Nunca ficou tão clara a necessidade de inteligência democrática
A orquestração para denunciar um falso golpe no Brasil está mostrando que há em curso uma clara ofensiva dos militantes estatistas contra a democracia.
Agora se vê que dela não participam apenas as ditaduras (como Cuba e Venezuela) e as protoditaduras (bolivarianas) da América Latina (como El Salvador, Nicarágua, Bolívia e Equador), além de democracias formais parasitadas por governos de esquerda (como Uruguai).
Não! Há também o dedinho de Putin (quer dizer, da FSB, ex-KGB) na trama, o representante do neo-expansionismo russo que tenta emplacar seu projeto (a rigor inexequível) de reeditar a guerra fria e a política de blocos em pleno século 21: veja-se um artigo de hoje, escrito por um ideólogo do regime de Putin, Nil Nikrandov, membro de um centro de inteligência autocrática.
É sempre a mesma coisa. Os estatistas querem nos fazer retrogradar para os anos 80 do século 20, antes da queda do muro de Berlim.
Nunca ficou tão clara a necessidade de inteligência democrática. E nunca a democracia esteve tão presente na ordem do dia. Passemos à realidade.
Mais da metade da população do planeta ainda vive sob ditaduras
Os militantes estatistas sabem disso, mas não consideram essa variável relevante para suas análises. Para eles só existe ditadura de direita. Preferem até uma ditadura do que um país de democracia burguesa (segundo creem, mera forma de viabilizar a reprodução da dominação de classe capitalista). Ditadura, portanto, só as do passado. Como agora as ditaduras reais, em boa parte, estão se aliando a um bloco sujo instrumentalmente anti-capitalista ou anti-imperialista (sendo que o império em questão não é a China ou aquele que Putin, o assassino da FSB, tenta erigir na Rússia, mas apenas o império americano).
O fato é que para os autocratas brasileiros contemporâneos, “abaixo à ditadura” só vale no singular.
Entre 1964 e 1984, quando a esquerda no Brasil gritava “Abaixo a Ditadura” ela estava pensando “Abaixo a Ditadura da Direita” ou “Abaixo a Ditadura da Burguesia”. Se fosse a Ditadura do Proletariado nenhum militante gritaria “Abaixo a Ditadura”. Pelo contrário, ele gritaria “Viva a Ditadura”. Até 1991 o PT manteve escrito em seus documentos fundantes o dogma da Ditadura do Proletariado (depois tirou dos documentos, mas não da cabeça). Então o slogan não servia para o plural “Abaixo as Ditaduras” (quaisquer ditaduras, de esquerda ou de direita, socialistas ou capitalistas). Parece que, 50 anos depois, a esquerda continua na mesma toada. Quando a ditadura é de esquerda ou dita socialista, como a dos Irmãos Castro em Cuba ou de Maduro na Venezuela, não vale o “Abaixo a Ditadura”. Por amor à precisão eles deveriam reformular a frase: “Abaixo Apenas Algumas Ditaduras”.
A questão é: onde estão os sucedâneos dos democratas que gritaram sinceramente “Abaixo a Ditadura”? Deveriam estar por aí, nos partidos e em outras instituições políticas. Neste momento deveriam ser encontrados na oposição. Mas parece que sumiram. Então sobrou para nós – as pessoas comuns convertidas à democracia – essa tarefa…
Isso é insano, mas eles – os autocratas – são mesmo insanos. Agora vem a pior notícia: as ditaduras estão aumentando no mundo, não diminuindo. Na lista abaixo, salvo se surgir uma nova onda democratizante (como parece estar acontecendo na Argentina e no Brasil), logo teremos que acrescentar Equador, Bolívia e Nicarágua, talvez El Salvador (que são ainda protoditaduras ou regimes em transição autocratizante) e democracias formais parasitadas por governos estatistas ditos “de esquerda”, como o Uruguai.
Vejamos a lista das ditaduras que remanescem no século 21:
01. Afeganistão
02. Angola
03. Arábia Saudita
04. Argélia
05. Azerbaidjão
06. Barein
07. Belarus
08. Brunei
09. Burkina Faso
10. Burma (Myanmar)
11. Camarões
12. Camboja
13. Cazaquistão
14. Chade
15. China
16. Comoros
17. Congo (Kinshasa | Brazzaville)
18. Coréia do Norte
19. Costa do Marfim
20. Cuba
21. Djibuti
22. Egito
23. Emirados Árabes Unidos
24. Eritreia
25. Etiópia
26. Fiji
27. Gabão
28. Gâmbia
29. Guine
30. Guiné Equatorial
31. Guiné-Bissau
32. Irã
33. Jordânia
34. Kuwait
35. Laos
36. Líbia
37. Madagascar
38. Marrocos
39. Nigéria
40. Omã
41. Palestina (Faixa de Gaza, sob controle do Hamas)
42. Qatar
43. República Centro Africana
44. República Democrática do Congo
45. Ruanda
46. Rússia
47. Síria
48. Somália
49. Suazilândia
50. Sudão
51. Sudão do Sul
52. Tajiquistão
53. Togo
54. Turcomenistão
55. Uzbequistão
56. Venezuela
57. Vietnam
58. Yemen
59. Zimbábue
Por que ser contra ditaduras
Os democratas não devemos ser contra as ditaduras atuais porque elas, em boa parte (como Cuba, Coréia do Norte ou China), se dizem comunistas (inclusive porque elas não o são, a rigor). Devemos ser contra ditaduras porque elas são ditaduras (não importando para nada a declaração ou o juízo de que são “de esquerda” ou “de direita”). Devemos ser contra ditaduras porque elas são autocracias (ou seja, anti-democracias). Devemos ser contra ditaduras porque elas são estatistas (regimes políticos baseados em uma visão estadocêntrica do mundo, que descrê da sociedade e da possibilidade dos seres humanos se auto-conduzirem a partir de suas próprias opiniões). Devemos ser contra ditaduras porque elas são horríveis deformações na rede social com o objetivo de reduzir os graus de liberdade das pessoas e espalhar inimizade no mundo (ou seja, a guerra, mesmo que na forma da fórmule-inverse de Clausewitz-Lenin: a política como continuação da guerra por outros meios).
A confusão instrumental entre Estado, sistema econômico e regime político
Mas os militantes estatistas de esquerda, recusando-se a aceitar a evidência de que a realidade social não é um campo de combate permanente, ou seja, de que não estamos condenados a guerrear eternamente (ou enquanto perdurar a sociedade de classes), são compelidos a legitimar algumas ditaduras (que estariam do lado do bem ou da classe cujo condão é acabar com a sociedade de classes levando-nos ao paraíso da sociedade sem classes). É assim que promovem uma confusão proposital entre condicionamento estrutural do Estado-nação, sistema econômico e regime político. Vejamos.
Os novos teóricos da autocracia disfarçados de teóricos da democracia (esses pensadores rasos que defendem o participacionismo assembleísta e conselhista e o socialismo do século 21), bem como seus seguidores (nas universidades, corporações e partidos), têm um problema que não conseguem resolver. Eles têm que justificar ditaduras (como a cubana, a venezuelana e a russa), protoditaduras (como a equatoriana, a boliviana e a nicaraguense) e democracias formais parasitadas por governos neopopulistas manipuladores e autocratizantes (como a uruguaia e, até há pouco, a argentina e a brasileira), mas não encontram uma maneira consistente de fazê-lo. Apelam então para a confusão deliberada entre entes ou processos que não têm o mesmo status epistemológico (misturando num mesmo saco Estado, sistema econômico e regime político) e deslizando conceitos sem a menor cerimônia.
Vamos tomar um exemplo. O governo do Equador, que aboliu de facto a rotatividade democrática (prorrogando indefinidamente o mandato de Rafael Correa), desde o final de 2014 está investindo no controle governamental da mídia (fazendo sumir conteúdos de opositores das mídias sociais). Isso caracteriza um caminho autocratizante e pode-se afirmar que o Equador é uma protoditadura. Como não podem justificar essas violações da democracia, o que fazem os militantes marxistas que seguem a nova via autocratizante? Simplesmente argumentam que o escândalo da NSA mostrou a verdadeira cara dos gigantes tecnológicos e das elites planetárias, que massacram nossa privacidade. E se você retruca que, a despeito disso, o Equador – o tema em questão – está autocratizando sua democracia, eles se fingem de surdos e partem para o ataque, alegando que quem faz isso (quem critica as iniciativas antidemocráticas do governo Correa no Equador) está tentando poupar os governos neoliberais e de direita, segundo eles os mais agressivos nesse tipo de comportamento contra nossa privacidade, governos que são liderados pelos USA. Segundo esse pensamento militante de esquerda, os governos conservadores da região usam essa estratégia multiplicada por mil. E para prová-lo começam a desfiar casos de “censura” nos governos neoliberais e conservadores, Colômbia, México, Honduras, o Chile (quando sob Piñera) e a distopia liberal do PP da Espanha.
Entenderam? É a estratégia-Doril! O Equador, tema do debate, neste exemplo citado, simplesmente é retirado da pauta. Tomou Doril, a dor sumiu. Vamos esquecer que o Equador e congêneres caminham para um regime ditatorial porque o que importa é que o governo conservador espanhol está instaurando uma distopia liberal.
A trapaça intelectual – sim, eles não passam, tecnicamente falando (em termos de teoria dos jogos), de trapaceiros – é baseada no investimento na confusão proposital. É fácil explicar a confusão e desmascarar o intento insano, mas é inútil, pois não estamos tratando com pessoas intelectualmente honestas.
Vamos pegar o caso da Espanha como outro exemplo e a propósito da alegação militante de que o PP estaria instaurando uma distopia autoritária. A Espanha (mesmo tendo um governo conservador) é um regime democrático (da democracia realmente existente, da democracia reinventada pelos modernos como democracia representativa), totalmente distinto do Equador, que é uma protoditadura que segue o caminho dos países bolivarianos. É claro que a influência do poder econômico (inerente ao sistema econômico capitalista) e os condicionamentos impostos pelo Estado-nação (um fruto da guerra, da paz de Westfalia) são patentes em todos os países existentes, mas isso é diferente de o regime político estar sendo autocratizado. Um regime como o da FSB de Putin é – para todos os efeitos práticos – uma neoditadura que persegue os meios de comunicação a partir da administração política do Estado (do governo) e não apenas em função da estrutura e da dinâmica do Estado-nação (condicionamento ao qual estão submetidos todos os cerca de 200 países do globo).
É inútil explicar isso para quem não é honesto intelectualmente (ele se fingirá de desentendido ou fará a mágica-Doril para o tema desaparecer) e para quem está infectado pelo malware esquerda x direita que simplifica tudo e flexibiliza qualquer critério ético em nome do combate ao inimigo (a direita). Assim, uma pessoa que pense nesses termos (de redução do mundo ao eterno combate esquerda x direita) resistirá a caracterizar Cuba como uma ditadura ou justificará as restrições à liberdade (sobretudo dos meios de comunicação) praticadas por aquela ditadura com a alegação de que é um país em guerra contra o imperialismo.
Não percebem essas pessoas que o truque ou a impregnação ideológica (ou as duas coisas juntas) levam à criação de duas morais (a “nossa”, a da esquerda, a de quem está do lado do bem e a “deles”, a da direita, a de quem está do lado do mal). E que uma vez feito isso, pode-se justificar qualquer coisa, qualquer barbaridade, como a existência de prisioneiros políticos em Cuba (que foram condenados apenas por proferirem opiniões contrárias ao regime ditatorial dos Castro). Ah! Mas Cuba só faz isso porque enfrenta o imperialismo norte-americano.
Esse pensamento delinquente pode justificar até o fato de os bolcheviques, sob o comando de Lenin (e muito antes de qualquer coisa chamada stalinismo) terem criado, em 1923, os Campos de Utilidade Especial de Solovki (SLON), que foram os primeiros campos de concentração soviéticos, onde foram inventados e pela primeira vez ensaiados vários tipos de torturas usadas mais tarde em GULAGs de toda URSS. No caso justifica-se isso com base no imperativo de enfrentar os inimigos da revolução, a direita, os capitalistas, os imperialistas.
A confusão entre natureza do Estado-nação (europeu moderno), sistema econômico (capitalista) e regime político (ditadura ou democracia com todas as suas gradações intermediárias) é feita de propósito para desqualificar a democracia realmente existente (esta que vige, com mais ou menos defeitos ou imperfeições, em mais de uma centena de países atuais) como uma democracia burguesa, uma democracia de classe, uma democracia capitalista, uma democracia liberal. Assim, tanto faz ser uma Noruega (um país capitalista, com uma sociedade controlada pelo modelo europeu de Estado-nação, mas democrático) quanto ser um Sudão, uma Coréia do Norte ou uma Cuba (que não são capitalistas e onde as sociedades são reguladas igualmente por Estados, mas cujos regimes políticos são ditatoriais).
Ora, todas as democracias realmente existentes se realizam em países capitalistas que adotam o modelo europeu de Estado-nação, mas isso não significa que não sejam verdadeiras democracias porque são capitalistas. E também não significa que a democracia representativa seja um atributo do capitalismo. A democracia dos modernos não é um modelo de sociedade ideal, não é um sistema econômico, não é uma forma de Estado e sim um modo de administração política do Estado (um regime político) baseado em um modo de regulação de conflitos. Mas eles – os autocratas modernos disfarçados de democratas (ou seja, na verdade, de eleitoralistas, de vez que reduzem a democracia ao processo eleitoral) não querem ouvir as pessoas capazes de revelar o seu truque.
Assim se comportam esses militantes que, por algum tenebroso processo, ocorrido nas duas últimas décadas (e que ainda precisa ser investigado), viraram bandidos (em geral pequenos bandidos, posto que os grandes não lhes dão importância, por muito ocupados em operar mensalões e petrolões), não passam de conservadores, já que são apenas obedientes serviçais do poder, pessoas pequenas chafurdando no lixo autocrático.
Mas o mais alarmante é que o número de canalhas entre os legitimadores atuais de ditaduras que compõem os contingentes de militantes da esquerda cresceu assustadoramente nas duas últimas décadas. E o mais curioso é que eles – os autocratas contemporâneos – fazem questão de se declarar democratas.
Não é de hoje que autocratas se declaram democratas
É incrível como os autocratas gostam de se declarar democratas. Em 1937, John Dewey, no seu visionário texto – intitulado A democracia é radical – já havia percebido isso.
Com efeito, há quase 80 anos o filósofo John Dewey escreveu este texto (publicado em janeiro de 1937 em Common Sense 6) que foi ignorado pelos teóricos da democracia da sua época e pelos teóricos contemporâneos da radicalização da democracia (que são, em sua maioria, em geral sem o saber, novos teóricos da velhíssima autocracia). Dele não havia, até 2008, nenhuma tradução em português. Promovi isso no final da década passada e publiquei o texto no livro FRANCO, Augusto & POGREBINSCHI, Thamy (2008): Democracia cooperativa: escritos políticos escolhidos de John Dewey (Porto Alegre: ediPUC-RS, 2008).
Vejam o que ele diz:
Há comparativamente pouca diferença entre os grupos na esquerda quanto aos fins sociais a serem alcançados. Há bastante diferença quanto aos meios pelos quais esses fins devem ser alcançados e pelos quais eles podem ser alcançados. Essa diferença quanto aos meios é a tragédia da democracia no mundo atual. Os governantes da Rússia Soviética anunciam que, com a adoção da nova constituição, pela primeira vez na história, eles criaram uma democracia. Quase ao mesmo tempo, Goebbels anuncia que o nazi-socialismo alemão é a única forma possível de democracia para o futuro. Possivelmente, há uma certa vaga aclamação daqueles que acreditam em democracia nessas manifestações. Trata-se de algo que, após um período em que se desprezava e se ria da democracia, é agora aclamado.
Quem são os autocratas hoje?
Antes de qualquer coisa é necessário precisar os conceitos. Democracia e autocracia são modos de regulação de conflitos. A democracia é um modo pazeante. A autocracia é um modo guerreante. Modo pazeante é aquele que trata o conflito de sorte a não ensejar a constituição (e a prorrogação) de inimizade. Modo guerreante é aquele que constrói (e reproduz) inimigos.
O que funda a paz não é a ausência de conflito e nem a não-violência na sua mediação e sim a não conversão dos conflitantes em inimigos. O que funda a guerra não é a violência e sim a construção de inimigos, que tanto podem se constituir na guerra quente (violenta), na guerra fria ou na política praticada como arte da guerra (a política pervertida como continuação da guerra por outros meios não-violentos).
A paz não é um estado alcançado após a guerra, com a vitória de um conflitante sobre outro e sim um processo de não-guerra, quer dizer, de não conversão dos conflitantes em inimigos de sorte a não haver vitória de um sobre outro, nem derrota de um pelo outro, nem equilíbrio competitivo que prorrogue os contendores como inimigos constituindo então um estado de guerra. O objetivo da guerra não é destruir o inimigo e sim manter o inimigo como inimigo. A guerra não é um processo que visa o estabelecimento de um estado de paz e sim a manutenção do estado de guerra.
Não existe estado de paz, somente um processo continuo de pazeamento das relações. O processo de paz é democratizante. O estado de guerra é autocratizante. Somente na medida em que se desenvolve um processo de paz pode haver democracia (quer dizer, pode ter continuidade o processo de democratização). Somente na medida em que se instala um estado de guerra pode se manter e reproduzir autocracia. Assim, estamos diante de coimplicações: democracia <=> paz e autocracia <=> guerra.
Isto posto, não há dúvida de que os autocratas, hoje, são os militantes.
Militantes são, por definição e por origem (etimológica mesmo – a palavra ‘militante’ vem do latim MILITANTIA, de MILITANS, particípio de MILITARE, “servir como soldado”, de MILES, “soldado” – e também social: referente à origem do organismo social que permite a reprodução desse tipo de comportamento, vale dizer, “geneticamente”), combatentes, guerreiros. Ainda que frequentemente atuem sem violência (em períodos onde não ocorrem guerras quentes) são agentes da guerra fria (praticando a política como continuação da guerra por outros meios). É por isso que eles precisam tanto da guerra, sem a qual se desconstituem como atores políticos de um tipo determinado (pode-se então dizer, “epigeneticamente”). É por isso que eles lamentam tanto a queda do muro (ou se recusam a aceitar que ele caiu pondo fim à guerra fria). E é por isso que eles querem nos levar para algum lugar do passado, de preferência para os anos 80 do século 20.



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