Há um uso solerte da catástrofe a serviço da propaganda política. Evitar o “mal maior” está se tornando um truque para empurrar uma posição política interessada em “varrer para dentro”.
Alguns gritam. “Vai ter golpe militar”. É possível, sim, mas não é provável. O objetivo dessa propaganda é fazer setores não-alinhados ao lulopetismo abandonarem toda alternativa à polarização entre dois populismos e apoiar já quem está na frente para evitar o “mal maior” (ou seja, para que Lula vença no 1º turno ou com tal vantagem no segundo turno que desarme a contestação do resultado por Bolsonaro).
Vamos falar a verdade. Se é tão provável que Bolsonaro dê um golpe de Estado, só há uma coisa sensata a fazer. Articular uma verdadeira frente ampla, juntando todas as forças democráticas para impedir o retrocesso iminente.
Para isso não ser um ardil – para compelir todo mundo a apoiar o PT -, é óbvio que o campeão nas pesquisas de intenção de voto, seja quem for, deve anunciar agora um governo de coalizão com todas as forças democráticas. Se é para impedir o “mal maior”, inclusive para desestimular o não reconhecimento da derrota por parte de Bolsonaro e o consequente golpe, não há nada a ser feito além disso.
Mas parece que não. Parece ser apenas, pelo menos para alguns – os que gritam como Bambi: “Fogo na Floresta” -, um modo de reconduzir Lula ao governo (e os petistas que voltarão a aparelhá-lo) numa boa.
Reflitamos.
O problema no Brasil não é bem o golpe de Estado, mas o ‘estado de golpe’. Ao tentar articular um golpe de Estado, mesmo sem força político-militar para tanto, Bolsonaro instala um ‘estado de golpe’. No ‘estado de golpe’ a democracia vai sendo corroída por dentro. Esse é o problema.
Estamos dizendo isso há muito, muito, tempo. Bolsonaro não vai dar um golpe. Ele já deu um golpe. Mas temos que entender o que é golpe na atualidade. A ameaça de golpe militar (que, provavelmente, não haverá) é um artifício para instalar um ‘estado de golpe’, ou seja, para ir erodindo a democracia.
O golpe que já teve está durando quatro anos. Foi o governo Bolsonaro. E os que agora gritam “Golpe” não quiseram – contra todas as evidências – abreviar legalmente seu golpe por meio do instrumento constitucional do impeachment.
Não! E por que não? Ora, porque, quem sabe, num amplo movimento pelo impeachment, poderiam surgir novas lideranças que ameaçassem embaçar a imagem mítica do velho e eterno monolíder Lula da Silva. Só por isso o PT sabotou uma campanha pelo impeachment. Queria deixar Bolsonaro no governo, dando o seu tipo de golpe (a erosão democrática) e fazendo todo tipo de barbaridade, sangrando talvez, para substituí-lo mais facilmente em 2022.
Todas (ou quase todas) as tentativas de golpe desferidas por líderes populistas-autoritários são para instalar um ‘estado de golpe’ que permita a erosão da democracia. Trump não deu um golpe à moda antiga. Orbán não deu um golpe. Erdogan idem. Os irmãos Kaczyński e Duda idem-idem. Modi não chegou ao governo ou nele se prorrogou por meio de um golpe de Estado. Nem Putin fez isso. Le Pen queria vencer as eleições francesas, não dar um golpe armado. O mesmo vale para Salvini.
Pessoas sinceramente preocupadas (e assustadas) perguntam: Bolsonaro entregará a faixa? Ao que tudo indica, entregará. Esperneando, como o Trump, mas acabará entregando. Os militares sabem que um golpe de mão – tipo Putsch de Cervejaria – teria pouca duração, destruiria a reputação das FFAA e acarretaria sanções graves para os envolvidos. E eles, os militares golpistas (que existem de fato), também sabem que não haverá nova anistia.
Ou seja, afirmar que não haverá golpe militar não implica afirmar que não haverá tentativa de golpe militar. E nem significa que não existam militares de alta patente (da ativa e da reserva) envolvidos numa articulação golpista. Por isso, a frente ampla continua na pauta. Mas ela não haverá. Porque o interesse desses que gritam “Golpe” não é barrar a trajetória de Bolsonaro substituindo-o por um democrata qualquer. Qualquer democrata, não! Só vale se for por Lula.