Três alegações falsas povoam as conversações atuais de parte da oposição no Brasil.
A primeira é a de que não há polarização entre Lula e Bolsonaro porque Lula não é de extrema esquerda.
A segunda é a de que não há polarização porque só um lado ataca com violência.
A terceira é a de que, se há polarização é entre a civilização (representada por Lula) e a barbárie (representada por Bolsonaro).
Refutar essas afirmações está ficando cansativo, mas é necessário.
Refutando a primeira afirmação
Há polarização toda vez que se pratica a política como continuação da guerra por outros meios. Não é necessário ser extremista para polarizar. Basta adotar o “nós” contra “eles”.
Nem todo populismo é extremista. Por certo o populismo de extrema-direita é extremista e, não raro, insufla a violência. O populismo de esquerda só é extremista em alguns casos (como os de Maduro, na Venezuela e Ortega, na Nicarágua – que viraram ditadores), mas na maioria dos casos não (Lula, Evo, Correa, Lugo, Funes, Cristina, Obrador são populistas de esquerda, mas não são extremistas).
Refutando a segunda afirmação
A violência não é elemento necessário à polarização. Basta praticar a política como continuação da guerra por outros meios. E guerra não é violência. Não é, nem mesmo, destruição de inimigos e sim construção de inimigos.
O problema não é apenas a destruição violenta de inimigos. A construção não-violenta de inimigos também é um problema porque instala um estado de guerra (que pode ser uma guerra civil fria), reconfigurando os ambientes sociais para que eles induzam comportamentos adversariais.
Em suma, para degenerar a política como continuação da guerra por outros meios não é necessário ser extremista: basta instalar a dinâmica do “nós” contra “eles”. Nem é necessário destruir inimigos: basta construí-los (convertendo adversários em inimigos). Por último, não é necessário ser violento: basta deslegitimar o outro (a ponto de privá-lo dos meios necessários à consecução dos seus projetos).
Quando, há mais de 30 anos, o PT começou a degenerar a política como guerra civil fria (do “nós contra eles”) dizia-se que o problema eram as tendências extremistas que se abrigavam dentro da sigla (chamadas à epoca, pela imprensa, de “xiitas”). Foi um erro. O problema era a corrente hegemônica, mais moderada (os “sunitas”). O perigo não era a extrema-esquerda, que nunca teve força, coitada, mas a esquerda mesmo (que, às vezes, até se dizia de centro-esquerda). Foi essa corrente majoritária, de Lula e Dirceu, que comandou o mensalão e o petrolão, que elaborou a estratégia da “acumulação de forças” para, algum dia, dar um curto circuito na dominação das elites, que começou a implementar o projeto – interrompido pelo impeachment – de conquistar hegemonia sobre a sociedade a partir do Estado aparelhado pelo partido.
Refutando a terceira afirmação
Numa polarização, o fato de um lado representar a barbárie (a violência, a destruição de direitos, a restrição das liberdades) não qualifica o outro lado como democrático (o lado mais “civilizado” pode não ser plenamente democrático).
Em cerca de 90% do tempo considerado civilizado (nos últimos 5 a 6 milênios), as forças políticas dominantes não foram democráticas.
Resumindo. Ser contra a barbárie não é necessariamente ser democrático.
Nota final
Há polarização toda vez que existe populismo. Seja populismo de direita ou extrema-direita (como o populismo-autoritário bolsonarista), seja populismo de esquerda ou centro-esquerda (como o neopopulismo lulopetista).
É preciso entender os populismos contemporâneos. Uma característica definidora de qualquer populismo é praticar a política como questão de lado: o lado do povo (“the true people“) x o lado dos outros (das elites, do establishment etc.). A tabela abaixo, preparada por Jordan Kyle e Limor Gultchin (2018), para o artigo Populistas no poder ao redor do mundo e publicado pelo Tony Blair Institute for Global Change, descreve as três maneiras pelas quais os populistas enquadram o conflito “nós vs eles”:
Cuidado! Quem critica o populismo de esquerda – seja o populismo mais extremista, como o chavismo-madurismo e o orteguismo bolivarianistas; seja o populismo mais moderado, como o lulopetismo, o kirchnerismo e o obradorismo – não é necessariamente de direita ou extrema-direita. Pode ser só um democrata liberal.
Ser contra o populismo-autoritário de extrema-direita não é razão para apoiar um populismo de esquerda (ou centro-esquerda), mesmo que moderado (ou não-extremo) como o lulopetismo. O centro de gravidade da política em democracias liberais não é de direita ou de esquerda.
É simples comprovar. Quais dos regimes vigentes nos países abaixo (as mais avançadas democracias liberais do mundo) têm um governo populista (de direita ou de esquerda)?