Não avalizo esse juízo de que está faltando no Brasil uma direita democrática. Se algum democrata quiser se dizer de direita, tudo bem, tem todo o direito. Mas o importante para a democracia é que ele seja democrata, tanto faz que se diga de direita ou não.
Aliás, poder-se-ia dizer, no mesmo diapasão, que está faltando no Brasil uma esquerda democrática liberal. Mas o importante aqui, para a democracia, é que existam democratas liberais, tanto faz que queiram se dizer de esquerda ou não.
“Mas Augusto, por que você é um democrata liberal?”. É simples. Porque eu prefiro os regimes da Alemanha, da Austrália, do Chile, da Dinamarca, da Finlândia, da Holanda, da Irlanda, de Luxemburgo, da Noruega, da Nova Zelândia, da Suécia e da Suíça a todos os outros. Mas fique, porém, à vontade para preferir outros regimes, quem sabe os da Arábia Saudita, da China, da Coréia do Norte, de Cuba, da Hungria, da Índia, do Irã, da Nicarágua, da Rússia, do Sudão do Sul, da Turquia ou da Venezuela. Gosto não se discute.
A gente insiste nesse esquema interpretativo mofado esquerda x direita quando ele não tem mais nenhuma potência analítica. Putin é de direita ou de esquerda? Basta esta pergunta para desativar esse malware (que só serve à guerra fria).
Vejamos alguns exemplos.
Se ser de esquerda é elogiar os regimes de Cuba ou da China, se recusar a condenar as ditaduras da Venezuela ou da Nicarágua e não denunciar as violações de direitos humanos cometidas por esses países, então eu não posso ser de esquerda.
Se ser de direita é elogiar os regimes da Hungria, da Turquia, da Índia ou da Rússia, achando que eles cumprem um papel importante no enfrentamento do globalismo, então eu não posso ser de direita.
Se ser de esquerda é acreditar que há uma imanência na história, que a história vai para algum lugar, que a história é regida por leis que podem ser conhecidas por quem tem a teoria verdadeira para interpretar a realidade (o marxismo), então eu não posso ser de esquerda.
Se ser de direita é acreditar que existe uma ordem moral duradoura, independente da (e anterior à) interação, posto que inerente à natureza humana (seja lá o que for), então eu não posso ser de direita.
Se ser de esquerda é achar que a luta de classes é o motor da história (inclusive na sua variante contemporânea de luta identitarista), então eu não posso ser de esquerda. E ainda: se ser de esquerda é conceber (e praticar) a política como continuação da guerra por outros meios (já que, em sociedades de classes, a luta de classes seria uma espécie de guerra permanentemente presente), então eu não posso ser de esquerda.
Se ser de direita é achar que devemos lutar contra ideologias que pretendem destruir o mundo ocidental judaico-cristão, solapar a família (monogâmica), a igreja (tradicionalista), Deus (ou as religiões ortodoxas) e a pátria, então eu não posso ser de direita.
Se ser de esquerda é achar que Putin cumpre um grande papel no enfrentamento do imperialismo americano, se recusar a ajudar a resistência ucraniana e ainda tentar inculpar Zelensky pela guerra, então eu não posso ser de esquerda.
Se ser de direita é achar que Putin cumpre um grande papel no enfrentamento do liberalismo, capitaneado pelos Estados Unidos e pelas nações da União Europeia, então eu não posso ser de direita.
Se ser de esquerda é achar que a igualdade é uma precondição para a liberdade (ou que a igualdade socioeconômica é condição para a liberdade política), que não pode existir (verdadeira) democracia se o povo passa fome (ou enquanto não forem reduzidas as desigualdades socioeconômicas), então eu não posso ser de esquerda.
Se ser de direita é achar que a democracia é a escolha dos mais capazes e que estes são os que têm mais conhecimentos ou habilidades para gerir os negócios públicos, então eu não posso ser de direita.
Se ser de esquerda é querer substituir o conceito de democracia pelo conceito de cidadania (achando que o fundamental é entregar “casa, comida e roupa lavada” para a maioria da população ou para os seus estratos mais pobres), então eu não posso ser de esquerda.
Se ser de direita é achar que um governante honesto, mesmo que não adote a democracia, apoiado pela maioria do seu povo e dedicado ao seu bem-estar, pode ser melhor do que chefes de governo democraticamente eleitos, porém manietados por parlamentos cheios de políticos fisiológicos ou corruptos, então eu não posso ser de direita.
Se ser de esquerda é estabelecer uma equivalência – em termos de valor – entre os conceitos de democracia e soberania, avaliando que democracia é, fundamentalmente, soberania popular (quer dizer, predomínio de uma classe social, de um líder, de uma força política, de um governo, de um Estado) para entregar mais cidadania (para “o povo”), então eu não posso ser de esquerda.
Se ser de esquerda ou de direita é achar que o sentido da política é a ordem (uma ordem futura mais justa e igualitária ou uma ordem pregressa ou eterna, mais condizente com a natureza humana), então eu não posso ser de esquerda, nem de direita. Porque, para mim, o sentido da política não é a ordem, nenhuma ordem, e sim a liberdade, a liberdade de ser infiel às próprias origens, a liberdade, inclusive, de não ter rumo, abandonado ao fluxo interativo da convivência social, sem um propósito, um objetivo, uma utopia.
Isso, para mim, é ser um democrata, no sentido pleno do conceito.
Se você já é um democrata (pleno ou liberal), qual o sentido de se dizer de esquerda ou de direita? Você só fará isso se achar que a democracia é meio e não também fim. Ou seja, se espera usar a democracia como instrumento para alcançar algum objetivo extra-político.