Quando denunciei, durante 13 anos, a corrupção do PT, o fiz porque detectei nela indícios de corrupção da democracia. Não foi pelo prazer mórbido de caçar bandidos. Não sou da polícia. Se fosse, não usaria a atividade policial para fazer política. Nem para criar milícias do bem.
Agora as hostes bolsolavajatistas estão alvoroçadas diante da possibilidade de Lula ser solto. Pergunto então: Lula deve ser morto?
Como não há prisão perpétua no Brasil, se não morrer na cadeia, Lula um dia será solto. Quem não suporta essa possibilidade quer o quê? Enforcamento ou fuzilamento de Lula em praça pública?
Querem vingança. Mas o papel da prisão é impedir que o criminoso continue delinquindo, não a vingança.
O que se deve impedir – e esse papel é mais dos eleitores e da cidadania em geral do que da justiça – é que Lula continue chefiando um esquema de poder como o que vigorou durante o reinado lulopetista. E que esse esquema volte a atuar colocando em risco nossa democracia.
Inclusive porque impediu o surgimento de outras lideranças que lhe fizessem sombra, Lula virou um mono-líder, caudilho neopopulista de esquerda, da linha bolivariana soft, mas sozinho não teria conseguido montar o maior esquema paralelo de poder da nossa história.
Onde estão os outros membros do núcleo duro da organização criminosa (além de Dirceu, Delúbio e Vaccari)? Estão todos livres, leves e soltos. Apesar de sabermos quem são, não há na nossa legislação dispositivos capazes de enquadrá-los por seus muitos crimes políticos (contra a democracia).
O grande problema para a democracia foi que o PT – como disse o saudoso poeta Ferreira Gullar – quis fazer a revolução pela corrupção. Lula não é Cabral, Dirceu não é Cunha, Vaccari não é Geddel. A corrupção do PT era mais perigosa do que a usual porque estava corrompendo a democracia.
Qual era o crime? Usar a corrupção sistemática, coordenada pela primeira vez nacionalmente, para financiar um esquema que tinha por objetivo conquistar hegemonia sobre a sociedade a partir do Estado aparelhado pelo partido para nunca mais sair do governo (trata-se de um projeto populista, dito de esquerda, mas i-liberal e majoritarista). Ao fazerem isso, os agentes dessa estratégia também se corromperam individualmente – e só por isso alguns deles foram pegos pela justiça. O crime principal, na verdade, foi político. Mas não há mais crime político em nossa Constituição (nem na lei dos partidos). Por isso, os que integram o comando desse núcleo estratégico de poder, em sua maioria, não foram pegos pela justiça.
A rigor, a tal organização política criminosa não foi desbaratada pela Lava Jato. O que os cruzados da limpeza ética – Moro e os jacobinos da força-tarefa de Curitiba – conseguiram foi apenas tirar Lula da disputa eleitoral de 2018 abrindo caminho para a eleição de Bolsonaro (que representa também um projeto populista, dito de direita, mas igualmente i-liberal e majoritarista). Eles não estavam preocupados com a democracia. Instrumentalizaram politicamente a operação a partir de um projeto de poder também muito nefasto para a democracia: o de instalar no Brasil um Estado policial, impondo mais adiante (na sucessão do populista-autoritário Bolsonaro) um representante seu para chefiá-lo.
Isso significa que não devamos apoiar ações de combate à corrupção? Não! Os democratas somos contra a corrupção, sobretudo contra a corrupção da democracia em nome da caça aos corruptos.
A corrupção de Cabral, Cunha e Geddel estava esculhambando a nossa democracia (reduzindo sua qualidade), mas não ameaçando-a de morte. Não há um só caso na história de fim de um regime democrático em razão do aumento do número de corruptos (comuns) por metro quadrado.
Já a corrupção de Lula, Dirceu e Vaccari, além de ser também praticada por desejos pessoais de enriquecimento ilícito, ameaçava as bases da nossa democracia, de vez que seus frutos eram, em parte, destinados a financiar um projeto neopopulista. Esta é a razão pela qual tornou-se um imperativo democrático apear o PT do poder.
Não, por certo, para colocar no lugar outro populismo, como é o populismo-autoritário bolsonarista. Os que combateram a corrupção do PT sem entendê-la, alistando-se em cruzadas de limpeza ética da política e colocando todos no mesmo saco, em grande parte queriam apenas usar a caça aos corruptos como pretexto para estabelecer seu domínio que, ao fim e ao cabo, ameaçará também de morte à democracia.
O fato é que o lavajatismo (a instrumentalização política da operação Lava Jato) se fundiu ao bolsonarismo. Sinto dizer, sobretudo aos jornalistas que apoiam cruzadas de limpeza ética da política. Defender o lavajatismo é, objetivamente, se aliar ao bolsonarismo. Não é possível que pessoas inteligentes não possam parar um minuto para ver quem agita essas cruzadas.
Não concorda? Explique então por que mais de 90% de todos os grupos formados para combater a corrupção e endeusar Sergio Moro, instrumentalizando politicamente a operação Lava Jato – como as várias Repúblicas de Curitiba -, viraram comitês eleitorais de Bolsonaro.
Agora que Bolsonaro está no governo, o que temos diante de nós? Quase a mesma coisa: populismo, populismo-autoritário no lugar de neopopulismo. A mesma coisa piorada, pois que sem freios éticos e sem conteúdo intelectual. Temos os bárbaros que chegaram ao governo sem ideia e sem noção e que, para continuar no comando, estão imitando o PT com um discurso de sinal trocado. Como tuitou Priscila Neri:
“Pelo que eu entendi temos que fazer igual ao PT porque se não o PT volta, é isso?”
Como disse Steve Bannon (verdadeiro guru da família Bolsonaro e de todas as forças políticas populistas-autoritárias), será uma batalha por dia até que sejam completamente derruídas as bases do sistema liberal: “Every day, it is going to be a fight”!
Seguindo religiosamente o que recomendou Bannon, temos agora uma luta por dia. Uma confusão por dia. Uma fake news por dia (hoje são os 190 mil traficantes que serão soltos pelo STF para justificar a soltura de Lula). O objetivo é ir esgarçando o tecido social que permite a continuidade do processo de democratização, tornando-o menos colaborativo e mais adversarial, fazendo crescer, na base da sociedade e no cotidiano do cidadão, os graus de inimizade política. Ora… esta é a corrupção mais perigosa que pode haver: a corrupção da democracia!
Conquanto ambos sejam populistas, o bolsonarismo consegue, porém, ser pior do que o lulopetismo, não no plano especificamente político e sim, digamos, em termos éticos (alguns diriam civilizatórios, mas a palavra é complicada desde que vivemos há milênios em uma mesma civilização: a civilização patriarcal).
Em termos éticos, sim. Os valores do bolsonarismo não são apenas antidemocráticos e sim anti-humanizantes. Nesse sentido trata-se de uma força agressiva e muito perigosa, que se poderia dizer explicitamente “do mal”: parece até a encarnação coletiva de uma entidade como o Coringa do filme de Todd Phillips (2019).
Sua inspiração é retrogradacionista. Sua transpiração é autoritária. Dele recende aquele mau odor miliciano. Na ausência de resistência vai acabar convertendo tudo em milícia, inclusive a polícia e o ministério público (como, aliás, já fez, em parte, o lavajatismo, com sua proposta de Estado policial). Sua síntese é a foto que ilustra este artigo.
Um Estado miliciano é o que está no horizonte desses celerados. Não pode haver nada pior do que isso para a democracia e para a humanidade. Não tem nada a ver com os governos conservadores de Churchill, Reagan e Tatcher. Eles não são conservadores e sim reacionários, quer dizer, revolucionários para trás, que querem nos exilar em algum lugar tenebroso do passado.


