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A netwar

Sobre a segunda grande guerra fria

A netwar é a nova forma de guerra em uma sociedade-em-rede. Não é, como geralmente se pensa, a luta sem quartel travada nas mídias sociais (que dela representam apenas um pequeno aspecto). Antes de qualquer coisa, a netwar é social, não digital. É uma guerra que alcança as redes de pessoas (inclusive as que não interagem nas mídias sociais).

Para entender isso temos de voltar ao início da segunda década deste século, quando houve uma explosão das mídias sociais (incorretamente chamadas, no Brasil e em outros países, de redes sociais). Mídias sociais não são redes sociais. Poderiam ser, no máximo, ferramentas de netweaving. Acabaram, infelizmente, sendo o oposto ao conspirar contra as redes mais distribuídas do que centralizadas. Redes sociais são pessoas interagindo (enquanto estão interagindo) por qualquer meio (mídia). Não, não são ferramentas, dispositivos tecnológicos, sites, aplicativos, programas, algoritmos.

A netwar extravasa, não elimina, as guerras quentes (os conflitos armados que comumente chamamos de guerra). Aliás, o fato de um conflito ser armado só agrava circunstancialmente sua gravidade (pela ameaça mais premente às vidas humanas e dos demais seres vivos). Essencialmente, porém, ela altera o modo de regulação dos conflitos tornando-o menos pazeante e mais adversarial ou antagônico, ao produzir inimigos. Sim, a guerra, qualquer guerra, não é destruição de inimigos (um “efeito colateral”), mas construção de inimigos. Não importa se o inimigo da vez é a Eurásia ou a Lestásia, para lembrar o 1984 de George Orwell (1949). A guerra constroi inimigos como pretexto para reorganizar cosmos sociais, adotando padrões de organização hierárquicos regidos por modos de regulação autocráticos.

A netwar diminui os graus de distribuição das redes sociais e, consequentemente, altera a sua conectividade e a sua interatividade (ver imagem abaixo).

Imagem ilustrativa by Renato Cecchettini. Ao cortar conexões, a netwar multicentraliza a rede, quer dizer, converte uma rede mais distribuída do que centralizada em uma rede mais centralizada do que distribuída.

Não é “guerra de propaganda”. É reengenharia topológica. Ela multicentraliza (e estilhaça) as redes em miríades de esferas privadas opacas. É uma espécie de clustering fortemente restringido. A chamada tribalização, ou ilhamento em bolhas, é um dos efeitos observáveis dessa perturbação na fenomenologia da interação. A netwar desatalha, ou seja, corta as conexões (atalhos) entre os clusters. Ao fazer isso, conecta para dentro e desconecta para fora. E exclui nodos dos mundos sociais que habitavam. Com tudo isso, ela altera molecularmente comportamentos numa velocidade inimaginável, como numa reação em cadeia. Novos organismos sociais, malignos para a democracia, nascidos dessa operação, erigem-se em dias ou até em horas, talvez. Não há comparação com o tempo gasto para estruturar uma SS (Schutzstaffel) ou um Exército de Guardiães da Revolução Islâmica (Pásdárán), mais conhecido como Guarda Revolucionária Iraniana (IRGC).

A netwar que está em curso – na segunda guerra fria que já eclodiu – é muito mais perigosa para as democracias do que todas as guerras mundiais do século passado (a primeira e a segunda guerras e a primeiro guerra fria).

Toda realidade política sob a terceira onda de autocratização em que vivemos está afetada por essa segunda guerra fria que se instalou, notadamente, a partir da terceira década do século 21. Como foi dito, não é uma terceira guerra mundial, nos moldes das duas anteriores, nem é uma reedição da primeira guerra fria do século 20, porque não é uma guerra de blocos demarcados sobre a geografia do globo. Não é EUA x China no lugar de EUA x URSS. A segunda guerra fria é fractal, se instala dentro de cada país.

Um eixo autocrático, o mais poderoso já conformado em toda a história humana (Rússia, China, Irã, Coréia do Norte, Turquia, Hungria, Cuba, Venezuela, Nicarágua, além de várias outras ditaduras e grupos terroristas do Oriente Médio, da Ásia e da África e de Bharat – este último ainda uma incógnita), está movendo uma netwar mundial, uma campanha de isolamento e exterminação das democracias liberais. E, para tanto, está conquistando o alinhamento de regimes eleitorais não liberais parasitados por populismos (México, Honduras, Colômbia, Bolívia, Brasil, África do Sul, Indonésia et coetera).

Essa segunda guerra fria é uma guerra essencialmente política (ou antipolítica, quer dizer, contra a política: que não é guerra e sim evitar a guerra), com múltiplos eventos regionais de guerra quente (conflitos armados) que servem, fundamentalmente, para alimentar a netwar. A guerra do Hamas contra Israel não é uma guerra regional visando a alcançar objetivos militares locais, mas uma das espoletas para a explosão de uma netwar global. Mesmo que vença militarmente no terreno de Gaza, Israel já perdeu a netwar cujo palco é o mundo inteiro (e tanto é assim que se manifesta nos campi das universidades americanas, passando pelas ruas e praças de Paris, de Londres e de Bogotá, até chegar na avenida Paulista no Brasil). A guerra de Putin contra a Ucrânia não é só contra a Ucrânia, para conquistar território e se apropriar de recursos naturais, e sim contra a ordem liberal vigente na Europa e nos Estados Unidos. E ela é travada em todo lugar, até na Assembleia Geral da ONU e no seu Conselho de Segurança.

As três dezenas de democracias liberais que restaram não vão conseguir passar incólumes por essa nova guerra mundial que já está em curso: ao que tudo indica haverá declínio de direitos políticos e liberdades civis até mesmo nesses países de democracia mais avançada ou plena (União Europeia sem Hungria, Reino Unido, Noruega e Suíça, EUA, Canadá, Barbados, Costa Rica, Chile e Uruguai, Japão, Coréia do Sul, Taiwan, Israel, Austrália e Nova Zelândia).

Não se sabe ainda o que acontecerá, mas já se pode apostar que não será bom para as democracias.

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