Comecemos com um relato do G1:
“Ao menos 222 cidades do Brasil, segundo levantamento do G1, tiveram manifestações, nesta quarta-feira (15), contra o bloqueio de recursos para a educação anunciado pelo Ministério da Educação (MEC). Houve atos em todos os estados do país e também no Distrito Federal.
Universidades e escolas também fizeram paralisações, após a convocação de uma greve de um dia por parte de entidades ligadas a sindicatos, movimentos sociais e estudantis e partidos políticos. Os atos foram pacíficos.
Foi a primeira grande onda de manifestações durante o governo do presidente Jair Bolsonaro, pouco mais de quatro meses após ele ter tomado posse”.
Eis o mapa elaborado pelo G1:
Pois bem. Sobre a manifestação, o que disse o presidente da República estando já em Dallas, no Texas?
“A maioria ali é militante. É militante. Não tem nada na cabeça. Se perguntar 7 x 8 não sabe. Se perguntar a fórmula da água, não sabe. Não sabe nada. São uns idiotas úteis, uns imbecis que estão sendo utilizados como massa de manobra de uma minoria espertalhona que compõe o núcleo de muitas universidades federais do Brasil”.
Isso é tudo que um presidente da República não poderia falar.
Em seguida, já no calor dos protestos, o líder do partido de Bolsonaro na Câmara, Delegado Waldir, recalcitrou:
“O que acontece é que as pessoas não estão acostumadas com as palavras firmes e duras do presidente. As pessoas são manipuladas, é uma minoria. Quantas pessoas foram para rua? Quem foi? Foram aqueles fumadores de maconha, aqueles baderneiros”.
É claro que apareceram militantes petistas e da esquerda em geral tentando instrumentalizar as manifestações (para falar contra as corretas reformas, contra a responsabilidade fiscal, para agitar palavras de ordem como Lula Livre). É horrível, ainda que legítimo nas democracias.
Todavia, esses militantes não eram maioria. Se a esquerda tivesse a capacidade de mobilizar todos os que foram para as ruas, não estaria na situação em que está.
O fato de o PT ter instrumentalizado a manifestação em defesa da educação não retira o seu caráter correto. É que o PT é assim mesmo. É uma lástima. Foi por deplorar esse tipo de comportamento que muitas pessoas votaram em Bolsonaro. Ninguém aguenta instrumentalização.
Mas a fala de Bolsonaro é burra. Ele fala como quem está com o rei na barriga. Ainda não se deu conta de que sua maioria de milicianos nas mídias sociais (a metade dos quais bots) não significa maioria da população (57 milhões votaram nele, mas 90 milhões não votaram – e aumenta o número de arrependidos entre os que votaram).
Vamos agora à análise do que aconteceu.
Há características de enxameamento nas manifestações de 15 de maio em defesa da educação. Os protestos de rua que se avolumaram, surpreendendo até mesmo seus convocadores, se espalharam pelo país. E, salvo raras exceções, não foram muito parecidos com aquelas manifestações da CUT ou do PT (ainda que existissem bandeiras do PT, da CUT, da UNE e até do MST no meio dos protestos – o que não quer dizer muita coisa: em junho de 2013, no Largo da Batata, em São Paulo, também havia bandeiras do PSTU).
Alguns analistas reclamaram que a pauta era doida, juntando o correto protesto contra o tratamento que o governo Bolsonaro dá à educação com bandeiras absurdas da esquerda jurássica, como a denúncia de que a reforma da Previdência é contra os trabalhadores.
Todavia, em manifestações onde há enxameamento (swarming) a pauta é o que menos importa. Fatores detonadores (veja o MPL em junho de 2013 no Brasil ou os “ecologistas” que fizeram um protesto ambiental pacífico contra a demolição do Parque Taksim Gezi, na Turquia) não têm nada a ver com a fenomenologia da interação que pode se manifestar (ou não) constelando multidões. Não importa se quem convocou é de esquerda, de direita, de extrema-direita (em 2013 o grupo que convocou era de extrema-esquerda, ninho de Black Blocs e, no entanto…)
Uma das características dos swarmings (enxameamentos) é a improvisação. Esta foto do 15M (ontem) em Belém é reveladora.
Prestem atenção aos cartazes (quanto mais improvisados e malfeitos, mais indicam que o fenômeno interativo transbordou as diretivas centralizadas dos supostos organizadores que, na verdade, agem como convocadores ou, no máximo, detonadores). Nas manifestações-mortadela, arrebanhadas pela CUT, UNE, PT, PSOL etc., cartazes, faixas, balões, camisetas e bonés uniformizadores já vêm prontos da gráfica. Não foi assim ontem (15/05/2019).
Comparem agora a foto acima com a foto de uma manifestação de 20 de junho de 2013, no Recife:
Para perceber e interpretar a recorrência dos mesmos padrões é necessário investigar as redes (que não são as mídias como Facebook, Twitter, WhatsApp). Mas alguns analistas não aprendem. Em junho de 2013 publiquei um livrinho sobre isso, intitulado Os 7 dias que abalaram o Brasil.
Vamos enumerar algumas características frequentes em swarmings:
√ Surpresa (o número de pessoas consteladas surpreende até mesmo os convocadores que se achavam organizadores)
√ Improvisação (cada pessoa faz seu próprio cartaz, pinta sua própria faixa etc. – em geral, quanto mais mal-feito é este material, mais indica que não houve comando e controle centralizado)
√ Falta de uniformização (as pessoas não vão uniformizadas com camisetas e bonés, nem recebem esses itens de indumentária distintiva como brinde)
√ Não há (ou há pouco) arrebanhamento (as pessoas não são acarreadas, levadas de ônibus e caminhões, como nas manifestações de CUT e do MST)
√ A pauta é genérica e expressa interesses e desejos difusos (o fator detonador – que desencadeou a manifestação – é logo esquecido e ampliado: pode começar contra os 20 centavos de aumento nas passagens de ônibus mas extravasa o propósito inicial abarcando vários outros itens de insatisfação: com os serviços públicos, com o governo, com o sistema etc.)
√ Não há pagamento, jeton (nem sanduíche de mortadela com tubaína)
√ Em geral não há (ou há poucos) carros de som agitando o povo, “comandando a massa e dando as ordens no terreiro” (e esta é uma distinção importante, por exemplo, entre 2013 e 2015-2016 no Brasil)
√ Cada pessoa é sua própria manifestação (toma a iniciativa de convidar seus amigos, vai com com suas próprias pernas juntamente com seus parentes, colegas etc.)
√ Vibe pacífica (o clima geral é de confraternização, não de confronto: não há Black Blocs, por exemplo, ou eles só entram depois que as manifestações esfriam)
√ Bom humor (os cartazes fazem piadas com os governantes, tiram sarro)
√ Manifestação de uma fenomenologia da interação característica de redes distribuídas (as manifestações são convocadas centralizadamente, mas não se exercem sob um comando: o contingente constelado não obedece a diretivas e traça, na hora, os seus próprios caminhos).
Os elementos acima foram isolados a partir da observação empírica dos swarmings: de 11 de março de 2004 na Espanha; de 11 de fevereiro de 2011 na Praça Tahir, no Egito; no 15M de 2011 novamente na Espanha (os Indignados de Espanha); no 17S no Zuccotti Park em NY (o Occupy Wall Street); de 17-20 de junho de 2013 no Brasil; de junho de 2013 na Turquia (contra a demolição do Taksim Gezi); de 30 de junho de 2013 em todas as cidades do Egito (que levou à derrubada do jihadista eleito Morsi, da Irmandade Muçulmana); na revolução dos Guarda Chuvas (de setembro e outubro de 2014 em Hong Kong) et coetera.
Parece óbvio, pelas características observadas, que o 15M de 2019 não foi mortadela. Não se pode saber, de antemão, o que vai acontecer daqui para frente. Pode ser que o fluxo interativo da convivência social, que veio à tona neste 15 de maio, continue subterraneamente, fermentando outras manifestações da fenomenologia da interação que só vão aparecer muito mais adiante. Pode ser que não, e que a movimentação ganhe fôlego e volte a emergir na semana que vem (há uma nova convocação para 23 de maio, pelo menos em São Paulo, no vão do MASP).
Estão fora dessa movimentação atual grupos que tiveram um destacado papel (ainda que menor do que eles pensam) nos protestos de 15 de março, 12 de abril, 16 de agosto de 2015 e 13 de março de 2016, pelo impeachment de Dilma Rousseff, como o Vem Pra Rua (hoje degenerado como um braço auxiliar do lavajatismo militante e, objetivamente, do bolsonarismo) e o MBL (que está numa situação difícil, pois não quer se misturar com a esquerda, não quer mais se confundir com a extrema-direita olavista e pensa em organizar um novo partido para pular da planície para o planalto).
Os próximos eventos dirão o que vai acontecer. Mas nesta semana ainda já será possível detectar tendências de crescimento ou arrefecimento. Acompanhemos.





