A manipulação da opinião pública não exige verossimilhança ou coerência e sim avalanche de notícias falsas. Como disse Bannon, tem que ser um golpe por dia. Inundar a área com merda (“flood the zone with shit”) até que seja impossível processar e seja inútil checar, contestar, corrigir, esclarecer.
Vejam se não é exatamente assim que o bolsonarismo está procedendo. A cada dia temos um absurdo por meio de uma declaração de Bolsonaro ou de seus auxiliares, como Guedes, Damares, Weintraub etc. Enquanto a imprensa e as demais instituições se ocupam de desmentir uma notícia falsa, o trem já andou e temos novas fake news polarizando as atenções. Um choque após outro choque, sem parar.
O resultado é que o espaço discursivo, o campo propriamente dito do debate público, vai sendo inviabilizado como lugar de formação da vontade política coletiva. Isso leva à falência qualquer procedimentalismo democrático e qualquer razão comunicativa.
A democracia, tal como a conhecemos, não tem proteção eficaz contra esse tipo de ataque distribuído (semelhante ao ataque de enxame de drones à Enterprise no episódio Stark Trek Beyond).
Como se sabe, a democracia tem três falhas genéticas (a última só descoberta muito recentemente). Ela não tem proteção eficaz:
1) contra o discurso inverídico – isso ensejou a demagogia (o primeiro tipo de populismo ou proto-populismo)
2) contra o uso da democracia (notadamente das eleições) contra a democracia – daqui brotam os populismos (ditos de esquerda ou de direita)
3) contra ataques distribuídos de enxames de fake news – a receita i-liberal para matar por dentro a democracia (o caminho do populismo-autoritário)
Em suma, a democracia não tem proteção eficaz contra o populismo. Mesmo assim ela consegue sobreviver aos dois primeiros tipos de ataques (decorrentes das duas primeiras vulnerabilidades listadas acima). Não, se sabe, entretanto, se ela será capaz de sobreviver ao terceiro tipo.
Ao que tudo indica, esse terceiro tipo de ataque tem tudo para ser mortal. E ele está em curso, neste momento, em vários países e no Brasil. Aqui, inclusive, há comando centralizado, situado no núcleo duro do governo (na família presidencial). Um governo eleito que se dedica a destruir a nossa democracia, não de uma vez, por meio de um golpe de Estado tradicional, de uma guerra ou insurreição, e sim paulatinamente, por dentro, estraçalhando (privatizando, atomizando-o em miríades de esferas isoladas) o espaço do debate político racional e manipulando a opinião pública.
Sobre o tema, dois artigos importantes foram publicados recentemente. O primeiro de Vinicius Segalla e o segundo de David Nemer. Seguem reproduzidos abaixo.
EXCLUSIVO: Ódio, Mentiras e defesa do Nazismo. Por dentro dos grupos pró-Bolsonaro no WhatsApp
Entre os milhares de grupos de conversa de WhatsApp mantidos por simpatizantes e políticos de direita, em que se espalham notícias falsas e mensagens de ódio desde antes das Eleições de 2018, um novo perfil de fórum de debates tem surgido, de cunho ainda mais radical, assumidamente defensor de teorias e políticas nazi-fascistas.
Eu, Vinícius Segalla, jornalista, ao longo dos últimos seis meses, tenho participado de dezenas desses grupos. No início de agosto do ano passado, obtive convites para entrar em três grupos de discussão de WhatsApp. Eram eles: “Mito 2022”, “Apoiadores de Bolsonaro” e “Brasileiros Conservadores”. A partir daí, utilizando meu telefone celular pessoal e sem jamais esconder minha foto ou meu nome, passei a integrar cada vez mais grupos, sempre por meio de convites que surgiam dentro dos próprios grupos.
Assim, atualmente, pelo menos até a publicação desta reportagem, participo de 49 grupos de WhatsApp de direita. Entre eles, estão “Michelle Bolsonaro”, “Agora é 38“, “Viva Sergio Moro!“, “Militantes Bolsonaristas“, “Aliança Brasil 7“, “Ustra Vive 7“, e “Aliança Patriota“.
Algumas características de forma e conteúdo são comuns a todos os grupos de direita de que faço parte:
- Apoio incondicional ao presidente Jair Bolsonaro e às políticas implementadas por seu governo
- Intensa proliferação de notícias falsas e mensagens de ódio contra adversários políticos de Jair Bolsonaro e seu governo
- Apoio incondicional à pessoa e às ideias do escritor Olavo de Carvalho
- Proibição de divulgação de links e notícias produzidas por veículos de comunicação da imprensa tradicional brasileira, tratada genericamente como “Extrema-Imprensa”, “Mídia Esquerdopata” ou nomes semelhantes. Apenas são aceitos links e notícias produzidas por veículos alinhados ao governo Bolsonaro, como “Terça Livre”, Jornal da Cidade” ou “Presidentebolsonaro.com”.
- Expulsão sumária daqueles que desrespeitam as regras acima.
Circulam pelos grupos com frequência listas de nomes e números de telefones que já foram expulsos de um ou mais fórum de debates, identificados como “sabotadores, infiltrados da Esquerda e defensores da corrupção”. Também não se permite a defesa de ex-membros do governo ou ex-simpatizantes de Bolsonaro, como Alexandre Frota, Gustavo Bebiano, Joice Hasselmann e Nando Moura.
Interessante notar que o youtuber conservador Nando Moura ainda mantém centenas de milhares de seguidores em suas redes, mas foi definitivamente banido dos grupos de Whatsapp, o que evidencia o alinhamento completo desses grupos com o governo, e não simplesmente com o pensamento de direita ou conservador. De fato, são grupos bolsonaristas, e não de direita ou conservadores, como mostra a descrição abaixo, do grupo “Brasileiros Conservadores” apenas um exemplo entre todos de que participo.

São incentivadas e compartilhadas críticas e ataques a todos os órgãos de imprensa que publiquem qualquer reportagem considerada demeritória a Bolsonaro, seu governo e apoiadores. Tais veículos, não importando sua linha editorial, ganham apelidos que – via de regra – remetem ao comunismo ou ao pensamento de Esquerda. Assim, a Rede Globo se tornou Red (Vermelha) Globo, o Estadão virou Esquerdão, a Folha de S.Paulo foi batizada de Foice de S.Paulo, o site Antagonista passou a ser Antagobosta, o site de buscas Google se tornou Goolag. A rádio Jovem Pan é o veículo que mais recentemente caiu em desgraça dentro dos grupos.
Abaixo, alguns exemplos de críticas aos meios de comunicação tradicionais.

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É de se destacar também a disseminação sistemática de notícias falsas. Todos os grupos reproduzem e compartilham notícias falsas diariamente. Via de regra, tratam sobre políticos e partido de esquerda, órgãos de imprensa, cortes do poder Judiciário e críticos do governo Bolsonaro.
São basicamente três as fontes de notícias falsas:
1 – Mensagens sem identificação do autor ou de autores desconhecidos. Este tipo de notícia falsa sequer tenta se passar por uma reportagem de um veículo de imprensa. São mensagens apócrifas ou de autoria de pessoas desconhecidas do público, que circulam de grupo em grupo, sempre tomadas como verdade por aqueles que as comentam.
A primeira imagem abaixo, que é uma reprodução de uma postagem de Instagran, que identifiquei circulando em 13 grupos, dá conta de que João de Deus e Roger Abdelmassih seriam libertados em virtude da revogação da antecipação de pena após a condenação em segunda instância. Em outra, há a notícia falsa de que o ministro do STF Gilmar Mendes foi quem ordenou a expulsão do vereador Carlos Bolsonaro (PSC-RJ) de todas as redes sociais (o nome do grupo em que a imagem foi capturada é “Anti-Feminismo“).
No terceiro exemplo, uma auxiliar de serviços gerais de Porto Alegre é identificada falsamente como sendo vice-diretora do PT. Finalmente, no quarto exemplo, é utilizado um vídeo de Luiz Inácio Lula da Silva em que o ex-presidente faz um agradecimento a um funcionário do Instituto Lula de nome Marcola, mas que nos grupos de WhatsApp monitorados passou a ser identificado como sendo Marcola, chefe do PCC.
2 – Vídeos do Youtube. São links para vídeos de youtubers de direita ou para montagens em estilo de reportagem, com fotos e áudio de narradores ao fundo, com toda a sorte de mentiras.

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3 – Notícias falsas da “imprensa independente”. São links para sites que se dizem jornalísticos, mas que são, na realidade, a principal fonte das fakes news que circulam nos grupos. Identificar quem são os proprietários desses domínios e os reais produtores de seu conteúdo seria de grande valia para entender como se orquestra o sistema de disseminação de mentiras pelas redes da direita bolsonarista.
Tal tarefa, porém, dependeria de ordens judiciais dentro e fora do Brasil, já que a maioria é registrada em outros países, e as informações que se pode obter por meio de páginas públicas sobre seus proprietários não são capazes de mostrar a real identidade de seus donos. Veja, abaixo, alguns exemplos.

Em outro caso emblemático, o site presidentebolsonaro.com publicou a notícia falsa de que uma filha do ex-prefeito de Santo André (SP) Celso Daniel teria acusado Lula de ter sido o mandante do assassinato de seu pai. (https://presidentebolsonaro.com/video-filha-de-celso-daniel-acusa-lula-de-ter-matado-seu-pai/). Na verdade, nenhuma filha de Celso Daniel jamais disse algo sequer parecido com isso. Para criar a fake news, o site faz uso de um vídeo de 2018, em que uma senadora do PSDB (Mara Gabrilli) faz críticas a Lula, mas não afirma ser ele o mandante da morte do ex-prefeito.
A publicação inverídica circulou amplamente nos grupos de Whatsapp, levando a mais uma onda de ódio contra o ex-presidente.

A Defesa do Nazi-Fascismo
Todo o conteúdo desta reportagem faz parte de um levantamento jornalístico que venho fazendo há seis meses. Minha ideia não era publicar essas informações agora. Meu objetivo era reunir mais fatos de relevância jornalística a respeito de tais grupos antes da publicação, já que deverei ser expulso de todos eles assim que esta reportagem for divulgada.
Fato é que os grupos que acompanho vêm sendo já utilizados com fins eleitorais para o pleito municipal deste ano. Era minha intenção mostrar como essa rede de fóruns de direita estaria novamente a serviço dos candidatos da direita, fazendo uso de campanhas de ataques orquestrados e muitas notícias falsas.
O que me fez mudar de ideia começou a ocorrer há cerca de um mês e ultrapassa a esfera eleitoral, ocupando o campo sob tutela do Direito Penal. É que, há 30 dias, de grupo em grupo, de convite em convite, acabei por me deparar com uma rede de grupos de WhatsApp assumidamente defensora do Nazismo. São grupos onde se afirma que o Holocausto jamais existiu.
São grupos onde se ofendem pessoas por serem negras ou judias. São grupos onde se defende abertamente a figura de Adolf Hitler e o Nacional Socialismo alemão. São grupos pelo meio dos quais são marcados encontros e reuniões que se dizem apoiadoras do nazi-fascismo.
A Lei penal 7.716/89 descreve, em seu artigo 20:
“Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.
Pena – Reclusão de um a três anos e multa.
§1º – Fabricar, comercializar, distribuir ou veicular, símbolos, emblemas, ornamentos, distintivos ou propaganda que utilizem a cruz suástica ou gamada, para fins de divulgação do nazismo.
Pena – reclusão de dois a cinco anos e multa.
Assim, diante do cometimento de crimes ao vivo e sob o meu olhar, achei melhor tornar tudo público o quanto antes. O DCM compartilha do meu entendimento.
Sem mais delongas, seguem as imagens abaixo. Estou à disposição das autoridades policiais para auxiliar em toda e qualquer investigação.
Agora o artigo de David Nemer:
EDUARDO E FLÁVIO BOLSONARO SÃO OS CRIADORES DE GRUPOS DE WHATSAPP DE MENTIRAS CONTRA JORNALISTA DA FOLHA
Mas, na lógica da produção de narrativas bolsonaristas, a verdade não importou. River falou o que quis na CPMI, e o depoimento dele foi repercutido por influenciadores de Bolsonaro – o próprio Eduardo, o blogueiro Allan Terça Livre e a ex-feminista Sara Winter, por exemplo, chancelaram a narrativa mentirosa. Imediatamente, uma produção frenética de memes, trechos do editados do vídeo de River e montagens com Mello começaram a pipocar nos grupos, com a anuência dos admins com cargo público.
O envolvimento de Flávio e Eduardo
Durante a campanha, Flávio e Eduardo Bolsonaro, conhecidos como 01 e 03 do presidente, estavam ocupados não apenas cuidando de suas próprias campanhas para a Câmara e o Senado, mas também tentando promover a campanha presidencial de seu pai. Eduardo compartilhava constantemente um número de telefone onde qualquer pessoa podia entrar em contato para apenas “Dar um Alô”, conforme detalhado em um de seus vídeos no Facebook.
O mesmo número de telefone era administrador de 11 grupos pró-Bolsonaro no WhatsApp que analisamos. Salvamos o número como “Assessoria Eduardo Bolsonaro” para nos ajudar a identificar esse contato nos grupos, e também descobrimos que a conta do WhatsApp de Eduardo também criou esses grupos.
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Já Flávio Bolsonaro divulgou seu telefone em um tuíte, onde reclamou que o WhatsApp havia banido sua conta devido a atividades suspeitas:
Flavio Bolsonaro
✔@FlavioBolsonaro
A perseguição não tem limites!
Meu WhatsApp, com milhares de grupos, foi banido DO NADA, sem nenhuma explicação!
Exijo uma resposta oficial da plataforma.#MarketeirosDoJair #FolhaFakeNews
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Por mais que Eduardo e Flávio Bolsonaro se comportassem de maneira muito discreta, sem postar conteúdo e nem participar de conversas, eles permitiram que notícias falsas fossem amplamente compartilhadas e difundidas dentro de seus grupos.
No total, dos 70 grupos analisados, Eduardo administrou pelo menos 11. Flávio cuidava de nove. Eles contavam com um conjunto de pessoas que tinham papéis específicos na curadoria de conteúdo, no compartilhamento de desinformação e na inclusão e remoção nos grupos.
Força-tarefa nacional e internacional
Começamos a monitorar grupos bolsonaristas no WhatsApp em março de de 2018. Aquele pleito eleitoral ficou conhecido pela desinformação generalizada que tomou contas nas mídias sociais, especialmente no zap – e ela favorecia principalmente o então candidato da extrema direita, Jair Bolsonaro.
Vimos de perto como os grupos pró-Bolsonaro se tornaram um ecossistema sofisticado que dava aos usuários funções específicas: produzir, compartilhar e consumir informações erradas, bem como recrutar novos membros do grupo. Embora muitos desses grupos tenham sido criados organicamente por voluntários que realmente apoiaram Bolsonaro, descobrimos mais tarde que algumas pessoas receberam dinheiro – entre R$ 400 e R$ 600 por semana – para gerenciá-los.
Embora ainda não se saiba quem exatamente estava pagando por esses serviços ou de onde vinha o dinheiro, relatos apontam que membros da equipe de Bolsonaro enviaram notícias falsas e mensagens em massa pelo WhatsApp. Descobrimos que os criadores e administradores de alguns dos principais grupos eram os números das campanhas de Eduardo e Flávio Bolsonaro e que até contas da Índia, Paquistão e Iêmen ajudaram a espalhar notícias falsas e conteúdo extremista.
Também observamos que a rede de distribuição no WhatsApp agia de maneira coordenada, com membros trabalhando em diferentes funções para manter o grupo funcionando. Identificamos os membros da equipe que tinham as seguintes funções: admin, que era o criador do grupo; moderador, responsável por manter o tom pró-Bolsonaro e remover membros opostos; distribuidor, responsável por distribuir mentiras a grupos (vídeos, textos, áudios e links).
A Equipe da Força-Tarefa não foi o único grupo de membros que ajudou a espalhar fake news nesses grupos. Também encontramos membros que tinham contas com números estrangeiros, especialmente da Índia, Paquistão e Iêmen. Esses membros estrangeiros não interagiram nos chats do grupo; em vez disso, entravam em contato com os membros do grupo individualmente por meio de chats particulares, onde compartilhavam conteúdo de desinformação e pró-Bolsonaro.


Essas novas descobertas fornecem mais evidências do envolvimento do clã Bolsonaro nas práticas de desinformação que varreram o Brasil durante as eleições de 2018. Agora que essas contas e funções foram identificadas, surgem mais perguntas: quem eram as pessoas por trás desses números? Quem pagou por essas contas estrangeiras para participar desses grupos? Quem os adicionou a esses grupos? Podemos não ser capazes de responder a essas perguntas, mas elas certamente podem servir como novas pistas para a investigação da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito.