Uma pessoa me perguntou no Facebook como fazer a população entender o valor da democracia. Respondi que não há como fazer a maioria da população entender isso. É por esta razão que os democratas sempre fomos minoria. Não elite, mas minoria mesmo.
Nosso papel – dos democratas – é ser agentes fermentadores da formação de uma opinião pública, não arregimentar seguidores. Claro que quanto mais fermentadores existirem, mais fácil será cumprir esse papel. Mas as pessoas não se convertem à democracia a partir de uma ideia (de liberdades civis e direitos políticos).
A adesão à democracia exige um emocionar antes de ser uma escolha racional. Um emocionar de insatisfação, de repulsa mesmo, que não se conforma com a autocracia como modo-de-vida.
Já contei, em outro artigo, minha experiência pessoal de conversão à democracia. Meu impulso foi emocional. As pessoas – com sua inteligência – podem até conhecer o que se diz sobre a democracia, mas não conseguem ter um entendimento profundo do que ela significa. Aprender democracia exige um entendimento profundo. Mas aprender democracia é desaprender autocracia. Não é aderir a uma crença ou ser fiel de uma nova espécie de religião. Não é seguir uma doutrina. Não é adotar um modo de vida virtuoso.
Como escreveu Celso Lafer, em artigo no Estadão do último 20 de maio:
“A democracia é uma contínua “ideia a realizar”. É ao mesmo tempo uma cultura e uma prática, um aprendizado. Não é, como lembra Octavio Paz, um absoluto, mas um método de convivência civilizada, livre e pacífica. Não assegura, porém, nem a felicidade nem a virtude”.
As pessoas, porém, têm imensa dificuldade de entender isso. Que não é uma utopia. Que não é o regime reto, puro e perfeito, mas um tipo de interação (política) entre seres humanos realmente existentes, com todas as suas curvaturas, impurezas e imperfeições. Que não é o regime sem corrupção e sim o regime sem um senhor. Como escreveu Ésquilo (472 a. C.), em Os Persas, referindo-se aos atenienses democratas de sua época: “eles não são escravos, nem súditos de ninguém”.
Por isso, o melhor caminho para entender e tomar a democracia como um regime preferível aos demais (e, além disso, um modo-de-vida ou de convivência social preferível aos demais) é viver algum tempo sob o jugo de um senhor, mesmo que seja um senhor bom, capaz de nos cavalgar com gentileza e resolver nossos problemas por nós. Quem teve a experiência de autocracia pode aquilatar melhor o valor da liberdade.
Mas nem todas as pessoas valorizarão isso: muitas preferirão ser governadas pelo sultão de Brunei (que, além de tudo, ainda concede uma espécie de “bolsa-família” polpudo aos seus súditos). Ou seja, muitos preferirão a segurança de ser súditos bem-tratados por seu senhor do que a incerteza de ser cidadãos livres e não saber se vão ter o que comer no final do dia ou se vão conseguir pagar as contas no final do mês.
Por tudo isso, os que são capazes de captar o genos da democracia (como um processo de desconstituição de autocracia que ocorre toda vez que regulamos conflitos de modo pazeante ou não-guerreiro) e de defender proativamente a democracia, continuarão sendo minoria.
Mas é isso mesmo: o papel de “fermento” que cumpre essa minoria é capaz de afetar toda a “massa”. Não dá para formar patota com isso. Alguns amigos me iluminaram com seus comentários a respeito dessa concepção (de que fermento não é massa):
O Eric Vieira disse:
“Oxigenar o fermento ajuda a crescer as leveduras…”
O Guga Casari emendou:
“E são levedos levados, não obedecem…”
E o Renato Jannuzzi Cecchettini concluiu:
“Levain [ou levure?] não é massa, mas faz toda a diferença”
A propósito de um não-manifesto, chamado PeopleSpring, que pessoas conectadas à Escola-de-Redes estão preparando, publiquei a seguinte ementa (que continua sendo burilada, para ser ulteriormente desenvolvida):
DEMOCRATAS À PROCURA DOS SEUS “SENSE8S”
Democracia não é majoritarismo, fermento não é massa, processo não é modelo
Não existe democracia sem democratas. Mas os democratas sempre foram e sempre serão minoria. Seu papel – ao contrário do papel dos populistas (majoritaristas) – não é o de arrebanhar e liderar grandes massas e sim o de atuar como agentes fermentadores da formação da opinião pública.
Os democratas não constroem e dirigem organizações hierárquicas, mas sempre redes, mais distribuídas do que centralizadas, de interação política. Sim, a política é um tipo de interação e só há política propriamente dita quando se configuram ambientes comuns (commons), mas para entender isso é preciso ver que este conceito é político, não econômico. O commons é o que há de emergência (e de emergente) no conceito de público. Ou seja, o que do público se forma por emergência é o commons: uma realidade social, não estatal.
O papel dos democratas é contribuir para a distribuição da rede social e, com isso, viabilizar as condições favoráveis à emersão do commons, quer dizer, de uma realidade social capaz de se autorregular pela política (ex parte populis) – e isto é a democracia.
Por isso não haverá um grande movimento, uma grande organização, composta somente por democratas. Quando intervêm no espaço público lançando seus manifestos em defesa da democracia ou seus alertas de resistência às tiranias, os democratas não estão convocando as pessoas para aderir aos seus movimentos ou para convertê-las ao seu pensamento. Estão, apenas, procurando os seus “sensates” para articular suas redes em prol da liberdade, não para convencer as pessoas a adotar um modelo determinado de administração política do Estado ou para transformá-las em seguidoras de uma doutrina. A democracia não é uma doutrina e sim um processo de desconstituição de autocracia que acontece toda vez que – seja no Estado, seja na sociedade – conflitos são regulados de modo não-guerreiro.
Sobre o conflito, talvez seja necessário dizer – adicionalmente – algumas palavras. Em setembro de 2014 publiquei um pequeno artigo sobre o tema, que vem agora à calhar.
SOBRE FUGIR DO CONFLITO
Tenho compartilhado, com várias pessoas com as quais convivo em algumas atividades interativas, duas observações.
A primeira é que as pessoas que estão buscando e ensaiando novos processos de vida humana, em iniciativas de livre aprendizagem, de cocriação ou de ocupação de espaços públicos para se comprazer na convivência social, estão mais querendo experimentar do que estruturar discursos e referenciá-los em narrativas já existentes. Elas não estão teorizando. Elas não estão usando teorias já existentes para orientar e justificar as suas práticas. Simplesmente estão fazendo o que acham bacana. Não estão nem mesmo querendo se apresentar como grandes adeptas de causas, como acontecia há não muito tempo.
A segunda observação é que essas pessoas não têm a vibe militante. Não se parecem com gente que está guerreando, se preparando para se defender de inimigos ou para enfrentá-los e derrotá-los. Sobretudo não estão selecionando pessoas. Das novas pessoas que chegam não cobram nenhuma postura, nenhum alinhamento, nem procuram saber o que pensam em termos políticos, filosóficos ou religiosos. Não estão também querendo arrebanhar mais pessoas para algum propósito. E nem ficam aborrecidas ou desapontados quando pessoas tidas por importantes não aparecem. Os ambientes que configuram com sua convivência estão funcionando como naquela primeira proposição do Open Space: “a pessoa que vem é a pessoa certa”. Ora, isso não é nada menos do que fantástico: é o outro-imprevisível!
A impressão que se tem é que elas, se pudessem, criariam um novo mundo para elas, sem exigir que os outros participem desses mundos. Quando outras pessoas aparecem, então elas interagem (como se tivessem estado sempre ali), mas não se tornam parte, não conformam um corpo definido. E o mais bacana é que elas sentem que podem mesmo fazer isso. Agora – ao que parece – já é possível a emergência e a convivência ou a coexistência de múltiplos mundos altamente conectados.
No entanto tenho notado também uma certa tendência dessas pessoas a fugir do conflito quando por algum motivo ele se instala, sobretudo quando é tematizado segundo as velhas classificações, do tipo esquerda x direita, seguidor de tal filosofia x seguidor de outra filosofia ou ateu x religioso.
Talvez haja uma razão mais profunda, que não consigamos ainda captar, para explicar tal comportamento. E ele parece superar antigos comportamentos sectários de que temos amargas lembranças.
A seu favor podemos dizer que, nessas novas experiências, elas não estão mais lutando contra pessoas. Estão apenas desobedecendo. Sem nunca explicar – como vou fazer agora – por que se comportam assim, essas pessoas estão resistindo à determinadas configurações que reproduzem a cultura patriarcal, que induzem à ereção de estruturas hierárquicas e que condicionam a adoção de modos autocráticos de regulação de conflitos.
Sim, elas estão experimentando redes distribuídas e democracia por meio da desobediência prática (não teórica). Não fazer o que todo mundo faz, não ter um objetivo fixo e um planejamento para atingi-lo, talvez seja a forma mais eloquente de desobediência. Daí a recusa à luta.
Quem luta contra um inimigo é um obediente. Sempre obedece a alguém, a algum grupo definido por fronteiras de identidade: nós x outros. Mas é a luta contra inimigos que gera as configurações que programam alguém para obedecer-e-mandar (sim, é a mesma coisa), quer dizer, para erigir hierarquias. E na luta – que é uma forma de guerra, mesmo que não seja a guerra quente, travada com armas em campos de batalha – não se pode experimentar a democracia na vida cotidiana. Porque as exigências do combate só são compatíveis com dinâmicas autocráticas.
A paz como caminho (não-caminho) revolucionário é não-luta. Mas é desobediência civil e política que desconstitui a guerra, quer dizer, a construção de inimigos (e a manutenção de inimigos) como pretexto para organizar cosmos sociais estruturados segundo padrões hierárquicos e regidos por modos autocráticos.
Mas recusar a luta não é recusar o conflito. O problema não é o conflito, senão o modo de resolver o conflito. Não se pode escapar do conflito, como pensavam as pessoas pias, as pessoas evoluídas, as pessoas espiritualizadas, que queriam ir para um lugar (imaginário) onde não haveria conflito, onde tudo seria harmonia e concordância. Mas uma sociedade sem conflito estaria morta, congelada. A supressão do conflito – característica das distopias (e das utopias, sim, todas as utopias são autocráticas) – só pode acontecer em rebanhos, em sociedades obedientes, em mundos onde não há lugar para a sujeira e a imperfeição, para os desvios dos caminhos já pavimentados, para o erro no cálculo, para a falha na armadura, para o imprevisível e, enfim, para o acaso. Mas onde não há lugar para o acaso também não há lugar para a liberdade.
As pessoas que fugiam do conflito nunca eram melhores do que as outras. Pessoas cordatas não eram necessariamente pessoas boas. Boa educação, bons modos, abstinência de crítica, medo de ser mal-interpretado, desejo de ser admirado – tudo isso foi e ainda é, em grande parte, esforço de adequação, quer dizer: obediência, não desobediência.
O problema é que essas pessoas queriam ser aceitas por alguém que (supostamente) estaria acima delas. Elas queriam corresponder ao que esperavam delas. Mamãe programou-as para isso. E então elas saíam mundo afora atrás da mamãe: procurando aprovação. Mas não havia ninguém acima delas, a menos que elas se abaixassem. Quando elas se abaixavam, entretanto, por esse simples gesto elas já deformavam o campo social, configurando um ambiente favorável à reprodução da cultura patriarcal, hierárquica e autocrática.
Ao contrário do que lhes foi ensinado nas famílias, nas escolas, nas igrejas e nas seitas religiosas e filosóficas, padrões de inadaptação não são sinais de insanidade, pelo contrário: quando alguém se adapta a um meio doente, quem está doente é quem se adaptou. Se elas queriam se polir para passar lisas pelos esgotos, sem atritos, sem rusgas, então elas estavam doentes. Continuando nesse caminho, não raro uma pessoa assim almejava viver em lugares assépticos e de repente se pegava lavando as mãos compulsivamente com medo da sujeira. Não conseguiam ver que a pureza só existia na imagem que foram socialmente (Maturana diria: antissocialmente) compelidas a criar de si mesmas para satisfazer às expectativas mórbidas da sociedade de controle. E não descobriam que a persona é coletiva (e é também uma doença).
Então, depois de ser assaltado por tudo isso, me lembrei dos velhos alquimistas quando diziam que a matéria prima para a transformação está nos lugares mais vis e desprezados. E pensei, cá por minha conta, que se alguém não está sujo o suficiente, não pode ser aproveitado pelo simbionte (quer dizer, pelo outro-imprevisível). E que quem quer ser aproveitado não pode fugir do conflito.
Ao que tudo indica, isso será necessário agora. Anunciar uma primavera dos povos – uma sociedade-em-rede com milhares de Atenas glocais onde experimentaremos várias formas de democracia – é bem bacana. Mas não pode nos alienar do presente.
A crise da política – no mundo e, particularmente, no Brasil – é de longa duração. Não vai se resolver com a eleição de 2018. Os democratas devemos nos preparar para resistir por muito tempo (pelo menos durante uma geração). Aliás, é isto mesmo que fazemos: resistimos, ainda que nas sombras, às tentativas de autocratização.
Deixe seu comentário