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Por que é tão difícil promover um debate esclarecido nas mídias sociais?

Não falo aqui da manipulação das mídias, das fake news, dos bots, das farm-bots, das pessoas-bot (borgs). Falo das pessoas normais mesmo, que vão abrindo todo dia a sua página inicial do Facebook ou a sua timeline do Twitter e lendo o que outros escrevem. Essas pessoas normais não são os militantes, que já estão protegidos contra a verdade, quer dizer, que já acham que têm a sua verdade e do que se trata é de convencer mais pessoas de que essa verdade é a única verdade.

Em geral a exposição da variedade de opiniões nas mídias sociais é alta, mas a interatividade é baixa. As pessoas leem, algumas até comentam o que leram (réplica), mas raramente quem postou responde ao comentários (ou seja, quase não há tréplica). Isso quer dizer que não há conversação propriamente dita, aquela que poderia polinizar e mudar opiniões.

Assim as pessoas vão formando suas opiniões a partir da recorrência de leituras, por reverberação (o que chamam de “câmara de eco”), quando tendem a ler os mesmos autores e os mesmos comentaristas. Ou ficam perdidas quando borboleteiam, tendendo a mudar de opinião quando acham um argumento mais consistente do que outro e mudam novamente de opinião diante de uma refutação, que acham consistente, do argumento anterior. Tudo isso acontece sem que haja verdadeira conversação.

As mídias sociais permitem a conversação (por isso são interativas), mas viraram murais de emissões broadcasting. É como se uma pessoa lesse quinhentos jornais e revistas por dia, ou assistisse a quinhentos canais de TV. Como, em geral, as pessoas não têm um pensamento formado sobre os temas em debate, ou seja, não construíram a sua própria matriz de interpretação, não se dedicam à observação e à investigação sistemáticas e não conseguem elaborar suas próprias explicações, o que vale é a verossimilhança das alegações. Assim, não há critério racional para distinguir os pesos, digamos, epistemológicos, de diferentes hipóteses.

Por exemplo, se ela lê posts de diferentes emissores dizendo que o fim da prisão em segunda instância vai soltar 190 mil presos, acredita e repete: não se dá ao trabalho de verificar se isso é verdade (e não descobrirá que os afetados pela medida não chegam a 5 mil presos, a maioria dos quais permanecerá presa provisoriamente). Se ela lê que recursos nos tribunais superiores demoram vinte anos, acredita e repete (não vai verificar que a maioria dos recursos que contestam decisões da Justiça criminal é julgada em menos de um ano no STF e no STJ).

Tudo isso acontece porque não há conversa. E não havendo conversa, não há possibilidade de esclarecimento, só de ocultamento.

Acrescente-se a tudo isso que os donos das grandes mídias sociais não estão interessados em promover a conversação – apesar do que diz Mark Zuckerberg (com aquele papo de que quer fazer do Facebook um grande instrumento de formação de comunidade).

Quando o rascunho deste artigo foi publicado ontem no meu mural do Facebook, Leonardo Valverde, em conversa comigo, comentou:

Já acho eu que mídias sociais nunca foram criadas para conversas, o FB não surgiu com essa intenção, parece-me que o Twitter também não, nem o Instagram. Todas foram criadas para se “divulgar” alguma coisa, o que a pessoa queira. Nenhuma delas originalmente é plataforma para conversa, o messenger aqui faz as vezes do “antigo” e-mail. Aliás, brasileiros usam as mídias sociais de modo bem diferente, usam para fazer reverberar suas emoções/opiniões; vejo pouco isso acontecendo na minha TL de estrangeiros.

Retruquei então:

No caso da geração dos trancadores de códigos (como Darth Zuck e os caras do Twitter), sim. Mas a mídia social surgiu antes e seu atributo distintivo era a interação (a possibilidade de thread, quer dizer, de conversa). Aliás, os usuários até introduziram modificações nesse sentido no Twitter (pensado para ser vitrine de famosos) ao inventarem o re-tweet.

Antes do Face e do Twitter (e depois do Instagram), tivemos o MySpace, o Orkut, sem falar das tentativas do Google – como o Buzz, o Wave e outros. Até mesmo o Face, a rigor, foi pensado para conversação no espaço fechado de uma universidade, lembra?

E tivemos ainda muitas plataformas com interação, como as pensadas para ensino a distância – de onde surgiram todas as outras. Já havia, porém, um problema com essas plataformas originárias que era o seguinte: suas funcionalidades foram desenhadas para guardar passado.

Leonardo respondeu:

O FB nasceu da ideia de garotos universitários “zoarem” com as meninas do campus! Orkut nunca foi feito para conversas, mas para expor opiniões, inclusive nas “comunidades” que tinha. Eu trabalhei com EaD no início aí no Brasil, com duas plataformas diferentes, também não servia para conversa, quando era para conversar caíamos na troca de e-mail. Talvez algumas plataformas particulares tenham surgido com esse propósito, das que usamos publicamente, nenhuma dessas recentes (não conheci o Buzz nem o MySpace) nasceu para a conversa, mas para interação, e interação pode não ser conversa.

Respondi então:

Sim, mas a funcionalidade interativa permite a conversa. Pela primeira vez, podendo receber e emitir, as pessoas tiveram um ambiente para a conversa. É disso que falo, em termos objetivos e não em termos subjetivos (quer dizer, da intenção dos sujeitos de criar um troço assim). Tendo, porém, ambientes assim configurados, cabe ver que a tréplica (possível) é o melhor indicador de que está havendo conversa. Vou esclarecer mais esse ponto no artigo definitivo. Objetivamente, quer dizer, não que a intenção dos aprisionadores de códigos fosse esta.

Como esta nota foi publicada também no grupo público Dagobah do Facebook, lá o Renato Jannuzzi Cecchettini, em conversa comigo, escreveu:

O algoritmo das mídias sociais favorece o broadcast, justamente para viabilizar a monetização. Não sem um dano colateral, que é o reforço de isolamento e garantia de criação de um mundinho próprio, que reverbera o viés de confirmação. O efeito negativo sobre a rede social causado pelas atuais mídias sociais é enorme.

Pode-se dizer que o algoritmo que favorece a monetização da mídia social ajuda a destruir a rede social. E como envolve bilhões de pessoas o efeito é mundial. O papel dos algoritmos monetizadores é um fator importante que nos trouxe à atual situação de crescimento do populismo no mundo.

Os populistas entenderam como usar a função “broadcast sem filtro” das mídias sociais antes que os democratas se dessem conta. E com isso deram o bypass na imprensa, que filtrava tentativas de manipulação através das fakenews, por exemplo.

O efeito colateral de geração de ansiedade, através do excesso de informação (fake ou não) é estratégico para o populismo criar uma luta por dia. Quando se cria uma força contrária para se refutar a ideia (fake ou não) só se cria mais uma força, que aumenta a ansiedade e a sensação de esgotamento, fazendo com que o populismo avance.

A rede social não previa a mídia social como existe hoje. A primeira adotou a segunda e se esfacelou, de alguma forma, penso eu.

E o que não deve ser coincidência é que os mecanismos de monetização dos algoritmos e a concentração de alcance e cobertura das mídias sociais começou mesmo foi depois de 2013.

Respondi então:

Quando viram os grandes swarmings no Egito, no Brasil, na Turquia etc. o Estado-nação e seus muitos braços se assustaram.

Um terceiro interlocutor, Rafael Ferreira, entrou na conversa:

Mas isso acontecia também antes do advento das mídias sociais, não? Ou seja, o que pode haver também é a replicação de um modelo broadcasting que as pessoas insistem em não ver.

Renato respondeu:

Mas era mais fácil de identificar as bobagens, no meu entender. Havia um filtro. Esse filtro retinha as bobagens e ameaças, apesar de dificultar a passagem de coisas novas interessantes. Era a rede descentralizada, com seus “centrinhos”.

Com as mídias sociais atuais, a ideia era que seria uma rede distribuída, mas os algoritmos (para monetização) transformaram a rede em algo ainda mais centralizado que antes. De centrinhos passamos a ter “centrões”.

Pois é.

Bem, por outro lado, tudo isso também mostra que é possível, sim, embora não seja tão comum, conversar com consistência numa mídia social como o Facebook. Mas…

P. S. Depois deste artigo ter sido publicado (ontem, 18/10), publiquei hoje (19/10) a seguinte nota do Facebook.

É TRISTE, MUITO TRISTE

Seria interessante fazer um levantamento do fluxo de capital social no Facebook e no Twitter. Estimo que seja baixo e esteja caindo velozmente. Observem os sinais. Apesar de Zuckerberg ter dito que quer transformar o Face em principal instrumento de formação de comunidades, isso raramente acontece. Quantas pessoas vocês encontram aqui propondo alguma coisa concreta, expressando um desejo e conversando com outras pessoas que têm desejos congruentes para levar adiante uma iniciativa conjunta? Quantas ideias – construtivas e criativas – surgidas aqui viram projetos coletivos? Poucas, muito poucas. O ambiente foi deformado a tal ponto que virou um teatro de operações de guerra. A vibe predominante é adversarial. Construir? Criar? Inovar? Nada disso aqui. Quem quiser fazer isso que vá lá nos seus ambientes privados e hierárquicos selecionar seus interlocutores para tais propósitos. A esfera pública (mesmo a virtual) não pode ser “manchada” com coisas positivas: tem que virar o reino da negatividade. A mídia social, que poderia ser um excelente instrumento de netweaving, virou um ambiente configurado para a competição excludente, para a disputa, para a luta, para a criação (e manutenção permanente) de inimigos. Dou um depoimento pessoal: todos os projetos que proponho no Face têm pouquíssima adesão. As pessoas até estranham, não curtem, não comentam. Agora, meus posts entendidos como ataques de destruição de alguém, quanto mais ofensivos e ferinos, mais sucesso fazem. É triste. Muito triste.

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