O fato mais importante para explicar o que acontece na política atual é o surgimento de uma nova PPA (População Politicamente Ativa).
Há 30 ou 40 anos poucos milhares de agentes pontificavam no debate público. Hoje são milhões.
As pessoas preconceituosas, ressentidas, reacionárias e coléricas que compõem a nova PPA já existiam. Não foram inventadas pelo populismo-autoritário. A diferença é que elas compunham uma população politicamente passiva, que não podia interagir no debate político porque não tinha nem os meios para tal e nem o desejo de fazê-lo.
O aposentado do pavê que mora na Mooca, a tiazinha de Copacabana, o dono da revendedora de automóveis de Campo Grande, o policial militar da reserva de Goiânia, o funcionário da loja de departamentos do Recife, o pastor da pequena igreja do interior de Minas, o ruralista de Rondônia, estavam excluídos do campo interativo da política, seja porque nunca teriam acesso aos meios de comunicação tradicionais, seja porque não acreditavam que, se falassem qualquer coisa, alguém fosse capaz de levar em conta sua opinião.
Eram eleitores, sim, mas influenciando, apenas sua rede de familiares, colegas e amigos (um emaranhado de, no máximo, algumas dezenas de laços fortes). De repente, porém, esses sujeitos tiveram à sua disposição meios gratuitos, acessíveis e de fácil utilização, de expor suas ideias para outras pessoas que não conheciam (multiplicando os laços fracos da sua rede).
A nova PPA passou a ser contada em milhões e, como esse imenso contingente não cabia nas instituições políticas estatais ou proto-estatais (governos, parlamentos e partidos), passou a constituir uma nova esfera pública de opiniões: estilhaçada, fragmentada, composta por miríades de esferas privadas e opacas.
Assim surgiu um novo tipo de partido em programas de troca de mensagens cujas funcionalidades permitiam a formação de grupos (como, por exemplo, o WhatsApp e o Telegram). Como esses grupos não interagiam entre si segundo um padrão horizontal, instalou-se um fluxo descendente em árvore, o que facilitou a replicação das mesmas diretrizes top down (emanadas por uma pequena direção de ideólogos, interpretadas por poucas centenas de hubs e reproduzidas por dezenas de milhares de atores com dois e três graus de separação do vértice de uma rede mais centralizada do que distribuída de manipulação da opinião pública).
E tão potente foi esse processo que não conseguiu apenas estabelecer a hegemonia de novas opiniões sobre os fatos, mas falsificar a realidade inventando e disseminando continuamente “fatos” que jamais ocorreram.
Ademais, juntamente com a fabricação dessas novas realidades paralelas, surgiram narrativas compreensíveis por esses sujeitos que se ajustavam às suas emoções, açulando o desejo de vingança e a vontade de revanche que sentiam por estarem em uma vida tão ruim (em alguns casos, depois de terem trabalhado tanto), que achavam que não mereciam, enquanto os políticos viviam numa boa, chafurdando no dinheiro da corrupção. E, sobretudo, por nunca terem sido consultados e valorizados.
A política passou a ser então, para eles, uma nova torcida de clube e um tipo de religião, a possibilidade de dar o troco, uma guerra de retaliação para vencer (e se vingar de) algum inimigo considerado como o culpado por toda essa injustiça social: os comunistas, os globalistas, os liberais, os políticos e os juízes, a imprensa, os artistas, os intelectuais, os gays, os negros e, dependendo do país vítima dessa ofensiva populista, os imigrantes e os estrangeiros, os latinos, os judeus, os muçulmanos – em síntese, os diferentes.
Assim como a nova PPA não desapareceu nos Estados Unidos com a derrota de Trump, ela também não desaparecerá no Brasil com o fracasso de Bolsonaro nas urnas de 2022. Uma vez alguém tenha virado agente político (ainda que, a rigor, antipolítico), não deixa de sê-lo. As hostes bolsonaristas não vão voltar mais para a casinha e vão continuar guerreando, quer dizer, construindo e mantendo inimigos para conservar a mínima coesão em estado beligerante (sim, a guerra é o ‘estado de guerra’).
Mas, com o tempo, caso os próximos governantes que se sucederem não forem antidemocráticos, seu contingente poderá ser reduzido – e seu ímpeto bélico abrandado – permitindo que a democracia consiga metabolizá-lo. Nem que seja pelo fato de que as novas gerações não entrarão tão facilmente na atual onda de ódio em virtude da falta da quantidade de ressentimento necessária (ainda que – sem uma reforma da política – tudo indica que não lhes faltarão altas doses de descrença – o que é outro problema, que não cabe no presente resumo).
O problema é o tempo que tudo isso vai levar.


