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Quinta reflexão terrestre sobre a democracia

A democracia é laica, não ateia; e é terrestre, não celeste (quer dizer, utópica)

Quando os antigos hebreus (apirus) disseram, sob inspiração profética, que “só o Senhor é Deus”, originalmente isso não queria significar que só havia um deus (o deus único – no sentido de que era seu ou só seu, o único existente e verdadeiro – que aquele povo chamava de Senhor), mas sim o oposto, que “só Deus é Senhor”, ou seja, que não se devia obedecer a senhores humanos. Os hebreus, como se sabe, eram os Sem Reino numa Canaã já coalhada de cidades monárquicas, muradas e fortificadas, do primeiro milênio a. E. C. E antes de serem capturados por regimes autocráticos, perambulavam como turbas, sempre fora das muralhas das cidades-Estado. Quem duvidar deve ler 1 Samuel 8 ou o relato da Assembléia de Siquem.

Este é também também o significado do dito evangélico “Dai a Cesar o que é de Cesar e a Deus o que é de Deus”. Não que se devia pagar impostos a Cesar (como se o próprio deus consentisse com a existência de senhores humanos e houvesse então um poder espiritual legitimando um poder temporal) e sim que Cesar, um senhor humano, não era Deus (confrontando a narrativa religiosa do império romano, segundo a qual seus imperadores eram deuses, tanto que para eles se erigiam templos e se organizavam cultos). Os primeiros cristãos foram chamados de ateus, por Nero, porque não acreditavam no imperador.

Para a democracia, mesmo um deus não pode ser senhor, transformando os humanos em seus escravos, servos ou súditos. A expressão “servo de Deus” – fora do seu sentido negativo de que os humanos não são (ou não devem ser) servos de outros humanos – é uma abominação autocrática.

Quando os atenienses do século 5 a. E. C. disseram que não tinham um senhor, isso não era uma afirmação de ateísmo, pois continuavam reverenciando os seus deuses, conquanto ressignificados pela democracia: para citar dois exemplos, o Zeus Agoraios (nume tutelar da livre-conversação na praça do mercado) e a deusa Peitho (a persuasão deificada, pois persuasão é expressão do modo não-guerreiro de regulação de conflitos que é o genos da democracia).

Esses deuses, porém, não comandavam os assuntos humanos, o que quer dizer que, se havia reverência ou mesmo devoção individual, não havia obediência coletiva aos seus ditames – interpretados necessariamente por sacerdotes – nas decisões da koinonia, a comunidade política. Como escreveu Ésquilo (472 a. E. C.), em Os Persas, sobre os atenienses: eles “não são escravos, nem súditos de ninguém” – e aí de ninguém é de ninguém mesmo: nem de um deus.

Os deuses da democracia ateniense eram realidades extra-políticas que, como tal, não podiam intervir no processo político. Ora, sendo assim, tudo bem para a democracia.

Por isso a democracia não é ateia e sim laica. Ela pode conviver com deuses (acredite, quem quiser, nos deuses que quiser), o que a democracia não pode é ser um regime dirigido por uma entidade sobrenatural (ou melhor, sobre-social) se a vontade dessa entidade é interpretada por intermediários humanos (os sacerdotes). O que não se pode fazer, na democracia, é recorrer a argumentos religiosos para validar ou invalidar comportamentos políticos (e é isso o que significa dizer que ela é laica).

Eis a razão pela qual as religiões não são democráticas. Porque as religiões não têm a ver com a crença em um ou vários deuses: elas só se estabelecem quando se conformam corpos de sacerdotes (docentes) destacados do corpo social (discente), que passa então ser encarado como rebanho (ainda que de um deus, mas não importa, pois o problema é que há sempre algum estamento humano, supostamente instituído por esse deus, autorizado diferencialmente a interpretar a sua vontade ou dar a versão válida sobre o seu legado, oral ou codificado em uma escritura sagrada). Por isso dizia Jung – embora não com esta interpretação – que a religião é uma proteção contra a experiência de deus.

Se cada pessoa, que acredita em deus, for o seu próprio sacerdote, não há problema. Se várias pessoas que acreditam em deus tiverem os seus sacerdotes, também não há problema, desde que eles não queiram conduzir as decisões políticas. O problema é a intervenção de uma casta sacerdotal nos assuntos políticos e a validação ou invalidação de comportamentos políticos com base em critérios extra-políticos.

Mas há mais. A democracia é terrestre, não celeste. Para entender isso é necessário ver que a autocracia, como modo de regulação estável, surge – quase três milênios antes da democracia (também como regime estável) – sob o domínio de deuses sobrenaturais (celestes), que exigiam intermediação e culto. Devoção (avod) era, na verdade, trabalho para os deuses (quer dizer, para os seus intermediários e prepostos). Quem precisa de um céu (quer dizer, de uma utopia, um não-lugar) é a autocracia, não a democracia.

Na verdade, tudo isso foi uma invenção de sacerdotes (que sagravam reis e abençoavam guerreiros: pois este é o genos da autocracia). Por isso sempre há um fundamento religioso nas autocracias antigas: os primeiros reis eram instituídos e ungidos pelos próprios deuses (por intermédio, é claro, dos seus sacerdotes). Na Mesopotâmia antiga, os reis eram chamados de Lugal (homem poderoso), eram substitutos do deus da cidade-Templo-Estado (pois cada qual tinha o seu deus-senhor-governante) e dizia-se que a realeza “descia” dos céus (como em Kish, na Suméria, onde teria “descido” pela primeira vez). Mesmo vários milênios depois, os reis continuaram a ser sagrados por sacerdotes (que colocavam as coroas nas suas cabeças) e persistia a ideia de um direito divino dos reis, no plano simbólico um sangue (azul) diferente do sangue (vermelho) comum, uma dinastia com direito de reproduzir o senhorio com base em descendência genética (novamente o sangue). Sim, autocracia tem a ver com sangue, arrancado pela espada abençoada pelo cetro (ou báculo) de quem “descia” a coroa sobre a cabeça dos que se sentavam no trono. Nesta frase estão resumidos os principais elementos simbólicos (ou rotinas do programa básico) da autocracia.

E nas autocracias ateias é a mesma coisa: há sempre uma doutrina, com status de religião do Estado e há sempre sacerdotes (os dirigentes partidários) e, em alguns casos, também dinastias baseadas em laços de sangue, como na Coréia do Norte: Kim Jong-un é filho de Kim Jong-Il e neto de Kim Il-sung, o fundador do Partido dos Trabalhadores da Coreia (o único do país, que funciona, para todos os efeitos, como uma espécie de igreja, cumprindo o papel de religião a ideologia oficial Juche).

Mas a democracia não se aplica, porque não faz o menor sentido, em sociedades (pré-patriarcais) que cultuavam deuses naturais, como os bandos de coletores e caçadores, as tribos paleolíticas e até as aldeias neolíticas, onde, se havia alguma distinção, não havia separação entre sagrado e profano.

Deuses naturais não ensejaram a conformação de estamentos sacerdotais estáveis, que – como não trabalhavam – para se reproduzir (artificialmente) urdiram ensinamentos a ser transmitidos diferencialmente aos componentes dos seus estamentos. Isso só aconteceu quando os deuses passaram a ser sobrenaturais e o acesso a eles não podia ser dar a não ser em estado de obediência a um corpo de intermediários.

A ideia evangélica de um deus como espírito santo que está entre-nós (e não acima de nós), manifestando-se na comunidade dos amantes (toda vez que eles se amam) era potencialmente subversiva da autocracia, mas logo foi recuperada e desvirtuada pela hierarquia religiosa. E esta, sim, seria uma concepção de deus mais compatível com a democracia, conquanto isso não tenha consequências práticas (a democracia pode conviver com qualquer deus acreditado pelas pessoas, menos na circunstância em que alguém, em nome desse deus, queira materializar um plano divino, urdido fora da interação política, para conduzir os humanos).

A democracia surge, justamente, como um processo de desconstituição de autocracia, como uma brecha na cultura patriarcal de sociedades que cultuavam deuses sobrenaturais, inalcançáveis, não apenas acima de nós, terrestres, mas altíssimos, que queriam (por intermédio de seus sacerdotes) transformar os humanos em seus escravos, servos ou súditos.

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