Esta décima reflexão é, na verdade, o resultado de uma interação de duas horas no meu perfil do Facebook, ocorrida na manhã de 25 de fevereiro de 2019, entre 08h00 e 10h00.
O POST ORIGINAL
Uma pessoa me perguntou no grupo público Dagobah:
“Augusto de Franco, você pensa ser possível compatibilizar socialismo e democracia?”
Respondi assim:
A democracia é sem doutrina. É um modo de regulação de conflitos. A pergunta não faz sentido. Se alguém se diz a favor do socialismo ou do capitalismo e observa os princípios democráticos, tudo bem. Mas a democracia não tem a ver nem com socialismo, nem com capitalismo – é outra coisa. E quais são os princípios democráticos?
I – O direito de todos os adultos de votarem e serem votados.
II – A existência de freios e contrapesos institucionais ao poder dos representantes e um judiciário independente.
III – O controle civil sobre os militares.
IV – A igualdade legal para todos os cidadãos dentro de um Estado de direito, em que as leis são claras, conhecidas, universais, estáveis e não retroativas.
V – A liberdade individual de credo, opinião, discussão, fala, publicação, reunião etc.
VI – A liberdade para minorias étnicas, religiosas, raciais e outras minorias para praticarem sua cultura e sua religião tendo igual direito à participação política em um Estado laico.
VII – Uma genuína abertura e competição na arena política.
VIII – A real pluralidade de fontes de informação.
IX – A existência de formas de organização independentes do Estado.
X – O respeito aos direitos humanos e não utilização de práticas de tortura, terror, detenções não justificadas, exílio, interferência na vida das pessoas pelo Estado ou atores não-estatais.
Se os princípios acima forem observados qualquer um pode se declarar como quiser: comunista ou socialista, capitalista, anarquista, anarco-capitalista, fascista, nazista, islamista, cristão-fundamentalista, secular-militarista, monarquista-tradicionalista, conspiracionista-antiglobalista, Jedi ou Sith, adepto-ocultista da grande fraternidade branca (ou negra), fiel do “deus de Trump”, seguidor dos superiores desconhecidos das Plêiades, servo dos Anunnaki… Entenderam?
OS COMENTÁRIOS E AS RESPOSTAS AOS COMENTÁRIOS
Douglas Braz | Muito bom esclarecimento. Obrigado por compartilhar. Poderia citar a fonte? Esses princípios e critérios são aceitos e universais para identificar uma democracia?, ou foram elaborados ou coletados por você mesmo professor?
Augusto de Franco | A fonte? A fonte – como escreveu Goethe – só existe enquanto flui… Claro que inventei a partir do que refleti, coletei, adaptei. Todo ideia é clone de outras ideias.
As condições ou critérios para uma democracia ser considerada liberal (aqui reorganizados em dez itens) foram sugeridas por Larry Diamond (2008) em The Spirit of Democracy: The struggle to build free societies throughout the world (New York: Henry Holt & Cia, 2009). Mas um ano antes, eu mesmo, no livro Alfabetização Democrática (2007), já tinha feito uma lista semelhante:
“No sentido “fraco” (e pleno) do conceito, democracia se refere atualmente a um tipo de regime – na acepção de sistema de governo ou forma política de administração do Estado – em que os governantes são escolhidos pelos governados e que atende aos seguintes requisitos: 1) liberdade de ir-e-vir e de organização social e política; 2) liberdade de expressão e crença (incluindo hoje o direito de pesquisar, receber e transmitir informações e idéias sem interferência por qualquer meio, inclusive no ciberespaço); 3) liberdade de imprensa stricto sensu e lato sensu (existência de diversas fontes alternativas de informação); 4) publicidade (ou seja, transparência capaz de ensejar uma real accountability) dos atos do governo e inexistência de segredo dos negócios de Estado quando não estejam envolvidas ameaças à segurança da sociedade democrática e ao bem-estar dos cidadãos; 5) direito de voto para escolher representantes (legislativos e executivos) pelo sistema universal, direto e secreto; 6) condição legal de votar implicando condição de ser votado; 7) eleições livres, periódicas e isentas (limpas); 8) efetiva possibilidade de alternância no poder entre situação e oposição e “aceitabilidade da derrota”; 9) instituições estáveis, capazes de cumprir papéis democraticamente estabelecidos em lei e protegidas de influências políticas indevidas do governo; 10) legitimidade: para ser considerado legítimo o ator político individual ou coletivo deve respeitar – sem tentar falsificar ou manipular – o conjunto de regras que emanam dos requisitos acima mencionados, não lhe sendo facultado modificá-las ou delas se esquivar com base no argumento de que conta, para tanto, com o apoio da maioria da população, mesmo diante de evidências ou provas de seus altos índices de popularidade ou, ainda, com base na crença de que possui a “proposta correta” ou a “ideologia verdadeira” para alcançar qualquer tipo de utopia, seja ela o império milenar dos seres superiores ou escolhidos, o reino da liberdade ou da abundância para todos, para redimir a humanidade ou parte dela ou para salvar de algum modo a espécie humana. Esse é o sentido “fraco” do conceito de democracia, em sua concepção máxima ou plena”.
José Fernando Sales Jr. | Baseado nos preceitos democráticos do post, você defenderia que a minoria indígena continuasse a praticar o infanticídio em crianças com “deficiência física” segundo os critérios da tribo? E segunda pergunta, qual seria a posição em relação ao aborto provocado?
Augusto de Franco | A democracia é um processo de desconstituição de autocracia. Portanto, só vale para povos que vivem sob autocracia. Para grupos de coletores e caçadores, para tribos paleolíticas ou mesmo para aldeias agrícolas neolíticas, não vale – e seria prejudicial tentar implantá-la nesses mundos sociais. Os povos indígenas remanescentes (no Brasil, em geral, paleolíticos), foram absorvidos pela sociedade patriarcal (e por regimes que, em sua quase totalidade, não eram democráticos). Então foi uma dominação mesmo, que violou sua cultura. Uma vez, porém, absorvidos, passaram a fazer parte de outro mundo social. Aí, se este mundo é democrático, impõe-se os princípios da democracia que estão mencionados acima, inclusive os direitos humanos (tais como nós os entendemos, que devem valer para todos). Então, infanticídio não pode, assim como não pode também matar idosos. Aborto provocado é outra coisa. Há uma polêmica se o ser que não respirou autonomamente ou, mais importante, que não interagiu com outros humanos, é um humano consumado ou apenas humanizável (por possuir o genoma humano).
José Fernando Sales Jr. | Concordo com quase tudo a exceção do aborto provocado que nunca deveria ser tema de “discussão democrática”, não se deveríamos discutir se um feto é ou não um ser humano, até porque se existe a dúvida, automaticamente o beneplácito seria do feto. E também não concordo em tolerarmos o infanticídio, fosse ele praticado por grupos indígenas remanescentes ainda não absorvidos pela “cultura patriarcal”. A defesa da vida, em minha opinião, sobrepuja qualquer regime, ideologia, cultura ou mecanismo de regulação de conflitos (democracia).
Augusto de Franco | José Fernando Sales Jr. Mas não falei nada disso, nem em tolerar o infanticídio, nem em transformar o aborto provocado em tema de debate democrático. Leia de novo. Eu disse que há um debate (e há), mas não que deveríamos promover tal debate.
Mauricio Jorge d’Augustin Cruz | Augusto de Franco entendo teu ponto de vista. Havendo compromisso com o decálogo o sistema pode se auto proclamar como quiser, muito embora não seja, nem de perto, o que se declara ser. Tenho outra dúvida, no item V do decálogo você colocou um etc. Ali cabe a propriedade privada? Se não no item V, a propriedade privada está em algum lugar no decálogo?
Augusto de Franco | A propriedade é um direito, tanto faz que seja considerada comunal ou privada. O que não pode haver é restrições, ou medidas que proíbam a propriedade comunal ou privada.
Marcelo Pimentel Jorge de Souza | Foco no inciso III
Gilberto Prestes | Pode se declarar também machista ou feminista.
Augusto de Franco | Pode, é claro. Desde que, na sua atuação, não viole o item VI.
Luiz Jardim | Tô aqui pensando como pode existir igualdade formal para todos no socialismo, quando um talento individual dispara a ganhar dinheiro.
Jorge Mondego | Luiz esse é o problema principal do socialismo. Forçar igualdade para atingir a plena liberdade. Essa questão me é muito cara pois minha vivência vem da esquerda cultural e essa é uma discussão infinita nesse meio. Hoje a ‘direita’ está passando por algo semelhante. É possível coadunar liberalismo político num governo que impõe medidas com viés antidemocrático?
Augusto de Franco | A democracia tem a ver com liberdade e, portanto, com igualdade política (isonomia, isologia e isegoria no que tange às opiniões). Não pode colocar a igualdade sócio-econômica como condição para alcançar a (verdadeira) liberdade, pois neste caso nunca teria havido democracia. Além do quê, é através da liberdade que as pessoas podem conseguir mais igualdade, do contrário teriam de consegui-la em virtude da boa-vontade de um senhor (um autocrata), o que contradiz a essência da ideia de democracia.
Augusto de Franco | Vou transcrever toda essa thread em um novo artigo em Dagobah, que será intitulado Décima reflexão terrestre sobre a democracia.
Feito.
Para ler as nove reflexões terrestres sobre a democracia:
Primeira reflexão terrestre sobre a democracia
Segunda reflexão terrestre sobre a democracia
Terceira reflexão terrestre sobre a democracia
Quarta reflexão terrestre sobre a democracia
Quinta reflexão terrestre sobre a democracia
Sexta reflexão terrestre sobre a democracia
Sétima reflexão terrestre sobre a democracia