Fala-se muito hoje da extrema-direita golpista. Mas ainda existe – conquanto seja vestigial – uma extrema-esquerda golpista. Assim como a direita (não-golpista) quase desapareceu, posto que foi devorada, digerida e dejetada pela extrema-direita (golpista), a extrema-esquerda (revolucionária ou rupturista – ou seja, golpista quando atua em democracias) também está desaparecendo diante da hegemonia da esquerda neopopulista.
Leiam o artigo do último dia 8 de setembro de Vladimir Safatle em El Pais (reproduzido abaixo). Ele representa hoje o pensamento marginal da esquerda, quer dizer, o pensamento da extrema-esquerda, que prega uma ruptura revolucionária.
Mas a despeito da sua conclusão ser golpista com o sinal trocado, ele acerta na avaliação de que não é necessário ter maioria para promover uma insurreição. Pode-se apostar que, in pectore, muita gente no PT, no PSOL e em outras agremiações de esquerda, concordam com Safatle. Se os inimigos atacam a democracia e estão tentando rompê-la, por que nós – os legítimos representantes do povo – não podemos também fazer isso?
Submetidos, porém, à lógica eleitoral, os neopopulistas de esquerda não podem assumir o que realmente pensam. A via do populismo de esquerda é, definitivamente, a eleitoral. Não porque seus dirigentes e militantes acreditem na democracia como valor universal e como principal valor da vida pública (aliás, eles continuam convencidos de que a democracia realmente existente é uma democracia burguesa) e sim porque não há outro meio para chegar ao poder a não ser conquistando eleitoralmente governos e se delongando nesses governos com o fito de – progressivamente – conquistar hegemonia sobre a sociedade a partir do Estado aparelhado pelo partido. Assim, candidatos de esquerda não podem pregar a ruptura revolucionária que (pelo menos alguns) desejam.
Infelizmente, para eles, existem exemplos eloquentes – e negativos – de adoção da via neopopulista por parte da esquerda que, inciando pela aceitação do caminho eleitoral, descambaram em ditaduras. Basta ver o que vem acontecendo na Venezuela e na Nicarágua. Os dirigentes da esquerda hegemônica sabem que isso assusta os eleitores. A despeito disso, das declarações dos dirigentes tentando se desvencilhar dessas experiências autocráticas, se perguntarmos à militância média dos partidos de esquerda se elas mais concordam do que discordam de Nicolás Maduro e Daniel Ortega, assim como da herança dos irmãos Fidel e Raul Castro, a resposta será que sim, que mais concordam do que discordam. Como se sabe, quem quiser descobrir o verdadeiro caráter de uma força política deve ignorar seus documentos oficiais e as falas de seus dirigentes e observar o comportamento de seus militantes.
Conquanto, subjetivamente, a esquerda (em boa parte) continue convicta de uma via revolucionária, esse efeito objetivo da democracia (eleitoral) em desestimular arroubos golpistas da esquerda não deixa de ser uma positiva domesticação. Alguns, porém, como o ideólogo Saflate, não se dobram aos critérios da legitimidade democrática, como a liberdade, a eletividade, a publicidade (ou transparência), a rotatividade (ou alternância), a legalidade e a institucionalidade. Por ele (e não só por ele), tudo isso iria parar na lata de lixo. Só que ele – Safatle – tem a coragem de dizer que quer isso agora, enquanto que outros alimentam, muitas vezes secretamente, o sonho de que tal ocorrerá no futuro, quando a correlação de forças lhes for mais favorável.
A seguir, o artigo de Safatle.
O GOLPE COMEÇOU
Uma insurreição nunca precisou da maioria da população para impor sua vontade. Ela precisa de uma minoria substantiva, aguerrida, unificada e intimidadora, pois potencialmente armada
Vladimir Safatle, El País (08/09/2021)
Quem conhece a história do fascismo italiano sabe a quantidade inumerável de vezes que Mussolini, em sua ascensão ao poder, foi dado como politicamente morto, isolado, acuado, fragilizado. No entanto, apesar das finas análises de comentaristas da vida política italiana, apesar das sutis leituras que pareciam ser capazes de pegar as mais inusitadas nuances, Mussolini, o bronco Mussolini chegou onde queria chegar. Isso ao menos deveria servir para lembrarmos da existência de três erros que levam qualquer um a perder uma guerra, a saber, subestimar a dedicação de seu oponente, subestimar sua força e, por fim, sua capacidade de pensar estrategicamente.
O mínimo que se pode dizer é que a oposição brasileira é exímia em praticar os três erros contra Bolsonaro e seus adeptos. Ela parece animada pela capacidade de tomar seus desejos por realidade, de justificar sua paralisia como se fosse a mais madura de todas as astúcias. Agora, a isso ela acrescentou uma patologia que, nos antigos manuais de psiquiatria, chamava-se “escotomização”, ou seja, a capacidade de simplesmente não ver um fenômeno que ocorre na sua frente. Mesmo tendo 600.000 mortes nas costas por negligencia de seu governo em relação à pandemia, Bolsonaro conseguiu um 7 de setembro para chamar de seu, com mais de 100.000 pessoas na Paulista e quantidade semelhante na Esplanada dos Ministérios.
Ele se colocou como o líder inconteste de uma singular sublevação do governo contra o estado, afirmando que não reconhece mais a autoridade do STF. Ou seja, ele assumiu para o mundo que está em rota de colisão com o que restou da institucionalidade da vida política brasileira. Seus apoiadores saíram desse dia com sua identificação reforçada e compreendendo-se como protagonistas de uma insurreição popular que de fato está a ocorrer, mesmo que com sinais trocados. Uma insurreição que mostra a força do fascismo brasileiro.
De nada adianta falar que essa manifestação “flopou”, que estavam presentes apenas 6% do esperado. Uma insurreição nunca precisou da maioria da população para impor sua vontade. Ela precisa de uma minoria substantiva, aguerrida, unificada e intimidadora, pois potencialmente armada. Bolsonaro tem as quatro condições, além do apoio inconteste das Polícias Militares e das Forças Armadas, que por nada nesse mundo, mas absolutamente nada irá deixar um governo que lhe promete salários de até 126.000 reais.
Aqueles que se comprazem acreditando que o verdadeiro apoio de Bolsonaro é 12% são os que normalmente fazem de tudo para que nós não façamos nada. Mas para quem quiser de fato encarar o que está a ocorrer no Brasil, não há nada mais a dizer do que “o golpe começou”. A manifestação do 7 de setembro marcou uma clara ruptura no interior do governo Bolsonaro. De fato, acerta quem diz que o governo acabou. Mas isso significa apenas que Bolsonaro pode agora abandonar a máscara de governo e assumir a céu aberto o que esse “governo” sempre foi, desde seu primeiro dia, a saber, um movimento, uma dinâmica de ruptura que se serve da estrutura do governo para ampliar-se e ganhar força.
Assim, ele pode fortalecer seu núcleo duro, transformar eleitores em fieis seguidores sem precisar ter entregue nada que um governo normalmente entregaria, sequer a proteção contra a morte violenta produzida por uma pandemia descontrolada. Nunca um presidente falou ao povo, em seu momento de maior tensão, que partilhava abertamente o desejo de romper e ignorar uma institucionalidade que é simplesmente a representação dos clássicos interesses oligárquicos das elites brasileiras.
Infelizmente, que o “povo” em questão era a massa dos que sonham com intervenções militares, que amam torturadores, que abraçam a bandeira nacional para esconder sua história infame de racismos e genocídios, isso era algo que poucos poderiam imaginar. Por outro lado, por mais que certos setores do empresariado nacional simulem desconforto com sua presença, o que realmente conta é que Bolsonaro entrega a eles tudo o que promete, sabe preservar seus ganhos como ninguém, luta por aprofundar a espoliação da classe trabalhadora sem temer o que quer que seja.
Não por outra razão, seu 7 de setembro foi precedido por manifestos de empresários defendendo a “liberdade”: nova senha para o “direito” de intimidação e de ameaça. Enquanto isso, a oposição brasileira acha que ainda estamos no terreno dos embates políticos. Ela prepara-se para eleições, finge sonhar com frentes amplas esquecendo que, desde o fim da ditadura, sempre fomos governados por frentes amplas e vejam onde chegamos. Todos os governos eram alianças “da esquerda à direita”. Não foi por falta de frente ampla que estamos nessa situação. O cálculo simplesmente não é este. A esquerda precisa entender de uma vez por todas a natureza do embate, ouvir aqueles mais dispostos ao confronto, esses que não tiveram medo de ir para a rua hoje, e assumir uma lógica de polarização. Isso implica que ela precisa mobilizar a partir da sua própria noção de ruptura, em alto e bom som. Uma ruptura contra outra. Não há mais nada a salvar ou a preservar nesse país. Ele acabou. Um país cuja data de sua independência é comemorada dessa forma simplesmente acabou. Se for para lutar, que não seja para salvá-lo, mas para criar outro.