Neste momento, em que muitos analistas tentam fazer – meio disfarçadamente (ou não) – a defesa da candidatura Lula com base no fato de que ele não é igual a Bolsonaro, cabe refletir um pouco sobre a natureza do projeto neopopulista de esquerda e o caráter de seu führer (ou duce).
Claro que Lula não é igual a Bolsonaro. São dois populistas muito diferentes. Claro que, sendo diferentes, cada qual tenta inviabilizar – a seu modo – uma via democrática liberal.
Mas a questão é simples. Não é que Bolsonaro e Lula tentem se afirmar desqualificando as outras opções – o que seria normal em qualquer disputa eleitoral. O problema é que Bolsonaro e Lula precisam um do outro para manter a polarização populista, instalando um “cenário peruano” no Brasil e defenestrando os democratas liberais da cena pública.
O problema é que enquanto o bolsonarismo é um populismo-autoritário e, como tal, adversário da democracia (de qualquer democracia, liberal ou eleitoral), a alternativa do lulopetismo, embora diferente, também é um populismo e, como tal, adversária da democracia (liberal).
Para entender isso é bom examinar a tipificação dos regimes políticos feita pelo V-Dem da Universidade de Gotemburgo, segundo a qual temos hoje no mundo quatro tipos de regimes políticos: a democracia liberal, a democracia eleitoral, a autocracia eleitoral e a autocracia fechada (não-eleitoral).
Bolsonaro, ao contrário de Lula, não é um democrata e sim um autocrata eleitoral (o tipo de regime mais numeroso do mundo, em dados de 2020). Ele quer trocar nossa democracia eleitoral por uma autocracia eleitoral (tal como estão fazendo a Hungria e a Polônia e tal como queria fazer Trump).
Sim, repita-se: Lula é muito diferente de Bolsonaro. Ele quer manter a nossa democracia eleitoral como um meio para conquistar hegemonia sobre a sociedade a partir do Estado aparelhado pelo partido. Isso significa, objetivamente, que Lula quer enfrear o processo de democratização para impedir que nossa democracia eleitoral chegue a ser uma democracia liberal.
E pior. Como o que chamamos de democracia não é um modelo de regime (ou de governo) e sim um processo (o processo de democratização), paralisar esse processo significa extinguir o que resta de conteúdo liberal na nossa democracia eleitoral. Exatamente isso: não pode parar, pois a democracia é como uma bicicleta.
Não é à toa que Lula – ao contrário de qualquer líder democrata liberal – continue hoje defendendo regimes ditatoriais (como Cuba, Venezuela, Nicarágua e Angola) e tenha apoiado, o tempo todo, líderes populistas de esquerda (ou neopopulistas, do chamado “socialismo do século 21”) como Chávez e Maduro (na Venezuela), Evo (na Bolívia), Correa (no Equador), Ortega (na Nicarágua), Lugo (no Paraguai) e Funes (em El Salvador) e até Zelaya (em Honduras). Esses regimes e esses líderes populistas de esquerda são i-liberais e majoritaristas.
Mas democratas (liberais) não defendem ditaduras. Nem proto-ditaduras. E isso é definitivo.
Para desmascarar os truques argumentativos que vêm sendo usados para apoiar a candidatura Lula, é bom afastar as alegações feitas somente para confundir. Para colocar um ponto final nas falsas acusações dos que querem pintar Lula como ele não é, é preciso dizer de pronto que Lula não é comunista, não é extremista, não é revolucionário, não quer destruir as instituições democráticas e ama de paixão as eleições. Mas nada disso significa que ele seja um democrata liberal.
Vamos tentar resumir:
1 – Lula não é comunista, mas também não é um social-democrata e sim um neopopulista de esquerda.
2 – Lula não é extremista, pelo contrário, é moderado.
3 – Lula não é revolucionário, nem reacionário e sim progressista.
4 – Lula, ao contrário de Bolsonaro, não quer destruir as instituições, e sim mantê-las e ocupá-las, fazendo maioria em seu interior para colocá-las a serviço do partido – mas tudo numa boa.
5 – Lula é democrata-eleitoral no sentido de que não quer acabar com a nossa democracia eleitoral e sim mantê-la como democracia eleitoral, impedindo que ela se converta em uma democracia liberal. Não é, portanto, um democrata-liberal.
6 – Lula concebe e pratica a política como uma continuação da guerra por outros meios (na base do “nós” – o verdadeiro povo, contra “eles” – as elites).
7 – Lula é muito diferente de Bolsonaro, mas é também um populista – ou seja, é igualmente iliberal e majoritarista.
Dito isto, vem o mais importante em termos conjunturais. Lula é o principal responsável pela manutenção de Bolsonaro no governo até o final de 2022. Ele tem que torcer para que a intenção de voto em Bolsonaro não caia abaixo de 20% (pois isso traria o risco de Bolsonaro não ir ao segundo turno e ele – Lula – perderia então a vantagem de contar com o voto anti-bolsonarista e com o voto no “menos pior”). Sim, num segundo turno contra um candidato não-populista, um candidato normal (novo ou velho – que não apoiasse ditaduras, que não fosse contra as privatizações e as reformas, que fosse contra qualquer tipo de “controle social” da mídia, em suma, que não fosse estatista), Lula não teria mais uma vitória garantida no segundo turno.
E Lula, como sabemos, por mais que apresente credenciais passadas de ter tratado a pão-de-ló banqueiros e campeões empresariais, é um estatista (assim como o são todos os seus amigos neopopulistas, bolivarianos mais ou menos hards).
Por isso que Lula, in pectore (a despeito do que dizem os petistas da boca para fora, para não sair mal na fita), quer tudo menos o impeachment. Sobretudo quer tudo menos a campanha do impeachment que possa projetar o nome de algum democrata (não-populista).
E Lula conta, para isso, com a inestimável colaboração dos analistas políticos que dizem que o impeachment é impossível, que nunca serão reunidos os 342 votos na Câmara, que Bolsonaro já comprou a maioria do Congresso, que não dará tempo et coetera, nos enganando com um ilusório império das condições objetivas e fazendo de conta que não estão vendo que o impeachment hoje é a campanha do impeachment.