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Os novos ambientes de aprendizagem da democracia e a “academia” de Steve Bannon

Steve Bannon, o principal ideólogo do nacional populismo autoritário, líder do The Movement, ora em ascensão no mundo, está tentando instalar um centro de formação de militantes – semelhante à academia platônica – na Cartuxa de Trisulti, a 130 Km de Roma. A iniciativa vem sendo chamada de “universidade do populismo” e tem como objetivo criar líderes políticos para destruir o atual sistema globalista e construir uma União Europeia nacionalista e de direita. Não é uma má ideia, do ponto de vista conspiracionista dos antiglobalistas: ter um centro de iniciação de novos agentes da extrema-direita populista-autoritária e i-liberal.

Seu objetivo é servir à extrema-direita em ascensão e aos seus principais líderes, dentre os quais alguns populistas-autoritários, na Europa (incluindo a Turquia) e nas Américas. Em ordem alfabética: Anders Vistisen, Andrej Babis, Donald Trump, Geert Wilders, Gyöngyösi Márton, Heinz-Christian Strache, Jaroslaw Kaczynski, Jair Bolsonaro, Jörg Meuthen, Marine Le Pen, Matteo Salvini, Nigel Farage, Olli Kotro, Recep Erdogan, Santiago Abascal, Steve Bannon, Tomio Okamura, Viktor Orbán, Vlaams Belang (e não estão incluídos aqui os euro-asiáticos como Vladimir Putin e os asiáticos, como Rodrigo Duterte e, talvez, Narendra Modi).

Diz-se que Bannon quer montar uma “escola dos novos gladiadores”, ou seja, de guerreiros. Na verdade, ele quer – como fez Platão – organizar uma academia de tiranos.

O PROJETO DE BANNON TEM UM PERIGOSO PRECEDENTE PLATÔNICO

Como percebeu magistralmente Hannah Arendt (c. 1950), no fragmento 3b de seus escritos, publicados postumamente, sobre o sentido da política:

“Platão, o pai da filosofia política do Ocidente, tentou de várias maneiras contrapor-se à polis e aquilo que ela definia por liberdade. Tentou-o por meio de uma teoria política na qual os critérios da coisa política não são criados a partir da própria política, mas sim da filosofia, por meio do aperfeiçoamento de uma constituição que entrava em pormenores, cujas leis correspondem às ideias acessíveis apenas aos filósofos, e por fim por meio inclusive de uma influência sobre um soberano, do qual esperava que fosse transformar tal legislação em realidade — tentativa que quase lhe custou a vida e a liberdade. Entre tais tentativas está também a fundação da academia, que se efetuou tanto contra a polis — enquanto uma delimitação ao âmbito político original — como também, por outro lado, no sentido justamente desse espaço político específico grego-ateniense — ou seja, contanto que o conversar-um-com-o-outro se tornasse seu verdadeiro conteúdo. Daí, junto com o âmbito da liberdade da coisa política, surgiu um novo espaço da liberdade muitíssimo real, com repercussão até hoje na forma de liberdade das universidades e de liberdade de ensino acadêmico. Mas essa liberdade, se bem que formada à imagem de uma liberdade originalmente experimentada como política e entendida por Platão como um possível núcleo ou ponto de partida, a partir do qual devia ser determinado o estar junto de muitos no futuro, trouxe, de fato, ao mundo um novo conceito de liberdade. Ao contrário de uma liberdade puramente filosófica e válida apenas para os indivíduos, tão distante de tudo que é político, que só o corpo do filósofo habita a polis, essa liberdade de poucos tem completa natureza política. O espaço de liberdade da academia devia ser um substituto válido para a praça do mercado, a ágora, o espaço de liberdade central da polis. Para poder existir como tal, a minoria precisava exigir, para sua atividade, seu conversar entre si, ser dispensada das atividades da polis e da ágora, da mesma maneira que os cidadãos de Atenas eram dispensados de todas as atividades que serviam ao mero ganha-pão. Eles precisavam ser libertados da política no sentido dos gregos, para serem livres para o espaço de liberdade acadêmica, da mesma maneira como os cidadãos precisavam ser libertados das necessidades da vida para a política. E precisavam sair do espaço da própria coisa política, a fim de poder entrar no espaço da ‘coisa acadêmica’, da mesma maneira como os cidadãos precisavam sair da esfera privada de sua casa para se deslocarem para a praça do mercado. Assim como a libertação do trabalho e das preocupações com a vida eram pressupostos necessários para a liberdade da coisa política, a libertação da política tornou-se pressuposto necessário para a liberdade da coisa acadêmica”.

Mas aqui deve-se notar que a liberdade da coisa acadêmica (em Platão, notadamente, mas também nos seus “sucessores”) erigiu-se contra a liberdade da polis num sentido negativo e até certo ponto tenebroso. Não foi por acaso que na academia de Platão foram formados pelo menos nove tiranos. A academia platônica era um clube de antidemocratas, que conspirava contra a democracia, em Atenas e em várias cidades vizinhas ou próximas. Foi um empreendimento anti-sofista (e daí o ódio de Sócrates e Platão aos sofistas), que faziam “ciência” na praça, mantendo-se vulneráveis ao outro-imprevisível (e não no espaço fechado, murado, da fraternidade pitagórico-platônica, que só admitia a entrada de escolhidos).

Ocorre que a experiência da academia platônica teve, de facto, forte efeito político (ou antipolítico), contra a democracia. A academia dispensava, sim, uma educação contra a política, não apenas apolítica.

No final do capítulo 7 de seu extraordinário O Fascínio (ou, melhor, O Feitiço) de Platão (primeiro volume de A Sociedade Aberta e seus Inimigos), Karl Popper (1945) faz um interessantíssimo registro dos resultados do projeto educativo de Platão. Isso é muito relevante porquanto, como o próprio Popper escreve, “tem-se dito, e sempre com verdade, que Platão foi o inventor tanto de nossas escolas secundárias como de nossas universidades”.

O trecho reproduzido abaixo chega a ser surpreendente. Enquanto fomos levados a acreditar que a Academia de Platão era um lugar devotado ao culto do sublime conhecimento das Formas ou Ideias puras, um sodalício de seres mais elevados e espiritualizados, verdadeira fraternidade dos amantes da sabedoria, não vimos as barbaridades que ali se cometiam. Ninguém nos disse – nas escolas e universidades – que a academia platônica (precedente de nossas universidades) era, na verdade, um centro político conspiratório contra a democracia.

Como se sabe, Platão, com medo, fugiu de Atenas após a condenação de Sócrates e voltou muito tempo depois, quando a irritação dos democratas atenienses com os ensinos antidemocráticos de seu mestre havia esfriado, para organizar sua academia. O que não sabíamos é que ele, na verdade, fundou uma espécie de centro de formação de tiranos. Sim, a excelsa Academia era uma organização política voltada para destruir a (ou impedir a expansão da) democracia. É impossível não estabelecer um paralelo com o projeto atual de Steve Bannon.

Escreve Karl Popper:

“Na prática, Platão não mostrou demasiado sucesso como seletor de líderes políticos. Tenho em mente não tanto o decepcionante resultado de sua experiência com Dionísio, o Moço, tirano de Siracusa, como a participação da Academia de Platão na vitoriosa expedição de Dio contra Dionísio. Dio, famoso amigo de Platão, foi apoiado nessa aventura por certo número de membros da Academia de Platão. Um deles era Calipo, que se tomou o companheiro de maior confiança de Dio. Dio, depois que se fez tirano de Siracusa, mandou assassinar Heráclides, seu aliado (e talvez seu rival). Pouco mais tarde, foi ele próprio assassinado por Calipo, que usurpou a tirania para perdê-la treze meses após. (Foi ele, por sua vez, assassinado pelo filósofo pitagórico Leptines.) Mas este acontecimento não foi o único dessa espécie na carreira de Platão como mestre. Clearco, um dos discípulos de Platão (e de Isócrates), fez-se tirano de Heracléia, depois de haver-se apresentado como um líder democrático. Foi assassinado por um seu parente, Quíon, outro membro da Academia de Platão. (Não podemos saber como Quíon, que alguns retratam como um idealista, teria agido, pois foi logo morto). Estas e outras experiências similares de Platão — que se podia gabar de um total de pelo menos nove tiranos entre seus discípulos e companheiros de outrora — lançam luz sobre as dificuldades peculiares relacionadas com a seleção de homens que devam ser investidos de poder absoluto. É difícil encontrar um homem cujo caráter esse poder não corrompa. Como diz Lord Acton: todo poder corrompe, e o poder absoluto corrompe de forma absoluta”.

Na sua Nota 25 (do capítulo 7) Popper aduz:

“A Academia era famosa por educar tiranos. Entre os discípulos de Platão estavam Cairon, mais tarde tirano de Pele, Eurasto e Corisco, tiranos de Esquépsis (perto de Atarneu), e Hermias, mais tarde tirano de Atarneu e Assos. Hermias, segundo algumas fontes, foi discípulo direto de Platão; de acordo com a chamada “ Sexta Carta Platônica”, cuja autenticidade é discutível, talvez ele fosse apenas um admirador de Platão disposto a aceitar seus conselhos. Hermias tornou-se protetor de Aristóteles e do terceiro diretor da Academia, o discípulo de Platão, Xenócrates. [Veja-se ainda] Perdicas III e suas relações com o aluno de Platão Eufaco, onde também se fala de Calipo como discípulo de Platão… Esta fraqueza fundamental permanece na teoria do ditador benevolente, teoria que ainda floresce mesmo entre alguns democratas”.

Platão percebeu o deficit de autocratas na democracia ateniense no início do século 4 a.C. E havia mesmo, depois de um século de experimentação democrática. Sua solução foi usar o que ele chamada de “educação” para suprir tal lacuna. Bannon deve ter percebido a mesma coisa nos dias que correm e sua solução foi… a mesma! Todavia, há também um deficit de democratas (de liberais-políticos) no mundo e no Brasil, sobretudo após a terceira onda de autocratização que vai nos engolfando. O que fazer diante disso?

VALE A PENA FUNDAR UMA ACADEMIA PLATÔNICA OU UMA “UNIVERSIDADE” DE BANNON COM O SINAL TROCADO?

No modelo platônico (que Bannon copiou), mesmo com o sinal contrário, não! Não vale. No dealbar da sociedade-em-rede, a escola é a rede, não mais hierarquias do conhecimento (na verdade, do ensinamento). Mas alguma coisa precisa ser feita, de vez que nossas instituições atuais não estão dando conta de cumprir esse papel.

Como seria então?

Em três artigos recentes avançamos uma proposta:

Uma iniciativa de aprendizagem da democracia voltada para a inovação

O que fazer diante do deficit de liberais-políticos: uma proposta

Por que virou um imperativo democrático da hora configurar novos ambientes de aprendizagem da democracia

Qual a diferença de uma iniciativa como esta – proposta nos artigos acima – e o projeto de Bannon?

Em primeiro lugar, é óbvio, o conteúdo. Não se trata de “educar” para a autocracia e sim para a democracia.

Em segundo lugar, nada de academia. Foi o descontentamento de Platão (e agora de Bannon) com a democracia que o levou a fundar a academia. A academia, como já foi dito acima, é uma tentativa de aprisionamento que substitui o espaço público pelo sodalício privado. Ao contrário da academia, nada de hierarquias do conhecimento (ou do ensinamento) que confere a alguns poderes regulatórios aumentativos em relação aos demais em virtude da sua capacidade de reproduzir conhecimento-ensinado.

Em terceiro lugar, configurar ambientes de aprendizagem e não de ensino. As diferenças entre as duas coisas já foram suficientemente explicadas ao longo dos últimos dois séculos. Existe uma variedade imensa de processos de aprendizagem, cuja maior parte é sem-escola, sem-ensino e sem-professor, como Leon Tolstoi já havia reconhecido, em 1862, no seu magnífico artigo Da instrução popular. Entretanto, mais de um século e meio depois e as pessoas não se deram conta de que aprendizagem e ensino não são a mesma coisa. Depois de Tolstoi, um conjunto de pensadores heterodoxos – como Carl Rogers (1961 e 1980), Jiddu Krishnamurti (1964), Ivan Illich (1970), Carlos Castaneda (1972), Michel Foucault (1975), Humberto Maturana (1982 e 1993) e John Holt (1989), entre outros – resolveram encarar seriamente a questão. Mas poucos – no universo dos pedagogos – prestaram a devida atenção ao que eles disseram.

Em quarto lugar, a iniciativa deve ser sem doutrina. Platão criou um centro de transfusão de doutrina e agora Bannon (assim como Olavo de Carvalho) quer fazer a mesma coisa. Mas a opção pela democracia não exige a adesão a um corpo de crenças como filtro para transformar caos em ordem, uma ordem estabelecida pregressamente ou antes da interação propriamente política – transcendente, natural ou imanente: seja porque estaria de acordo com desígnios extra-humanos já estabelecidos (supra-humanos ou sobre-naturais) por uma ordem pré-existente, seja porque derivaria da natureza, seja porque se sintonizaria com a marcha da história ou com suas leis. Este parágrafo é muito sintético, mas provavelmente contém tudo (ou quase).

Ou seja, nada de transcendente, natural ou imanente. Em outras palavras: 1) nada de visão esotérica ou religiosa; 2) nada de visão liberal-econômica (segundo a qual existiria algo como uma natureza humana: e. g., a hipótese de que o ser humano – tomado como indivíduo – seria inerentemente ou por natureza (?) competitivo e faria escolhas racionais buscando sempre maximizar a satisfação dos seus interesses ou preferências, ao fim e ao cabo egotistas); e 3) nada de visão historicista (baseada em alguma imanência: a história grávida que vomitaria – por meio das ações humanas – um sentido já existente antes que os seres humanos escolhessem um caminho ou simplesmente fossem para onde querem ir ou não). Se essas noções – Deus, Natureza e História – forem reificadas para fornecer à política alguma razão, não estamos mais no terreno da política propriamente dita, quer dizer, da democracia. É por isso que o único sentido compatível com a democracia que se pode atribuir à política é a liberdade. Do ponto de vista da democracia, liberdade significa que Deus não é capaz de dar nenhum sentido à política, a Natureza (seja o que for) também não é capaz de dar nenhum sentido à política e, ainda, que a História também não é capaz de dar nenhum sentido à política.

Leia os três artigos linkados acima. Se você se interessou pela proposta e quer se associar à iniciativa, apoiando-a, escreva para [email protected] para receber um ebook com o projeto piloto completo e as diferentes modalidades de adesão.

Por que virou um imperativo da hora configurar novos ambientes de aprendizagem da democracia

Mais evidências da manipulação bolsonarista das mídias sociais