Comecemos com as disposições insuficientes – ou subótimas – para caracterizar um democrata, passando em seguida às suficientes.
DISPOSIÇÕES INSUFICIENTES
Ser contra a extrema-direita
Ser contra a extrema-direita antidemocrática não é suficiente para converter alguém em democrata. Díaz-Canel, Maduro e Ortega também são contra a extrema-direita e são ditadores.
Ser contra o fascismo
O mesmo vale para aqueles que são contra o fascismo. Boa parte dos aderentes ao movimento (ou conjunto de movimentações) conhecido como Antifas apoia Cuba (uma ditadura) e, até, por mais paradoxal que pareça, a Rússia de Putin – que é um dos regimes mais próximos do que chamamos de fascismo, num sentido ampliado do termo.
Ser contra extremismos
Em termos mais gerais, não basta ser contra os extremismos para ser democrata. A democracia vem sendo derruída no século 21 por muitas forças políticas que não podem, em sua maioria, ser definidas propriamente como extremistas. Para enfrear o processo de democratização não é necessário ser extremista: basta ser populista. O populismo dito de extrema-direita é em geral extremista e, não raro, insufla a violência. O populismo de esquerda (o chamado neopopulismo) só é extremista em alguns casos (como os de Maduro, na Venezuela e Ortega, na Nicarágua – que viraram ditadores), mas na maioria dos casos não (Lula, Evo, Correa, Lugo, Funes, Cristina, Obrador são populistas de esquerda, mas não são extremistas).
Ser contra alguma ditadura
Ser contra alguma ditadura também não é suficiente. A maioria dos que lutaram contra a ditadura militar no Brasil (1964-1985) não era composta por agentes convertidos à democracia. Uma parte desses atores era contra a ditadura de direita, mas queria instalar uma ditadura oposta, de esquerda (a ditadura do proletariado).
Ser contra a barbárie e a favor da civilização
Ser contra a barbárie e a favor da chamada civilização, também não confere a ninguém o passaporte de democrata. Numa polarização, o fato de um lado representar a barbárie (a violência, a destruição de direitos, a restrição das liberdades) não qualifica o outro lado como democrático (o lado mais “civilizado” pode não ser democrático ou plenamente democrático). Em cerca de 90% do tempo considerado civilizado (nos últimos 5 a 6 milênios), as forças políticas dominantes não foram democráticas. Resumindo. Ser contra a barbárie não é necessariamente ser democrático. O ditador Julio Cesar também era contra a barbárie (stricto sensu).
Ser contra a violência
Ser contra a violência também não é suficiente para caracterizar um agente político democrático. Por certo, quem pratica a política como continuação da guerra por outros meios não é democrático. Mas é preciso entender que guerra não é violência. Não é, nem mesmo, destruição de inimigos e sim construção de inimigos. Assim, o problema não é apenas a destruição violenta de inimigos. A construção não-violenta de inimigos também é um problema porque instala um ‘estado de guerra’ (que pode ser uma guerra civil fria), reconfigurando os ambientes sociais para que eles induzam comportamentos adversariais.
Aqui cabe acrescentar que visões minimalistas de democracia – como a de Adam Przeworski (simplificando: troca de governo sem derramamento de sangue) – servem para prevenir a violência política, mas não protegem a democracia de processos de autocratização por erosão (que agora são, cada vez mais, realizados de modo não violento e, inclusive, sem violar abertamente as leis escritas). Segundo o importante estudo de Anna Lührmann e Staffan Lindberg (2018) do V-Dem Institute, intitulado Uma terceira onda de autocratização está aqui: o que há de novo sobre isso?, “a erosão democrática tornou-se a tática comum durante a terceira onda de autocratização. Aqui, os titulares acessam legalmente o poder e gradualmente, mas substancialmente, minam as normas democráticas sem abolir as principais instituições democráticas. Tais processos representam 70% na terceira onda de reversão democrática”.
Ser contra a exploração
Ser contra a exploração também não é suficiente. O marxismo revolucionário, o marxismo-leninismo e a Terceira Internacional, também eram contra a ‘exploração do homem pelo homem’ (para usar a fórmula canônica) e, no entanto, instalaram ou inspiraram crueis ditaduras, inclusive uma das mais perversas formas de totalitarismo do século 20: o stalinismo.
Ser contra as discriminações
Ser contra as discriminações, na linha identitarista, também não torna ninguém democrata. A velha esquerda classista pensava que só pode haver verdadeira liberdade se houvesse igualdade (sócio-econômica). A nova esquerda identitarista acha que só pode haver plena igualdade se houver o reconhecimento – e a afirmação – da diferença. Ambas, portanto, transformam a liberdade num futurível e, nessa medida, não são democráticas (na medida em que a democracia é a liberdade possível hoje, não amanhã). Além disso, a esquerda identitarista se propõe a fazer guerra contra os discriminadores para afirmar (e impor) a diferença, o que não caracteriza um comportamento democrático (na medida em que a democracia é um modo pazeante – não-guerreiro – de regulação de conflitos).
Ser contra a perseguição a minorias sociais
Por isso que ser contra a perseguição a minorias sociais é insuficiente para qualificar um agente político como democrático. É necessário também ser contra a deslegitimação das minorias políticas (que as transformam em inimigas do povo). Os populistas, por exemplo, acham – ainda que nem sempre o declarem por razões táticas, como as eleitorais – que as minorias políticas (antipopulares) não devem ser toleradas quando impedem a realização das políticas populares (já que carregam a estranha noção de democracia como soberania popular).
DISPOSIÇÕES SUFICIENTES
Ser contra todas as autocracias e todos os populismos
É claro que ser contra também pode definir um democrata. Duas disposições simultâneas devem ser consideras aqui:
Em primeiro lugar, ser contra qualquer autocracia: sejam autocracias fechadas (como China, Coréia do Norte, Arábia Saudita ou Sudão), sejam autocracias eleitorais (como Índia ou Hungria, comandadas por forças políticas populistas-autoritárias, ditas de extrema-direita; ou, como Venezuela ou Nicarágua, comandadas por forças neopopulistas ditas de esquerda).
Mas, atenção! Se estamos falando de democratas no sentido pleno do conceito, quer dizer, de democratas liberais, essa condição só vale em conjunção com uma outra:
Em segundo lugar (e simultaneamente), é necessário também ser contra qualquer populismo: tanto o populismo-autoritário, dito de extrema-direita que parasita democracias eleitorais (como na Polônia, na Áustria, na Bulgária ou no Brasil), quanto o neopopulismo, dito de esquerda, que também parasita democracias eleitorais (como no México, na Argentina, na Bolívia ou, novamente, no Brasil).
Essa condicionante – ser contra todos os populismos – tem uma razão: os populismos (os novos populismos do século 21) são hoje os principais adversários da democracia. Como se sabe, os populistas acham que a sociedade está dividida por uma única clivagem, separando a vasta maioria (o povo) do establishment (as elites). Acham também que a polarização (povo x elites) deve ser encorajada: os representantes do povo (que são os atores legítimos ou mais legítimos) não devem fazer acordos (a não ser táticos) ou construir consensos (idem) com os representantes das elites (posto que estes são ilegítimos ou menos legítimos) e sim buscar sempre suplantá-los, fazendo maioria em todo lugar (majoritarismo). No limite, acham que a legalidade institucional (erigida para servir às elites) não deve ser respeitada quando se contrapõe aos interesse do povo (entendido por ‘povo’, the true people, os que seguem o líder populista).
Isso significa que democratas – no sentido pleno, liberal, do termo – são os que não apoiam forças políticas responsáveis pelos regimes hachurados em cinza (iliberais ou não suficientemente liberais) no diagrama abaixo:
Para a classificação proposta acima partimos da tipologia de quatro tipos de regimes políticos (democracia liberal, democracia eleitoral, autocracia eleitoral e autocracia fechada) apresentada por Lurhmanm, Tannenberg e Lindberg (2018) no paper Regimes of the World (RoW): Opening New Avenues for the Comparative Study of Political Regimes – considerando porém que, como toda classificação, essa também é arbitrária: não podemos saber exatamente quem está na fronteira entre um tipo de regime e outro e nem acompanhar os deslocamentos de um para outro tipo de regime.
É fácil fornecer exemplos de democracias liberais (Suécia, Noruega, Nova Zelândia). Mais difícil é fornecer exemplos de democracias eleitorais não parasitadas por populismos (Portugal, República Checa, Croácia). Temos ainda exemplos de democracias eleitorais parasitadas pelo neopopulismo dito de esquerda ou centro-esquerda (Bolívia, Argentina, México) e de democracias eleitorais parasitadas pelo populismo-autoritário dito de extrema-direita (Polônia, Áustria, Eslovênia). Quanto às autocracias eleitorais parasitadas pelo neopopulismo, os exemplos são quase óbvios (Venezuela, Nicarágua, Angola) e o mesmo vale para as autocracias eleitorais parasitadas pelo populismo-autoritário (Rússia, Índia, Hungria). Por último temos as autocracias fechadas ou não-eleitorais, que dispensam exemplos (Cuba, China, Arábia Saudita).
Existem, todavia, algumas singularidades que complicam essa classificação. Os Estados Unidos (ainda) são uma democracia liberal, mas parasitada por um populismo-autoritário (o trumpismo) – o que é uma exceção, pois democracias liberais são mais imunes à influência de populismos. Outro caso singular é o Brasil, que é uma democracia eleitoral parasitada simultaneamente por um populismo de extrema-direita (o bolsonarismo) e pelo neopopulismo de esquerda ou centro-esquerda (o lulopetismo).
Ser contra todas as autocracias e todos os populismos, embora em termos estritamente políticos seja suficiente para caracterizar um democrata, não esclarece suficientemente a natureza da conversão à democracia. Ainda que a democracia seja, geneticamente, um processo de desconstituição de autocracia, a conversão à democracia exige um conjunto de disposições a favor.
Começando com o óbvio:
1) para ser democrata é necessário ser a favor de direitos políticos e liberdades civis.
Está correto, mas essa concordância genérica não ilumina plenamente o objeto de nossa indagação. É preciso descer mais fundo.
Antes de qualquer coisa, porém:
2) para ser um democrata, no sentido pleno ou liberal do termo, é necessário ser a favor da liberdade – e não da ordem, mesmo que seja a ordem mais justa imaginável – como sentido da política (pois que essa é a definição originária de ‘liberal’ na acepção política do conceito).
Democratas (liberais) são os que dizem: eu não tenho nenhuma ordem para colocar no lugar da sua, porque aposto na emergência de novas ordens a partir da livre interação. Mas não vale escapar da liberdade hoje exilando-a para algum futuro remoto. Não se trata, portanto, de ser a favor da liberdade no porvir – na utopia de uma sociedade igualitária, onde não houver mais exploração e discriminação, num reino da abundância a se instalar num amanhã que canta – e sim da liberdade hoje, aqui e agora.
Aduzam-se, ainda:
3) Para ser um democrata é necessário ser a favor da interação amistosa e da conversação. Isso significa ficar aberto à interação com o outro-imprevisível (ou não-selecionável ex ante à interação).
4) Para ser um democrata é necessário ser a favor da autonomia e estar disposto a apostar na auto-organização.
5) Para ser um democrata é necessário ser a favor de agir com outras pessoas para contender com problemas comuns e para realizar projetos conjuntos a partir da congruência de seus desejos.
Essas condições se interpenetram: muitas vezes a adesão a uma delas implica adesão a várias outras. Estão aqui elencadas a partir de um esforço descritivo, não analítico.
Como estamos tratando de disposições subótimas, foge do escopo deste artigo um tratamento mais detalhado de cada uma das cinco disposições acima (ótimas em seu conjunto). Sobre a última, porém, cabe um comentário preliminar, pois que ela tornou-se fundamental nos tempos que correm.
Há um relativo consenso de que a formação democrática da vontade política tem como fonte originária:
(a) a liberdade individual de opinar protegida da interferência do Estado (segundo a visão clássica do liberalismo moderno);
(b) o reino público constituído pela argumentação discursiva (segundo as visões do republicanismo político de Arendt e do procedimentalismo democrático de Habermas).
Todavia, uma terceira fonte, embora já aventada no final da primeira metade do século passado, mas nunca suficientemente explorada, também merece ser considerada:
(c) a convergência comunal de desejos pessoais para contender com um problema ou realizar um projeto (segundo a visão de democracia cooperativa de Dewey).
Com a manipulação das mídias sociais para falsificar o processo de formação da opinião pública – que literalmente estilhaçou o espaço público em miríades de esferas privadas, opacas à interação horizontal -, com as fake news (expressão que deve ser traduzida por ‘notícias fraudulentas’) e a chamada pós-verdade (desabilitando o papel formador da opinião pública da interação de opiniões sobre os mesmos fatos, na medida em que inventa novos fatos), a democracia dependerá, cada vez mais, de uma transição de (a) e (b) para (c).
Não há mais liberdade individual de opinar protegida da interferência do Estado. Pelo contrário, o Estado está sendo chamado a interferir mais, pois a liberdade individual de opinar virou, em grande medida, atentado à democracia, com a deslegitimação das instituições, a pregação da intolerância, a difusão do ódio e a disseminação calculada de mentiras e a defesa aberta de regimes autocráticos e comportamentos autoritários e, não raro, ilegais. Isso é contraditório pois a liberdade vem sendo tomada – sobretudo pelo populismo-autoritário – como a liberdade de acabar com a liberdade.
Ademais, o reino público ficou muito reduzido e vem sendo substituído pelo surgimento caótico de miríades de reinos privados tribais (na medida em que o broadcasting privado tornou-se viável com o ab uso das mídias sociais). Estamos correndo o sério risco de que quase ninguém preste mais atenção à argumentação discursiva; ou seja, de que não seja mais o debate, a interação e a polinização mútua de opiniões, que forme uma opinião pública e sim a replicação de versões urdidas para impedir que as opiniões sejam modificadas pela interação.
Nestas condições “ambientais” a democracia tem de voltar às suas origens (comunitárias) se quiser ganhar um novo impulso ou nascer novamente.