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A democracia como bicicleta

Há várias boas metáforas sobre a democracia, como aquela da plantinha frágil que precisa ser regada diariamente, mas a que prefiro mesmo é a da bicicleta que só se mantém estável em movimento e não tem marcha à ré. Se o processo de democratização não avança, a democracia cai.

Ser conservador é conservar um movimento, não o repouso. Como a bicicleta não anda por inércia, é continuar pedalando, visitando terrenos não percorridos, desconhecidos. A metáfora da bicicleta nos diz que, no caso da democracia, ser conservador é ser inovador.

Seguir adiante (no espaço) é também se aventurar em mundos que (ainda) não existem (no tempo). Tudo que avança é uma sonda lançada ao futuro. É isso a inovação.

A segunda democracia (dos modernos) não conservou as instituições da primeira (dos antigos atenienses). Inovou. A questão é que precisamos continuar inovando, não tentando manter um modelo.

Todos os modelos são contingentes. Têm natureza circunstancial. O que atravessa os diferentes modelos é um processo que ultrapassa circunstâncias: o processo de desconstituição de autocracia que esteve presente no movimento contra a tirania dos psistrátidas, no final do século 6 a.C. em Atenas e que também esteve presente na resistência parlamentar ao poder despótico de Carlos I, na Inglaterra do século 17.

Assim como não seria razoável manter intocadas as instituições da democracia ateniense, como a Ecclesia e a Boulé, também não é razoável manter, na forma como foram geradas, as instituições da democracia dos modernos, que teve o azar de ser coetânea à criação de uma nova forma de Estado – o Estado-nação, um fruto da guerra, surgido da paz de Vestfália. Azar das circunstâncias porque democracia significa, justamente, sem-guerra, quer dizer, é um modo não-guerreiro, pazeante, de regulação de conflitos.

A democracia dos modernos, entretanto, superou tais circunstâncias limitantes ao gerar a fórmula do Estado democrático de direito. Do contrário o Estado-nação abriria guerra contra seu próprio povo, ou setores dele, considerando-os como “inimigos internos”.

Conservar as instituições da democracia não é mantê-las como foram e sim atualizá-las constantemente para serem o que podem ser em novas circunstâncias sem perder a característica definidora da democracia como processo de democratização (ou de desconstituição de autocracia).

A democracia não é homeostática e sim alostática, quer dizer, é um sistema afastado do estado de equilíbrio que se mantém estável por ser variável. Se mantém porque é capaz de se modificar. Porque é capaz de mudar não apenas os seus parâmetros de interação com o meio, ajustando os estímulos recebidos de fora e adaptando-os de sorte a manter sua estrutura e sua dinâmica internas anteriores, mas de mudar seus próprios padrões de adaptação em consonância com a mudança das circunstâncias.

Por isso a democracia se parece menos com um juiz sentado na cátedra de um tribunal do que com um tracker pedalando uma bicicleta em um terreno acidentado e mutante.


Esta pode ser considerada a décima-terceira reflexão terrestre sobre a democracia.

Para ler as reflexões terrestres sobre a democracia:

Primeira reflexão terrestre sobre a democracia

Segunda reflexão terrestre sobre a democracia

Terceira reflexão terrestre sobre a democracia

Quarta reflexão terrestre sobre a democracia

Quinta reflexão terrestre sobre a democracia

Sexta reflexão terrestre sobre a democracia

Sétima reflexão terrestre sobre a democracia

Oitava reflexão terrestre sobre a democracia

Nona reflexão terrestre sobre a democracia

Décima reflexão terrestre sobre a democracia

Décima-primeira reflexão terrestre sobre a democracia

Décima-segunda reflexão terrestre sobre a democracia

Sermão aos peixes

Václav Havel: O poder dos sem-poder