma determinada narrativa (além, é claro, de uma graninha – afinal, “como dizia Lenin, bom mesmo é um dinheirim” – para auferir lucro com renúncia fiscal, mas isso é tão alma pequena que nem convém dizer mais nada).
Não haveria nada demais em manter um Ministério da Cultura no arcabouço político-administrativo de um governo como o atual. Transformá-lo em secretaria foi um erro tático de Temer, mas tática, como sabemos, é um conceito da guerra deslizado indevidamente para a política democrática. Não é disso que tratamos neste artigo (do evidente erro tático do novo governo). Ou melhor: é disso mesmo que tratamos (da cultura da guerra que está embutida na militância multiculturalista). Tanto é assim que os que ocuparam os equipamentos culturais em várias cidades do país já avisaram que não vão parar sua luta, mesmo diante do recuo do governo ao manter um Ministério da Cultura. Quem foi tão tolo a ponto de acreditar que os protestos tinham a ver com a transformação do Ministério da Cultura em Secretaria? A dita “cultura” foi apenas um gancho (e basta ver a foto que ilustra este post: em ato na escadaria do prédio ocupado, a sede regional do Ministério da Cultura (MinC), em Salvador, manifestantes criticam o presidente interino Michel Temer e a extinção do Ministério da Cultura). É claro que nem todos que criticaram o fim do Ministério da Cultura (ou a sua transformação em Secretaria) – como Fernando Gabeira, Nelson Motta e eu inclusive – pensam como as tropas de ocupação da foto. Mas a agitação está sendo promovida não por nós e sim pelos que não reconhecem e querem deslegitimar, boicotar o sabotar o governo Temer. Por que? Porque Temer está sendo construído como um inimigo (da cultura, das mulheres, dos negros, da população LGBT e do que mais houver). Ora, o que é isso senão a cultura da guerra?
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