Podemos resumir em oito pontos a análise da convocação bolsonarista do dia 26 de maio de 2019:
1 – Começou com uma manifestação, convocada por bolsonaristas, contra o STF e o Congresso. Existem milhares de prints de tweets, posts de Facebook, vídeos no Youtube e mensagens de WhatsApp revelando isso. Não há como esconder.
2 – Ao ver que o evento poderia ser um fracasso, os bolsonaristas apelaram para os evangélicos, tentando transformar o protesto em um dia de oração pelo Brasil. Não se sabe até que ponto isso deu certo, pois o entusiasmo nas igrejas não foi tão grande.
3 – Ao ser duramente criticado por compartilhar no WhatsApp a convocação de uma marcha sobre Brasília (ver foto de capa deste artigo), Bolsonaro declarou que não compareceria ao evento e interferiu para transformar a manifestação em um protesto chapa-branca, a favor dele mesmo e pela aprovação das reformas.
4 – Os bolsonaristas passaram então a fazer uma razia virtual para dizer que a manifestação sempre teve como pauta as reformas e que todas as notícias sobre o inicial objetivo do evento (contra as instituições da democracia), publicadas durante semanas por eles mesmos, eram fake news da extrema-imprensa e dos comunistas. Resolveram disfarçar os objetivos antidemocráticos do ato divulgando a falsa ideia de que a motivação das manifestações era apenas a de pressionar o Congresso para a aprovação das reformas (e, no máximo, dar apoio ao presidente na sua pretensa luta para realizá-las contra um Congresso supostamente dedicado a sabotá-las)
5 – Não se sabe se dará muita gente ou pouca gente no dia 26/05. Não é difícil para governos, sobretudo aliados a igrejas, colocar gente nas ruas. O que deve ser observado, do ponto de vista das redes sociais (não das mídias sociais) é se haverá elementos de swarming (enxameamento que constela multidões de modo mais distribuído do que centralizado) ou se será uma manifestação de arrebanhados (como eram as manifestações da CUT, do MST e do PT).
6 – Se der pouca gente, Bolsonaro perderá popularidade, diminuirá sua influência sobre o Congresso e o bolsonarismo ficará com menos gás para tentar capturar os eleitores de Bolsonaro transformando-os em militantes da sua causa anti-sistema. Por outro lado, isso aumentará o ressentimento social, a vontade de revanche e o espírito de vingança da seita olavista que se apossou do governo do país. Ou seja, aumentará a polarização na sociedade.
7 – Se der muita gente, isso acelerará a dinâmica de confrontação na sociedade, instalando uma espécie de guerra civil fria, em que a próxima manifestação, contra ou a favor do governo, terá de ser maior do que a anterior, o que aumentará a instabilidade política e dificultará, em vez de fortalecer, as reformas, a atração de capitais e a possibilidade de crescimento (além, é claro, de perturbar negativamente o metabolismo normal do processo democrático).
8 – Em qualquer caso, a manifestação será ruim para o país. Protestos a favor e manifestações chapa-branca nunca deram muito certo em países democráticos.
Ou seja, seja qual for seu resultado – com pouca gente ou muita gente – a manifestação chapa-branca convocada para 26 de maio será péssima para o país. Curiosamente, uma parte da imprensa, que quer salvar Bolsonaro dele mesmo, está se esforçando para dizer que agora a coisa mudou, que o próprio presidente veio a público dizer que a manifestação não é contra as instituições e coisa e tal. São os mesmos que diziam que Bolsonaro seria desasnado pela prática concreta de governo, controlado pelos militares ou domesticado por Paulo Guedes ou pelo mercado.
Cabe lembrar que nenhum projeto antidemocrático avançou, em qualquer lugar do mundo ou época da história, sem a vacilação, a leniência e a conivência de uma porção de intelectuais que diziam: “não é bem assim”, “o aprendiz de tirano será controlado pelo sistema”, “nossas instituições estão funcionando e vão colocá-lo no lugar”.
Há exceções, é claro. Reinado Azevedo, por exemplo, hoje, em seu blog no UOL, percebeu e denunciou a trama. Leiam abaixo.
Na antevéspera da patuscada golpista, Bolsonaro deve se achar muito esperto
Reinaldo Azevedo, Blog no Uol (24/05/2019)
O presidente Jair Bolsonaro deve estar se achando o rei da esperteza. Em café da manhã nesta quinta com alguns poucos jornalistas reais e muitos autointitulados — são militantes políticos da seita… bolsonarista —, afirmou que aqueles que forem às ruas no domingo marchar contra o Supremo e contra o Congresso estarão na manifestação errada. E conseguiu se lembrar de uma frase de efeito que alguém certamente lhe soprou aos ouvidos: “Isso é manifestação a favor de [Nicolás] Maduro, não de Bolsonaro”. O registro é do site “Poder 360”, cujo representante à mesa integrava o grupo dos jornalistas de fato, não de ficção. E de onde vem a satisfação consigo mesmo? Explico.
Ora, foi o presidente da República quem, na sexta passada, por meio da divulgação de um chororô golpista e mal alinhavado, anunciou a seus fiéis que está em curso um complô que torna o país ingovernável. Ou essas forças são neutralizadas, ou aquele que veio para nos salvar ficará de mãos atadas. No sábado, ele pôs para circular o vídeo de um pastor congolês que assegura que o Jair é mesmo o nosso messias. Opor-se a suas ideias corresponderia a lançar-se contra a vontade de Deus. Filipe Martins, seu assessor especial, braço armado com tuítes do olavismo doidivanas, convocou todos os templários a combater o mal.
Ora, constitui crime de responsabilidade identificar-se com uma pauta que abertamente hostiliza Supremo e Congresso e que prega um golpe de Estado — no caso, um autogolpe: Bolsonaro lideraria, com o apoio das Forças Armadas, o esmagamento dos dois outros Poderes. A isso os malucos chamam aplicar o Artigo 142 da Constituição, como se o dito-cujo não definisse justamente o contrário. As Forças Armadas são garantidoras da Constituição e do livre exercício dos Poderes. Não o contrário.
Mas sabem como é… O “capitão” já teve ideias insanas antes, como explodir bombas em quarteis ou na adutora do Guandu, que abastece o Rio de Janeiro, conforme revelado pela Veja em 1987. Tratava-se, então, de um protesto, imaginem vocês!, contra os vencimentos dos militares. Quem consegue chegar a tal delírio tendo colegas de tropa e a população civil como alvos pode sonhar em mandar para os ares, por intermédio de um golpe, dois Poderes da República. Aliás, dado esse histórico, alguns militares da reserva que agora se mostram chocados com o governo Bolsonaro podem até ter o direito de ficar melancólicos, deprimidos, chateados… Mas nunca surpresos.
O insuspeito de esquerdismo Ernesto Geisel, em depoimento aos professores Maria Celina d’Araújo e Celso Castro, assim se referiu em 1986 ao hoje presidente da República: “Presentemente, o que há de militares no Congresso? Não contemos o Bolsonaro porque o Bolsonaro é completamente fora do normal, inclusive um mau militar”. Os generais que hoje estão um tanto perplexos deveriam ter se lembrado da ficha — também a de soldado — do candidato que abraçaram.
Ainda na condição de rei da esperteza, o presidente pondera, em sua conversa com jornalistas reais e autointitulados, sobre a possibilidade de haver na rua defensores do golpe contra o Congresso e o Supremo. Diz que “um infiltrado defendendo essas ideias e usando a camisa amarela” até pode aparecer por lá. Ele finge esquecer que seus liderados gravam lives dentro da Câmara chamando seus próprios colegas de “bandidos”.
E como ele explica aquele papo de que os políticos é que prejudicam o Brasil. Bolsonaro tenta engabelar:
“Gente, eu estou no bolo, eu sou político. A classe política somos todos nós, estamos no poder desde depois de Figueiredo. Estou no bolo. Estou me incluindo no bolo”.
Sim, claro!, ele é político também. Mas não foram seus pares a, na prática, pedir poderes excepcionais para governar. Quem o fez foi Jair Messias Bolsonaro, aquele que desenhou no papel o esquema para explodir a adutora. Não é preciso que um radical de esquerda se infiltre nas hostes da extrema-direita bolsonarista para lhes atribuir o que não pensam. O pensamento da turma já é uma caricatura. Não há inimigo, com a natural propensão para a hostilidade, que possa se desincumbir melhor da tarefa.
Bolsonaro, na prática, convocou a manifestação. E é o responsável político por aquilo que acontecer no domingo nas ruas e, a partir de segunda, no Congresso.


