A chamada “marcha por dentro das instituições” é coisa muito antiga. Foi assim que, no passado, vários movimentos sociais emergentes foram domesticados. Por certo, deve-se preservar as instituições do Estado democrático de direito, mas respeitar as instituições – o que é correto – não é sinônimo de se deixar domesticar por elas.
Parece que alguns movimentos que ajudaram a convocar as grandes manifestações de rua, sobretudo as de 2015 e 2016, que desembocaram no impeachment (sim, o PT ainda estaria no governo não fossem as ruas: as instituições sozinhas nunca aprovariam o impedimento de Dilma), estão se deixando domesticar com essa conversa-mole de que, uma vez retirada Dilma do governo, é hora de pendurar as chuteiras, confiar nas instituições, ir para casa, sentar no sofá e assistir tudo pela TV. Não se sabe bem se é o caso do Vem Prá Rua, mas parece ser o caso do MBL. Analistas políticos que confundem a democracia com o Estado de direito – reduzindo o processo de democratização à manutenção das instituições – contribuíram para essa má-decisão (ou falta de decisão, em especial do MBL).
É fato que todos os movimentos anti-PT ficaram meio sem pauta com a saída do PT do governo. No mínimo perderam o pique. No caso do MBL, porém, houve, ao que tudo indica, uma decisão de “marchar por dentro das instituições”, lançando candidatos nas eleições de 2016 (o que, em si, não é problema) e moderando sua postura crítica aos poderes (aqui sim, temos um problema). Como se fosse possível começar uma reforma por dentro, a partir da base, de um sistema político que apodreceu de alto a baixo, em todos os níveis e lugares. Ora, isso só seria minimamente viável se as mobilizações de rua continuassem. Meia dúzia de gatos pingados espalhados em Câmaras Municipais perdidas em um país continental não farão nada, absolutamente nada que seja capaz de alterar a dinâmica prevalecente na velha política. Serão metabolizados pelo sistema. Alguns até acabarão se corrompendo, não porque queiram fazer isso, mas porque a fisiologia do sistema político os levará a fazer acordos, fechar os olhos, relevar mal-feitos e até cometer aqueles crimes que são encarados pelos seus pares como ações normais da prática política.
Sem as ruas, a Lava Jato – grande esperança de reforma de nossos costumes políticos – também será domesticada. Não que vá ser paralisada, a despeito do bombardeio cruel que já sofre hoje de todos os lados: do Executivo (vários ministros e governadores), do Legislativo (presidentes e mesas diretoras da Câmara e do Senado), do Judiciário (sobretudo de juízes dos tribunais superiores) e, até, de jornalistas e colunistas políticos legalistas. Simplesmente vai ser desidratada pelos ritmos e prazos da justiça, sobretudo dos tribunais. Mesmo os condenados sem foro privilegiado acabarão sendo soltos ou tendo suas penas reduzidas em instâncias superiores.
O sistema político não pode ser reformado por iniciativas internas, tomadas por partes do que chamamos de establishment (sim, o judiciário está incluído, ainda que existam boas exceções de juízes que o desafiam). O sistema político é o establishment! Assim como os parlamentares não farão – como nunca fizeram – uma reforma política que contrarie seus interesses (ou privilégios) e ameace a impunidade de seus integrantes, o judiciário nomeado pelo governo não fará nada que altere radicalmente o status quo se não houver forte pressão da opinião pública.
Mas a opinião pública não é a opinião recolhida por pesquisas de opinião (que é a soma de opiniões privadas da maioria da população: tão insensata que é capaz de aprovar a pena de morte e conferir mais de 20% de preferência para Lula em 2018) e sim a opinião que se conforma quando há interação política entre os cidadãos. As grandes movimentações de 2013 e 2015-2016 foram eventos de alta interatividade, que quebraram a lógica de reprodução do sistema político. A dinâmica própria das instituições do Estado democrático de direito não é capaz, sozinha, de alterar essa lógica.
Sem pressão social, a “marcha por dentro das instituições” será recuperada pelo sistema. Na verdade, na situação atual do nosso sistema político, qualquer marcha por dentro das instituições só faz sentido se acompanhada por um movimento pela criação de novas instituições, mais democráticas e menos vulneráveis à privatização da esfera pública que caracteriza a atuação dos velhos atores políticos.
É claro que há uma ameaça mais grave à democracia se as instituições forem derruídas. Aqui temos um problema ainda maior do que a domesticação de alguns atores como o MBL: os movimentos que lutaram pelo impeachment e que não tinham o menor compromisso com a democracia e que continuam pregando intervenção militar ou qualquer outro tipo de quebra da institucionalidade. A luta pelo impeachment reuniu vários tipos de grupos e pessoas para os quais a democracia não é um valor, como – dentre outros – olavistas, bolsonaristas, monarquistas tipo TFP, nacionalistas militaristas e, por último, os ratos que abandonaram o navio na undécima hora: políticos fisiológicos de todos os matizes que, na década passada, apoiaram o PT e integraram seus governos. Esse pessoal – em grande parte – foi aglomerado circunstancialmente por bandeiras anti-PT ou por plataformas ingênuas e moralistas de limpar a política da corrupção e eliminar os maus da vida pública, mas não por propostas de democratização do regime político. É um contingente minoritário, por certo. Mas com o refluxo dos movimentos que, mal ou bem, tinham a democracia como referência, eles adquirem mais chances de poluir o ambiente político e, inclusive, de se constituir como um inimigo principal e providencial para a recuperação do PT. É a direita com a qual a esquerda sempre sonhou, não porque convertível às propostas ditas progressistas (pelo contrário) e sim porque fornece o necessário contra-ponto para que os petistas e seus aliados – perante os seus descalabros – se apresentem como uma alternativa razoável.
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