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Qual democracia? Um possível caminho das pedras

Muita gente pergunta: qual democracia? O que está subsumido na pergunta é a opinião de que existem diferentes visões da democracia. Assim, cada qual poderia ter a sua própria (visão da) democracia.

Mas se a democracia puder ser qualquer coisa, então o conceito ficará imprestável. Por isso é necessário captar o genos da democracia, o que a distingue de todos os outros regimes políticos (aristocracia, oligarquia, tirania: para ficar na caracterização de Platão). Ou, forçando um pouco, como “forma de sociedade” (como quis Lefort).

O que há de característico, invariante, exclusivo (ou inclusivo) que permite chamar com o mesmo nome (democracia) a democracia ateniense (surgida como processo de desconstituição da tirania dos psistrátidas, que durou de 509 a 322 a.C.) e a democracia reinventada pelos modernos no século 17 (provavelmente a partir da resistência parlamentar ao poder despótico de Carlos I, na Inglaterra)?

A quem devemos apelar para dirimir as dúvidas sobre o que é e o que não é democracia? Não há a quem apelar.

Não existe propriamente uma tradição democrática.

Não sobreviveu nenhuma obra sobre teoria política escrita por um democrata da Grécia clássica, onde a democracia foi inventada pela primeira vez pelos atenienses.

Os escritos de Protágoras e de outros sofistas (que eram, em parte, os democratas do pedaço), assim como os de Clístenes, Efialtes, Péricles e Aspásia (se é que escreveram alguma coisa), se perderam.

Sócrates não deixou nada escrito e todos os relatos sobre sua vida e suas ideias foram elaborados por autocratas. Cotejando todas as apologias de Sócrates e as narrativas sobre seus feitos, pode-se concluir que ele desprezava a democracia e, juntamente com seus discípulos, jamais aceitou a polis onde nasceu, viveu e foi corretamente condenado (não pelas suas opiniões antidemocráticas e sim pelas consequências de seus ensinamentos: seus mais famosos seguidores, como Cármides, Crítias e Alcebíades, se transformaram em perigosos e sangrentos golpistas contra a democracia, financiados pela ditadura espartana).

Xenofonte, o Pseudo-Xenofonte (talvez Crítias) e Platão eram autocratas, defensores da aristocracia militar de Esparta e inimigos figadais da democracia.

Tucídides, por meio do qual conhecemos partes de um discurso democrático de Péricles, não era um democrata.

Aristóteles também não entendeu bem a democracia, fez parte da Academia de Platão (que era, na verdade, um centro de formação de tiranos) e aceitou ser preceptor de Alexandre (um autocrata que foi responsável, juntamente com seu pai Filipe da Macedônia, pelo fim da democracia ateniense).

Os autores romanos – como Cícero – nunca tomaram o sentido da política como a liberdade e a República que tanto exaltaram era uma oligarquia disfarçada, não um regime que pudesse incorporar e valorizar a isonomia, a isologia e a isegoria no tocante às opiniões.

Tivemos que esperar dois mil anos até que aparecessem pensadores democráticos (como Spinoza).

Mesmo assim, talvez se possa construir uma linha imaginária de desenvolvimento do pensamento democrático, costurando escritos de pensadores tardios que lograram captar diferentes aspectos do genos da democracia, dentre os quais não podem faltar:

Althusius,

Spinoza,

Rousseau,

Jefferson,

Madison,

Paine,

Tocqueville,

Mill,

Dewey e

Arendt.

E depois, pelo menos,

Berlin,

Popper,

Dahl,

Lefort,

Bobbio,

Havel,

Castoriadis,

Maturana,

Dahrendorf,

Rawls,

Sen e

Rancière.

Este é um possível caminho das pedras para captar (ou, talvez, sintetizar) o genos da democracia.

Existirão outros caminhos? É duvidoso. Pode-se sempre acrescentar outros nomes às listas acima (que, com uma exceção, termina no final do século 20), mas isso não significa propriamente um caminho alternativo.

Quem não ler, pelo menos, os autores citados aqui (incluindo os não-democratas contemporâneos da primeira democracia: como Xenofonte, Pseudo-Xenofonte, Platão, Tucídides e Aristóteles) terá dificuldade de fazer essa síntese; ou melhor, de ter aquela visão “de todos os lados” de que falava Hannah Arendt (c. 1950), em O Sentido da Política (fragmento 3b de seus escritos publicados postumamente por Ursula Ludz).

Sim, é preciso compor diferentes aspectos para sintetizar um “DNA” democrático. Por exemplo:

♥ a democracia como a política propriamente dita, ou seja, a política que toma como sentido a liberdade

♥ a democracia como processo de criação social do commons (no sentido político do termo)

♥ a democracia como o regime sem um senhor (na definição, talvez a primeira escrita, de Ésquilo, em Os Persas)

♥ a democracia como processo de desconstituição de autocracia

♥ a democracia como o regime sem doutrina; ou, a democracia não como um ensinar e sim como um deixar-aprender

♥ a democracia como o regime sem utopia; ou a política como “utopia” (na verdade, topia) da democracia (e não o contrário); ou, ainda, a democracia não como ponto de chegada de uma caminhada e sim como um modo de caminhar

♥ a democracia como o regime da opinião, da interação e da polinização mútua de opiniões, da liberdade de opinião – ou seja, da isologia, isonomia e isegoria no tocante às opiniões, que não desvaloriza a doxa em relação à episteme ou à techné (quando se trata do processo de formação da vontade política coletiva)

♥ a democracia como “metabolismo” de uma rede (mais distribuída do que centralizada) social (quer dizer, propriamente humana) de conversações

♥ a democracia como auto-organização societária (a rigor, comunitária)

♥ a democracia como modo-de-vida ou de convivência social

♥ a democracia como uma brecha no muro da cultura patriarcal; ou como um modo de desprogramar (detox, rehab) cultura autocrática

♥ a democracia como dinâmica neo-matrística ou revivescência de uma cultura matrística (pré-patriarcal)

♥ a democracia como um erro no script da Matrix ou como uma janela para o simbionte social poder respirar

♥ a democracia como um modo não-guerreiro (pazeante) de regulação de conflitos (e, neste sentido, como o contrário da guerra – que é a autocracia)

♥ a democracia como o governo de qualquer um (e não o governo de um, de poucos, de muitos ou da maioria)

♥ a democracia como fruição da liberdade presente (que se materializa quando se interage na comunidade política, após a libertação do reino da necessidade, da servidão da casa ou da família e das exigências sobrevivenciais)

♥ a democracia como fundação constante da polis para encontrar um espaço onde os seres humanos possam se reunir permanentemente, sem necessidade, para gerar uma nova entidade (ou uma nova “espécie social” que surge quando vivemos a convivência); ou, a democracia como criação de novos mundos sociais

Isso não esgota os pontos de vista possíveis. A democracia é atributo da sociedade aberta e, assim, da sociedade que tem o futuro aberto à invenção, portanto, aberta também à reinvenção de passado (ou seja, à possibilidade de construir e reconstruir a sua própria “tradição”).

A DEMOCRACIA É OUTRA COISA…

No fragmento já citado acima Hannah Arendt escreve o seguinte:

“A política não é necessária, em absoluto — seja no sentido de uma necessidade imperiosa da natureza humana como a fome ou o amor, seja no sentido de uma instituição indispensável do convívio humano. Aliás, ela só começa onde cessa o reino das necessidades materiais e da força física. Como tal, a coisa política existiu sempre e em toda parte tão pouco que, falando em termos históricos, apenas poucas grandes épocas a conheceram e realizaram. Esses poucos e grandes acasos felizes da História são, porém, decisivos; é só neles que se manifesta de cheio o sentido da política e, na verdade, tanto o bem quanto a desgraça da coisa política. Com isso, eles tornam-se determinantes, mas não a ponto de poder ser copiadas as formas de organização que lhes são inerentes, e sim porque certas ideias e conceitos que se tornaram plena realidade para um curto período de tempo, também co-determinem as épocas para as quais seja negada uma experiência plena com a coisa política”.

Sustento que essa coisa política é a liberdade, mas não no sentido corrente, usual, da palavra, e sim no sentido que lhe atribuíram os democratas atenienses do século 5 a.C. Tal liberdade só podia se materializar na polis – um ambiente social configurado de tal maneira que possibilitasse aos seres humanos permanecerem juntos (sem ser na família ou na guerra) por tempo suficiente para viverem a sua convivência, criando um mundo totalmente inédito (além do mundo natural). Isso não tem nada a ver com prover bem-estar para a população. Não é dar ao povo “casa, comida e roupa lavada” (como da democracia muitos esperam atualmente e, por isso, se desiludem com os regimes democráticos). Isso também não tem a ver com a boa governança.

Arendt acrescenta em outra passagem do mesmo fragmento:

“Os gregos sabiam por experiência própria que um tirano sensato (o que chamamos hoje de déspota esclarecido) era de grande vantagem para o puro bem-estar da cidade e o florescimento das artes tanto materiais como intelectuais. Só a liberdade estava extinta. Os cidadãos eram desterrados em suas casas, e era isolado o espaço no qual se realizava o livre trânsito entre iguais, a ágora. A liberdade não tinha mais nenhum espaço e isso significava: não havia mais liberdade política”.

Por aqui dá para começar a perceber que a democracia é outra coisa… Ou seja, não é exatamente o que a gente pensava.


Este artigo pode ser considerado a décima-segunda reflexão terrestre sobre a democracia.

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