Na janela de inovação que ficou aberta entre 2008 e 2014 conseguimos experimentar e formular muitas coisas interessantes, em especial sobre redes e democracia. Como se vê, essa janela se fechou completamente. Normal. É assim mesmo: o kairós é sempre fugaz, como o fluxo. No entanto não foi possível prever que retrogradaríamos num ritmo tão acelerado. Já comentei isso em vários artigos – o último, de 19 de abril de 2019, foi este: Como os inovadores sociais, perdidos no tempo, podem se achar.
O drama pode ser sentido, com toda a sua contundência, quando vemos agora que retrocedemos para padrões de convivência social, de percepção e de interação com o mundo, de décadas atrás. O campo foi perturbado de tal maneira que não é possível nem conversar com as pessoas sobre os pressupostos de sua visão de mundo.
Não adianta tentar mostrar que o ser humano não é inerentemente (ou por natureza) competitivo, que as pessoas nem sempre fazem escolhas tentando maximizar a satisfação de seus próprios interesses (ou preferências) materiais (egotistas), que a mobilização e organização da ação coletiva pode se dar sem líderes destacados ou que não é verdade que nada pode funcionar sem um mínimo de hierarquia. Embora esses postulados, tomados como verdades evidentes por si mesmas, estejam sempre presentes em suas convicções, questioná-los é inútil porquanto as pessoas nem entendem do que você está falando. Acham que você está falando grego. Ou javanês.
Novos padrões de interpretação e interação estavam surgindo, sobretudo a partir da nova ciência das redes. Mas hoje, ao ouvirem a palavra ‘rede’, as pessoas acham que você está falando das mídias sociais como o Facebook, o Twitter, o Instagram ou o WhatsApp – capturadas, colonizadas e manipuladas por hostes de jihadistas virtuais para travar suas guerras culturais fundamentalistas. Elas não dão conta de separar os meios (as mídias) da fenomenologia da interação social que se manifesta em padrões de organização mais distribuídos do que centralizados. Elas não veem que as mídias sociais estão sendo usadas, por potências hierárquicas, contra as redes sociais, quer dizer, contra a emergência de uma sociedade-em-rede.
Junho de 2013, em especial no Brasil, na Turquia e no Egito, foram manifestações importantes de uma nova fenomenologia da interação social, mas nem os promotores dos grandes protestos de 2015 e 2016 no Brasil entenderam o que aconteceu. Em agosto e setembro de 2014, na chamada Revolução dos Guarda-Chuvas, deu-se a mesma coisa, mas boa parte dos H-Kongers atuais também não viu quase nada do que havia acontecido. E não viu porque não estava mais no lugar de ver. Sim, o lugar não é apenas um localização no espaço, mas uma posição no tempo. Quando uma janela se fecha, ainda que você esteja no mesmo lugar no espaço, não está mais na mesma posição no tempo (ou no espaço-tempo dos fluxos, onde as redes existem propriamente como tais).
Agora me digam se é possível conversar sobre essas coisas com um bolsonarista ou um lulopetista. Me digam se há alguma possibilidade de diálogo criativo com um cara que quer matar bandidos, limpar o mundo dos corruptos, recuperar os valores da família monogâmica, defender a pátria contra os estranhos, promover uma nova cristandade. Ou me digam se é possível tratar desses assuntos com alguém que ainda espera ressuscitar um líder carismático, um condutor de rebanhos, um mesmerizador de massas, para restabelecer um processo de conquista de hegemonia de um pensamento sobre a sociedade a partir do Estado aparelhado pelo partido.
Não dá. A polarização entre bolsonarismo (ou bolsolavajatismo) e lulopetismo deforma tudo, inclusive a possibilidade de esclarecimento e de entendimento. Não é política (democrática). É guerra, conquanto fria, mas é guerra. E na guerra não há mais critério para nada, inclusive a verdade deixa de ser uma noção relevante.
No clima de guerra civil fria permanente instalado desde a campanha de 2018 (que não terminou, pois já entramos na campanha de 2022) é óbvio que uma base bolsonarista tende a se consolidar. Por enquanto é bastante minoritária, não alcançando 10% dos eleitores de Bolsonaro (90% dos 39% dos eleitores de Bolsonaro votaram nele por outras razões: indignação com a corrupção, medo da volta do PT, revolta com a insegurança pública etc.).
O objetivo dos populistas-autoritários que comandam ou se sujeitam à força política no governo (Bolsonaro e seus filhos, Olavo e os olavistas, Heleno e os militares linha-dura saudosos da ditadura, Moro e os instrumentalizadores políticos da operação Lava Jato: os bolsolavajatistas que querem instalar um Estado policial no Brasil) é dobrar ou triplicar essa base militante. Se isso acontecer, aí sim, nosso regime democrático poderá ser sensivelmente autocratizado. Autocratizar significa converter nossa democracia eleitoral em uma autocracia eleitoral – para usar a classificação do V-Dem da Universidade de Gotemburgo (que é a melhor já aparecida até hoje).
Por enquanto ainda não estamos caminhando para uma autocracia eleitoral. O problema, entretanto, é outro: mesmo não virando uma ditadura, a substância liberal da nossa democracia eleitoral está se esvaindo. O avanço de ideias e práticas autoritárias na sociedade vai mudando a configuração da rede social (de novo: nada a ver com as mídias sociais, que já foram capturadas pelo bolsonarismo, por um lado, e pelo lulopetismo resiliente, por outro).
Ou seja, mesmo que nosso regime (o modo – político – de regulação de conflitos) continue sendo democrático, ele está se descolando de padrões (sociais) de organização capazes de sustentar a democracia liberal.
O que está havendo, portanto, é uma revolução (para trás) na base da sociedade e no cotidiano do cidadão. Isso não pode ser contido apenas pela oposição formal (partidário-parlamentar), mas exige resistência democrática dos cidadãos, em todo lugar: nas famílias, nas escolas, nas igrejas, nos grupos de amigos, nas organizações sociais, nas comunidades de vizinhança, na imprensa e nas mídias sociais, nas empresas).
Isso ainda não ficou claro?
Para saber mais: http://democracia.org.br


