Não é a pronta-resposta da punição eficaz que diminui os índices de corrupção política. Um cruzamento dos rankings da Transparência Internacional com os rankings de democracia de qualquer centro de pesquisa (Freedom in the World da Freedom House, Democracy Index da The Economist Intelligence Unit, V-Dem da Göteborgs Universitet et coetera) revela uma correlação inversa entre índices de corrupção e de democracia. Não importa como são compostos os índices de democratização pelos diferentes institutos que monitoram a democracia no mundo. Podemos selecionar apenas um dos indicadores usuais de democracia: as liberdades civis. Países onde os graus de liberdades civis são maiores têm menos corrupção política. Há raríssimas exceções (como Singapura), mas que apenas confirmam a regra.
Um gráfico, preparado pelo Renato Jannuzzi Cecchettini para o Projeto Democracia, cruzando os dados do Democracy Index 2017 da The Economist Intelligence Unit e os da Corruption Perception Index 2017 da Transparência Internacional revela o seguinte:
As cores são de acordo com o tipo de regime e o tamanho das bolhas de acordo com o Índice de Liberdades Civis 2017 da The Economist Intelligence Unit. Democracy Index: de 0,00 a 10,00 (0 é o menos democrático e 10 o mais democrático). Corruption Perception Index: de 0 a 100 (0 é o mais corrupto e 100 o menos corrupto).
A Somália (país onde a política é a mais corrupta do mundo) não viraria uma Nova Zelândia (país onde a política é a menos corrupta do mundo) se lá houvesse 100 operações Mani Pulite ou Lava Jato, fazendo todo seu carnaval de denúncias, investigações, conduções coercitivas, prisões provisórias, delações, condenações e prisões com penas draconianas.
A reprovação social que pode se manifestar mais plenamente em países democráticos (com altos índices de liberdades civis) é, de longe, muito mais eficaz do que a repressão estatal. Colocando a mesma questão em outros termos, os graus de corrupção dependem do estoque ou do fluxo de capital social. No dia em que a sociedade somali tiver os mesmos índices de capital social do que a sociedade neozelandesa, os índices de corrupção nesses países poderão ser equiparados. Antes, não. Por mais que a Somália seja tomada por um vigoroso movimento anticorrupção, conduza ao poder um ditador honestíssimo e que nela surja uma liga da justiça (uma espécie de milícia estatal composta por policiais, procuradores e juízes) com carta branca para fazer uma faxina geral na política, tudo isso de pouco adiantará.
Vários autores já trataram do tema: eu mesmo, em numerosos artigos publicados em Dagobah a partir de 2016. Mas recomendo um em especial: o de Bo Rothstein, do Fórum Econômico Mundial, intitulado 4 mitos sobre a corrupção.
Postas na mesa essas evidências fáticas, passemos às considerações sobre as teorias da corrupção (para, num próximo artigo, tratar do papel da punição e das penas).
Vamos ao óbvio. Só há corrupção política se houver política. Logo, a melhor forma de combater a corrupção política é suprimir a… política! Eis o fundamento da antipolítica da pureza, que deita raízes no pensamento totalitário de Platão e no restauracionismo jacobino de Robespierre.
É bom aproveitar a oportunidade para discutir o assunto, agora que estão em voga teorias da corrupção. O curioso é que essas teorias estão sempre presentes, mas não se explicitam. Ficam subsumidas nos discursos restauracionistas e punitivistas que, via de regra, são expelidos por populistas ditos de direita ou de esquerda. Este artigo é uma tentativa de revelar os seus fundamentos filosóficos.
Uma das características do discurso contra a corrupção é atribuir a esse crime a responsabilidade por todos os males que infelicitam as nações e impedem que as populações alcancem patamares satisfatórios de bem-estar. Sobre isso, comecemos com uma alegação recorrente no Brasil da Lava Jato. A alegação é falsa.
Toda a corrupção na Petrobrás deu à empresa um prejuízo de cerca de 7 bilhões. Uma simples política equivocada de preços de Dilma deu um prejuízo à Petrobrás de 70 bilhões. Mas as pessoas acham que seus carecimentos são causados pela corrupção, que se não fossem os políticos roubando elas teriam melhores condições de vida (de alimentação, de saúde, de educação, de moradia, de transporte, de segurança). Ora, se acabasse toda corrupção, não haveria melhoria perceptível das condições de vida, a despeito do que declaram falsamente Deltan e Moro (quando afirmam ou dão a entender que é a corrupção que tira o leite das criancinhas).
A questão, no entanto, é mais profunda. Ser contra a corrupção é uma coisa. Todos somos (em tese, até alguns corruptos que acham que “é do jogo” e que “não se pode fazer omelete sem quebrar ovos”). Ser um cruzado da limpeza ética, é outra, bem diferente. É uma deformação. É ser um militante da antipolítica da pureza.
Há raízes culturais que predispõem à ideia de pureza (e a pureza é considerada boa, como se fosse uma verdade universal e eterna, evidente por si mesma – quando se trata de uma ideia maligna quando aplicada à política: do ponto de vista da democracia, é claro). Por isso o combate à corrupção tem tanto apelo popular.
O mito do pecado original é recorrente em todas as culturas patriarcais. As pessoas acham que não são boas o bastante (e frequentemente costumam dizer: “não sou santo” – como se ser santo, já lembrou Orwell, conviesse a humanos), acham que estão sujas e, então, querem se limpar. E como não conseguem fazer isso, porque não acham que possam “virar santos”, afastam a sensação psicológica de que estão sujas se limpando… nas outras. Daí o contentamento, quase orgasmo, quando a cabeça cortada de um corrupto rola guilhotina abaixo.
Ademais, a filosofia grega que chegou até nós (via Heráclito e, sobretudo, Platão) e plasmou o pensamento acadêmico (e consequentemente escolar), achava que existem formas perfeitas – sobretudo um Estado perfeito original – que se corrompem com o tempo, que a política ex parte populis (quer dizer, a democracia) é necessariamente corrupta (ou corruptora ou acelera a corrupção). Todas as teorias da corrupção (que nada têm de científicas, pois, na verdade, são filosofias, metafísicas da história) têm um fundo no pensamento político totalitário de Platão (e nos seus fundamentos patriarcais).
Sim, as teorias da corrupção (e da necessária regeneração, como pregavam os jacobinos) têm seu fundamento no pensamento político totalitário de Platão. Não é difícil estabelecer tal liame. Aliás, Popper, sem pretender tratar especificamente do tema, já fez isso.
Com efeito, Karl Popper (1945), em A Sociedade Aberta e seus Inimigos, fez um bom resumo do que ele chama de “funções” da teoria platônica das Formas ou Ideias: 1) a tentativa de estabelecer fundamentos transcendentes para uma ciência política, 2) a tentativa de descobrir fundamentos imanentes que possam revelar leis da história e 3) a tentativa de conceber instrumentos de ação usados voluntariamente para modificar o destino. Ora, isso desqualifica a opinião em relação ao saber, tira dos homens comuns a possibilidade de alterar o destino e confere aos sábios a capacidade de fazê-lo. Conclusão: os ignorantes devem ser governados pelos sábios. Eis o fundamento do pensamento autocrático e, mais do que isso, totalitário, de Platão.
No entanto, há uma ontologia em que se baseia tal visão, estruturada a partir de ideias de perfeição e de pureza. No mundo produzido (se realizando no espaço e no tempo) tudo está em fluxo (como disse Heráclito). Mas o que é puro é o que não está em fluxo. O fluxo corrompe, suja. À política do sábio cabe deter a degeneração, o que significa uma não-política, ou melhor, uma antipolítica. A (verdadeira) ciência política é assim, na verdade, uma ciência da antipolítica. Ela consiste na capacidade de alguns (os únicos que podem saber e, portanto, governar) de conhecer a chave da história. E que, tendo tal conhecimento, será capaz de intervir (mecanicamente, quer dizer, construindo mecanismos sociais) para conter a degeneração, tendo como modelo e alvo a perfeição e a pureza originais (que estão fora da história).
Essa intervenção dos que conhecem acabará também com a história como campo do contingente ao levá-la de volta (juntamente com todas as coisas manifestadas e, inexoravelmente, corrompidas) ao seu modelo ou protótipo. Há uma kabbalah aqui (as coisas são emanadas, criadas, formadas e chamadas a existir no mundo concreto), quer dizer, há uma visão mítica, sacerdotal, hierárquica e autocrática própria da tradição dita espiritual – na verdade, porém, patriarcal – que é bem anterior a Platão e deve ter suas raízes no pensamento babilônico (como já aventou o próprio Popper, comentando Heráclito) ou sumério.
As teorias da corrupção (e da necessária regeneração, como pregavam os jacobinos) que têm seu fundamento no pensamento político totalitário de Platão deitam raízes nas urdiduras sacerdotais que inauguraram o modo próprio de pensar do patriarcado. O que Pitágoras e Platão chamaram de filosofia foi esse modo patriarcal de explicar as coisas (ou melhor, os eventos) – em especial as mudanças – que é diferente do modo científico que só poderia ter aparecido com o surgimento da democracia como uma brecha na cultura patriarcal. Não há nada de científico que possa sustentar a ideia de que a pureza deva ser tomada como princípio (e alvo) da atividade política, ou seja, isso não é validado pela coerência das experiências de cientistas e sim pela coerência que conserva princípios básicos sustentados por filósofos (que não tratam de conhecimento objetivo e sim de ideologia). Há uma ideologia da pureza, sustentada por teorias filosóficas (como as teorias da corrupção).
Não é de estranhar que regimes que se orientaram por uma ideia, digamos, filosófica, de pureza, como o espartano dos séculos 6, 5 e 4 a.C., eram também os mais autocráticos. No entanto, a democracia dos atenienses, que não se orientava por tal ideia e aceitava o fenômeno da corrupção política (embora o combatesse), deixou um legado incomparavelmente mais humanizante. Leônidas e Lisandro, autocratas espartanos, eram honestíssimos, verdadeiros varões de Plutarco. Mas o último não teve qualquer pejo de apoiar e financiar pelo menos dois golpes sangrentos contra a democracia (em 411 e 404 a.C.). Péricles, o principal expoente da democracia ateniense, acusado durante sua vida pública de vários delitos, inclusive de corrupção (desvio de verbas na construção ou decoração do Partenon), além de falta de decoro (por sua associação com Aspásia, tida por puta pelos oligarcas e que nem de Atenas era, mas de Mileto) e de nepotismo (por ter indicado seu filho para um cargo público), foi um dos responsáveis pela consolidação do novo regime democrático e por salvar a inteligência democrática que florescia em Atenas no século 5 a.C., protegendo Protágoras e outros sofistas que eram perseguidos pelos oligarcas e caluniados pelos filósofos da laia de Platão.
Não há democracia sem democratas (como diagnosticou Ralf Dahrendorf em meados da década de 1990). Se não fossem democratas como Péricles e seus parceiros e parceiras, com todas as suas sujidades, impurezas, curvaturas e imperfeições, provavelmente nunca teríamos ouvido a palavra democracia.