E ela não é pobre, nem gosta muito de pobre
Neste artigo o termo ‘base social’ não é equivalente à ‘classe social’, ou seja, um grupo específico definido pela sua posição no processo de produção ou de acumulação ampliada do capital e na divisão social do trabalho. Base social, aqui, se refere a um conjunto de pessoas que possuem um perfil semelhante do ponto de vista da sua caracterização demográfica e das suas opiniões identitárias auto-declaradas sobre temas políticos e comportamentais.
Nesse sentido pode-se afirmar que há, de fato, uma base social para o bolsonarismo, que não é composta por militantes bolsonaristas (que talvez perfaçam apenas cerca de 10% dos eleitores de Bolsonaro), nem por boa parte dos eleitores de Bolsonaro (e aí se incluem os antipetistas ou os temerosos da volta do PT ao governo, os apavorados com a situação de insegurança pública, os indignados com a corrupção e instrumentalizados pelo discurso moralista antipolítica do lavajatismo etc.).
Pela pesquisa do Monitor do Debate Político no Meio Digital, feita na Avenida Paulista durante o dia 26 de maio, podemos inferir alguns elementos que compõem o perfil dessa base. Ela é composta por setores médios da população (a tal “classe média”) e não pelo chamado “povo” – no sentido de pobre, trabalhador braçal urbano e rural (com renda familiar de até 3 salários mínimos). Desempregados, empregados informais e jovens (estudantes) não compõem significativamente essa base. É uma base predominantemente branca (66%), composta por empregados formais (27%), autônomos (20%), aposentados (18%) e pequenos e médios empresários (15%), com renda familiar acima de 5 salários mínimos, ensino superior completo ou incompleto (quase 70%) e idade média de 45 anos (na verdade a média não reflete a granulação: 13-17 = 1%, 18-24 = 8%; 25-34 = 13%; 35-44 = 23%; 45-54 = 20%, 55-64 = 23%; 65+ = 12%).
Ou seja, essa base social não é composta por pobres. Deve-se acrescentar, com base em outros elementos do seu perfil, que ela também não tem grande preocupação com os pobres (nem manifestam graus significativos de solidariedade social). Na verdade, esses contingentes não gostam muito de pobre e tendem a achar que quem é pobre é preguiçoso ou não se esforça o bastante para melhorar de vida. Ademais, compartilham uma crença, já bem difundida: uma convicção meritocrática de que os pobres são pouco inteligentes porque pouco preparados (escolarizados) ou em razão de outros tipos de deficiências, de sangue ou de berço, ainda mais odiosas.
É uma base que conta com pessoas sem experiência política (e sem filiação partidária), com pouca compreensão da democracia e do papel das instituições do Estado de direito ou avessa mesmo à democracia (quer dizer, i-liberal no sentido político do termo), que espera por (ou está predisposta a confiar em) um salvador da pátria, um líder honesto, forte e corajoso, para resolver todos problemas do país. É uma base antifeminista e conservadora nos costumes (no que diz respeito a temas como religião, família, drogas e punição de criminosos).
Qual o tamanho dessa base? Bem… Quem recebe mais do que R$ 5.214 por mês já está entre os 10% a 15% mais ricos do Brasil. Isso é quase sete vezes mais do que a média do rendimento real de metade da população, que foi de apenas R$ 754 (2017). Os dados são da Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílio e foram divulgados pelo IBGE (em 2018).
A pirâmide abaixo mostra, com dados mais recentes (e menos confiáveis, posto que resultados de pesquisas de opinião) as porcentagens da população por renda mensal das famílias:
Vejam que não estamos falando aqui de base política e sim de base social – ou seja, de lugar de extração de agentes políticos e de captura de eleitores (e, eventualmente, de militantes) a partir da expectativa de satisfação de interesses materiais (sócio-econômicos).
Fica claro que o público bolsonarista não é composto por pobres. O bolsonarismo se dirige e se destina aos do meio para cima, não ao chamado “povo”. A turma que acha bom comprar quatro armas de fogo e mil munições não pode mesmo estar na base da pirâmide (por falta de orçamento).
Note-se que essa é a base ideal para o fascismo (ainda que o bolsonarismo não possa ser caracterizado como fascismo do ponto de vista teórico): despolitizada, analfabeta democrática, crente em líderes redentores, conservadora nos costumes e reacionária na política (sem proteção ético-política contra comportamentos fascistoides), essa base se acha “o povo” (embora não ultrapasse 10% a 15% da população). Corresponderia, mais ou menos, àquilo que os agentes de mercado chamam de “Classe B” (com renda média familiar maior do que 5 e menor do que 17 mil reais mensais e por isso é enquadrada como “classe média” em termos de consumo, ainda que uma parte de cima da chamada “Classe C”, com renda perto de 5 mil reais e uma parte de baixo da chamada “Classe A”, com renda perto de 17 mil reais, também possam ser incluídas nessa base).
Essa é a base que é dita (e às vezes se diz) “de direita”. Mas isso não fornece argumento válido para a esquerda que coloca a igualdade como pre-condição para a liberdade, que quer dizer (na prática) que não se pode ter plena democracia enquanto não forem resolvidos os problemas da desigualdade social e que pretende também falar em nome do “povo”.
É preciso ver que essas duas posturas são igualmente reprováveis:
1) Tentar usar os pobres para implantar um projeto autocratizante de poder (como fazem os populistas de esquerda – como os lulopetistas).
2) Achar que quem é pobre é porque não se esforça o bastante e não ter a menor solidariedade social (como fazem os populistas de direita – como os bolsonaristas).
Os contingentes que compõem a base social predisposta ao bolsonarismo não equivalem, como já foi dito, aos menos de 60 milhões de eleitores de Bolsonaro. Devem perfazer um total de 20 a 30 milhões de pessoas, dos quais apenas uma pequena fração (em torno de 5 milhões de pessoas) foi arrebanhada ou capturada pelo bolsonarismo, parte da qual, por exemplo, encheu as ruas no dia 26 de maio de 2019. Por enquanto essa quantidade é metabolizável pela democracia. O problema é se esse número dobrar ou triplicar: neste caso poderá avançar uma transição reversa (ou colapso) da democracia eleitoral que temos para uma democracia eleitoral menos liberal ou, no limite, para uma autocracia eleitoral (para usar as classificações do V-Dem da Universidade de Gotemburgo). Há base social para isso, resta ver se haverá condições políticas.



