A tática de Bolsonaro de criar um clima de permanente instabilidade, seja para justificar um fechamento do regime, seja para manter mobilizada sua base para futuras disputas eleitorais, é pra lá de arriscada.
Bolsonaro não conta, como apregoa, com a maioria dos brasileiros a seu favor. As eleições de 2018 se deram numa constelação particularíssima de fatores e a tempestade perfeita que o levou ao governo não se repetirá. O contingente da população capturado e arrebanhado pelo bolsonarismo está longe de ser de 30 milhões de pessoas (20% do eleitorado): hoje ele não passa de 5 milhões de crédulos ou fiéis. É bom não confundir fiéis com possíveis ou potenciais eleitores (cuja quantidade é avaliada por pesquisas de opinião eleitorais com mais de três anos de antecedência).
Isso significa que Bolsonaro, seus filhos, seu guru e seus sequazes não têm força política para virar a mesa, nem para coagir as forças armadas a apoiá-los em uma aventura autoritária. Por outro lado, ainda estamos muito longe das eleições e o país não aguenta essa produção artificial de beligerância durante muito tempo.
Esse tipo de guerra civil fria acaba cansando, consome energias, impede a concentração de esforços em torno de agendas positivas, que realmente sejam de interesse das pessoas.
Tudo indica que eles erraram no timing. Isso poderia dar certo se estivéssemos há um ano do pleito. Não dá para levar o Brasil assim até outubro de 2022.
Mas os recentes movimentos açodados (e aloprados) da família Bolsonaro de investir na confusão, de criar inimigos imaginários, de flertar com a ditadura, de atacar as instituições e forçar os limites legais, indicam que pode vir coisa pior por aí. Bolsonaro e sua gangue querem acelerar o passo na via antissistema antes que o Estado democrático de direito lhes ponha um freio. Como consequência, a situação se deteriora rapidamente.
O fato é que, decorridos dez meses desde a posse, é possível fazer uma avaliação “econômica”. Os custos de manter Bolsonaro na presidência já são maiores do que os custos de retirá-lo democraticamente.
Há motivos? Motivos não faltam. A rigor, Bolsonaro já cometeu vários crimes de responsabilidade. E agora vem o caso, que promete ser o mais rumoroso, da confissão de obstrução de justiça.
“Nós pegamos antes que fosse adulterado, pegamos lá toda a memória da secretária eletrônica, que é guardada há mais de anos, a voz não é minha”, declarou Jair Bolsonaro ontem (02/11/2019) a jornalistas. Assista o vídeo completo:
A declaração do presidente deve ser questionada:
“Nós pegamos”.
Nós quem?
“Pegamos antes”.
Quando exatamente foi isso?
“Antes que fosse adulterado”.
Por que seria adulterado? Por quem seria adulterado? Como Bolsonaro poderia saber isso?
“Pegamos lá toda a memória da secretária eletrônica, que é guardada há mais de anos”.
Toda a memória? O que realmente foi pego por Bolsonaro? O que significa pegar?
Fizeram cópia? Onde estão as cópias?
Quem tem acesso à toda memória não pode também alterar os arquivos?
Se já havia uma investigação em curso, com autorização de quem isso foi feito?
Bolsonaro, pelo menos, informou à polícia e ao ministério público que ia fazer isso? Relatou posteriormente o que fez? Entregou o material às autoridades ou reportou o seu conteúdo? Para quem? E quando?
Ressalte-se que há evidências de escancarada manipulação da investigação sobre o crime contra a vereadora Marielle, sem solução há 600 dias.
A planilha que registrava o acesso ao condomínio onde moram Bolsonaro e o miliciano Lessa só foi recolhida pelos investigadores sete meses depois da prisão do suspeito. O material ficou esse tempo todo à disposição dos criminosos. E da família Bolsonaro…
Por que a mulher do miliciano assassino Ronnie Lessa fez a foto do livro de entrada da portaria do condomínio onde mora Bolsonaro e enviou ao marido? Quando ela fez isso?
Aliás, por que Élcio Queiroz que planejava cometer um crime juntamente com Ronnie Lessa, registrou presença na entrada do condomínio no mesmo dia, horas antes do homicídio. Não poderia ter telefonado e esperado o comparsa na rua? Entrou e se registrou só para deixar provas?
E por que Augusto Aras, o Procurador Geral da República escolhido pelo Presidente da República, arquivou um processo que envolvia o presidente ou seu familiar? E arquivou com base numa perícia que não tem a assinatura de um perito criminal profissional?
Aras argumentou que as gravações contradiriam a afirmação do porteiro. Mas essas gravações tinham sido submetidas a algum exame técnico? Ora, não! Se tivessem, a procuradora Sibilio não teria forjado uma perícia a toque de caixa, horas antes de dar a entrevista coletiva inculpando o porteiro. Um detalhe: a tal “perícia” não investigou a possibilidade dos arquivos terem sido excluídos ou renomeados.
Bolsonaro faz os brasileiros de idiotas insistindo que não foi ele que matou Marielle, que não autorizou a entrada de ninguém e que, portanto, nada tem a ver com o caso de vez que no dia da entrada de Élcio em seu condomínio ele estava em Brasília. Ou seja, dá uma resposta para uma pergunta que ninguém fez e se defende, marotamente, de uma acusação a esta altura inexistente. Ninguém o está acusando disso, nem a reportagem da Globo o fez. Pelo contrário, registrou a contradição do suposto depoimento do porteiro.
Não será por isso que Bolsonaro terá de responder na justiça e sim pelo fato de ter confessado obstrução de justiça.
Mas também não deve ser só por isso que Bolsonaro terá de ser politicamente interpelado pelo Congresso, se não por este caso, pelo conjunto da sua curta e desastrada obra de dez meses. Bolsonaro ataca as instituições, atrapalha o funcionamento da economia (que, sem as perturbações introduzias pelo seu modo de governar, estaria andando muito melhor) e destrói aceleradamente capital social ao derruir as bases de civilidade da nossa sociedade (sem as quais nenhuma democracia pode continuar florescendo).
Ou seja, ele é a crise.
A única maneira de sair da crise é apeá-lo, democraticamente, do poder antes que a situação fuja do controle e coisa muito pior venha a acontecer. Podem apostar: sairá mais barato.


