in , , ,

A janela que se abriu e rapidamente se fechou

A humanidade teve uma janela aberta, por duas décadas, para poder respirar, depois da primeira guerra fria mundial (1960-1990). Um vento fresco soprou entre a queda do muro de Berlim e o fim União Soviética e o atentado às torres gêmeas do WTC.

O que tivemos depois foi a ascensão dos populismos de esquerda (a partir do início do século 21). Surgiram então os regimes da Nicarágua (com Daniel Ortega: 1979-1984 e 2007 aos dias atuais), Venezuela (com Hugo Chávez e Nicolás Maduro: 1999 aos dias atuais), Brasil (com Lula e Dilma: 2003-2016), Bolívia (com Evo Morales e Arce: 2006-2019 e 2020 aos dias atuais), Honduras (com Zelaya e Xiomara: 2006-2009 e a partir de 2022), Equador (com Correa e Moreno: 2007-2021), Paraguai (com Lugo: 2008-2012), El Salvador (com Luis Funes e Salvador Cerén: 2009-2019), Argentina (com os Kirchners e Fernandez: 2003-2015 e 2019 aos dias atuais), México (com Obrador: 2018 aos dias atuais), Peru (com Castillo: 2021 aos dias atuais).

Tivemos também o início de uma forte recessão democrática: a partir de 2005 o número líquido de democracias (liberais ou apenas eleitorais) parou de crescer.

E, por último, o surgimento do populismo-autoritário de extrema-direita (sobretudo, mas não somente, depois do final da primeira década do século 21). Destacam-se aí a chegada de Vladimir Putin ao poder, na Rússia (1999 aos dias atuais); a ascensão do Movimento 5 Estrelas na Itália (2009-2019) e o protagonismo de Matteo Salvini (2018-2019); o governo de Orbán, na Hungria (2010 aos dias atuais); o governo de Erdogan, na Turquia (2014 aos dias atuais); a ascensão de Narendra Modi, na Índia (2014 aos dias atuais); o Brexit (2016, com consequências nefastas nos nossos dias); o governo de Duda, na Polônia (a partir de 2015); o governo de Duterte, nas Filipinas (2016-2022); a eleição e o governo de Trump, nos Estados Unidos (2016-2021) e o movimento populista de Steve Bannon (2016 aos dias atuais); e a eleição e o governo de Bolsonaro no Brasil (2018 aos dias atuais).

Tudo isso para não falar das autocracias islâmicas (ou teocracias), algumas submetidas à sharia (tendo como destaques o Irã xiita e a Arábia Saudita sunita) e os movimentos terroristas do jihadismo ofensivo islâmico financiados por esses dois centros tenebrosos. E, ainda, para não falar das vinte e quatro velhas ditaduras do século 20 (algumas islâmicas) que remanescem (Kuait, Uzbekistão, Vietnam, Bahrein, China, Cuba, Eritréia, Eswatini, Jordânia, Laos, Libia, Marrocos, Coréia do Norte, Oman, Palestina-Gaza, Qatar,  Somália, Sudão, Síria, Tailândia, UAE e Iêmen).

Dos regimes eleitorais a maioria (sessenta e dois) são autocracias eleitorais, ou seja, ditaduras ou proto-ditaduras que realizam eleições (Armênia, Hungria, Índia, Kênia, Líbano, Madagascar, Mali, Montenegro, Afeganistão, Argélia, Angola, Azerbaijão, Bangladesh, Belarus, Benin, Bolívia, Burundi, Cambodja, Camarões, CAR, Chad, Comoros, Congo, Djibuti, DRC, Guiné Equatorial, Etiópia, Fiji, Gabão, Haiti, Honduras, Irã, Iraque, Costa do Marfim, Kazaquistão, Kirguistão, Malásia, Mauritânia, Moçambique, Myamar, Nicarágua, Paquistão, Palestina-West Bank, Papua Nova Guiné, Filipinas, Rússia, Ruanda, Singapura, Somália, Tajiquistão, Tanzânia, Togo, Turquia, Uganda, Venezuela, Zâmbia, Zanzibar, Zimbabwe, Egito, Guiné e Turcomenistão).

Agora (no início da segunda década do século 21), fomos assolados pela pandemia do novo coronavírus e, com a ofensiva do imperalismo russo de Vladimir Putin e o acirramento da sua guerra de destruição e conquista da Ucrânia, estamos mergulhando numa segunda grande guerra fria mundial que tende a alinhar, num mesmo bloco, ainda que com diferenças internas, todos os populismos (ditos de esquerda ou direita) e os regimes autocráticos, contra as democracias liberais. E o mundo vai sendo coberto por uma grande, espessa e escura, nuvem i-liberal.

Restaram no planeta pouco mais do que trinta democracias liberais, reunindo apenas uma pequena parcela da população global (Austria, Bélgica, Costa Rica, Estônia, Finlândia, França, Alemanha, Irlanda, Israel, Japão, Luxemburgo, Holanda, Nova Zelândia, Espanha, Suécia, Suíça, Taiwan, Reino Unido, Estados Unidos, Austrália, Barbados, Canadá, Chipre, Dinamarca, Gana, Grécia, Islândia, Itália, Latvia, Noruega, Coréia do Sul e Uruguai).

A janela que se abriu no início dos anos 90 rapidamente se fechou.

Entre 2010 e 2020, duas democracias liberais (Polônia e Maurício) decaíram para democracias apenas eleitorais. Seis democracias eleitorais (Hungria, Turquia, Sérvia, Benin, Índia e Bolívia) viraram autocracias eleitorais. E uma autocracia eleitoral (Tailândia) virou autocracia fechada.

Na América Latina, só temos duas democracias liberais (Uruguai e Costa Rica). Na África, só temos uma (Gana). Entre todos os países grandes do mundo (acima de 100 milhões de habitantes), só temos duas democracias liberais (e olhe lá, porque uma delas – os EUA – está sob risco de decair para uma democracia apenas eleitoral).

E o que parece pior do que tudo é que, na atual recessão democrática, as sessenta democracias eleitorais que ainda existem, muitas das quais parasitadas por neopopulismos (ditos de esquerda) ou por populismos-autoritários (ditos de extrema-direita), não estão conseguindo se transformar em democracias liberais (Botswana, Chile, Lesoto, Lituânia, Malta, Maurício, Namíbia, Portugual, Senegal, Seicheles, Eslováquia, Eslovênia, África do Sul, Trinidad e Tobago, Vanuatu, Argentina, Brasil, Cabo Verde, Colômbia, Croácia, República Checa, República Domenicana, Equador, El Salvador, Georgia, Guatemala, Indonésia, Jamaica, Kosovo, Libéria, Maldivas, Mexico, Moldávia, Mongólia, Nepal, Macedônia do Norte, Panamá, Paraguai, Peru, Polônia, Romênia, São Tomé e Príncipe, Sri Lanka, Suriname, Timor Leste, Tunísia, Albânia, Butão, BiH, Gâmbia, Guiné Bissau, Guiana, Malawi, Nigéria, Serra Leoa e Ucrânia).

Todos os dados são do Relatório do V-Dem 2021 (Universidade de Gotemburgo). Atenção: já há um Relatório do V-Dem de 2022 (e neste novo relatório algumas posições se alteraram; por exemplo, o Chile, que passou a ser uma democracia liberal).

Diante desse quadro, pergunta-se por que alguém ainda defende a democracia liberal. Bem… além de todas as considerações que se possa fazer sobre a maior ou mais efetiva vigência de direitos políticos e liberdades civis nas democracias liberais, em comparação com os outros três tipos de regimes (as democracias eleitorais, as autocracias eleitorais e as autocracias fechadas ou não-eleitorais), há uma questão de preferência mesmo. Pode-se dizer que são lugares melhores para se viver. Porque são ambientes mais humanizantes.

Assim, diante da pergunta de por que alguém é um democrata liberal, vale desenhar uma resposta simples, com quarenta exemplos.

Nas dez frases abaixo, os regimes preferíveis (que vêm sempre em primeiro lugar) são democracias liberais. Em segundo lugar vêm as democracias eleitorais. Em terceiro, as autocracias eleitorais. E em quarto e último lugar, as autocracias fechadas.

Porque é preferível o regime da Suécia, do que os do Brasil, da Hungria ou do Vietnam.

Porque é preferível o regime da Noruega do que os da Argentina, da Índia ou da China.

Porque é preferível o regime da Nova Zelândia do que os da Bulgária, de Angola ou de Cuba.

Porque é preferível o regime da Finlândia do que os do Equador, de Honduras ou da Arábia Saudita.

Porque é preferível o regime da Dinamarca do que os da Colômbia, da Etiópia ou do Sudão.

Porque é preferível o regime da Islândia do que os da Guatemala, da Nicarágua ou da Somália.

Porque é preferível o regime da Irlanda do que os Nigéria, da Armênia ou da Tailândia

Porque é preferível o regime da Suíça do que os da Albânia, da Rússia ou da Síria.

Porque é preferível o regime da Holanda do que os da Romênia, da Venezuela ou da Eritréia.

Porque é preferível o regime da Austrália do que os do Paraguai, do Afeganistão ou da Coréia do Norte.

Quem não concorda com as preferências acima, não tem razão para ser um democrata liberal.

Mas a questão é: o que farão os democratas liberais num mundo que se torna cada vez mais i-liberal?

Dizemos que a democracia não é a luz de um holofote, mas a de miríades de pequenas velas. Os democratas liberais, se quiserem sobreviver nos médio e longo prazos, estão condenados a usar suas pequenas luzes para usinar novas matrizes de interação com o mundo, principalmente para experimentar, nos seus âmbitos de atuação, a democracia como modo-de-vida, preparando a abertura de uma nova janela nas décadas que virão.

Sobre o truque de contrapor um “mal menor” a um “mal maior”

Não vai ter golpe. Já teve!