De todas as ideias surgidas no que chamamos de civilização (patriarcal) a mais maligna é a de pureza. É a pureza que transforma diferenças em separações. A ideia de pureza impede a aceitação de que podemos viver em ecologias de diferenças coligadas. E passamos então a acreditar que só se pode conviver com os iguais e os iguais são os que assentem que nosso modo de vida é o único puro e por puro se toma o que é bom, belo e verdadeiro, limpo, reto e perfeito.
É sempre o puro que não se pode deixar contaminar pelo impuro, que é sujo, torto e imperfeito. E o impuro é – em última instância – qualquer outro cuja simples existência ameaça o nosso modo de ser: que é o único limpo, reto e perfeito.
Se interajo com o que é impuro tenho que me lavar. Se me aproximo do que é diferente, tenho que me penitenciar, me recolher, até que minha culpa seja expiada.
Da ideia de pureza deriva uma diretriz de ação conhecida como limpeza. O que foi sujado, conspurcado, corrompido, precisa ser limpado para recuperar sua pureza original, ou seja, precisa ser salvo, redimido de seu pecado original (e originário de todo mal).
O sujo é o diferente que, por isso, precisa ser separado do limpo. O sujo é vil, contaminante, perversor, corruptor.
É em nome da pureza que nascem teorias como a da maçã podre: tudo se resume a separar os maus dos bons.
É em nome da pureza que se organizam cruzadas de limpeza: étnica, ética, religiosa ou nacional. A “raça pura”, o “homem de bem”, o “fiel”, o “patriota” – são as perversões que alimentam as guerras contra os diferentes: contra as raças inferiores (os negros, os judeus, os ciganos, os árabes), contra as pessoas do mal (os bandidos, os corruptos, os homossexuais), contra os infiéis (kafir; os adoradores do diabo, os que trilham os caminhos da perdição), contra os estrangeiros (falantes de outras línguas, migrantes; como disse Jung, os “demônios ruivos que habitam o outro lado da montanha”).
É em nome da pureza que nasce o punitivismo, para se vingar daqueles que se desviaram da norma padrão, que passam então a ser os culpados por todo mal que nos assola.
Como resumiu Jerry Fjerkenstad, num texto brilhante intitulado Quem são os criminosos?:
“Gentalha, lixo, imundície. Errados, desviados: é preciso endireitá-los. Patifes, baderneiros, ladrões, velhacos. Corruptos, podres, fedorentos. Gente sem respeito pela lei, pelo caminho reto e estreito, pelo caminho certo, o único caminho. Gente que não teme Deus nem o homem. Animais, pervertidos, cães, mestiços, chacais. Errados, confusos, loucos, insanos, psicopatas. Almas desviadas, almas perdidas, ingratos. Carniceiros, espancadores, assassinos a sangue-frio. Frios como gelo — eles roubariam a própria mãe”.
Ah! Mais um copo de sangue para aplacar a minha sede.
É em nome da pureza que, achando que não somos puros o suficiente, queremos nos limpar nos outros (e é este o sentido oculto do punitivismo).
A nossa redenção passa pela expiação do outro. Que suas cabeças rolem para que possamos conviver com nossas culpas (por não sermos limpos o suficiente).
Na grande simbiose que chamamos de humanidade, a ideia (antissocial) de pureza é a que trouxe mais malefícios ao que em nós é tipicamente humano.