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Sermão aos peixes

Jornalistas e analistas políticos democráticos não podem ter medo da opinião dominante.

Imaginem se Péricles, Protágoras e outros sofistas (que eram os democratas do pedaço) tivessem medo de contrariar o pensamento médio dos atenienses (que não era democrático).

Imaginem se Aristófanes (que fazia as vezes de homem de imprensa na época) tivesse medo de tirar sarro dos filósofos (que eram, na sua quase totalidade, contra a democracia).

Havia os oligarcas (auto-proclamados patriotas) aliados da ditadura espartana (liderados por discípulos antidemocratas e golpistas de Sócrates, como Crítias, Cármides e, depois, Platão).

Havia uma massa de idiotas (Ιδιώτες), que só pensavam nos seus negócios privados e não viam nenhum sentido em participar da democracia.

Havia já os primeiros populistas (demagogos, como Alcebíades, também socratizado).

E havia uma maioria de indiferentes, que pendiam para um lado ou para outro e não raro faziam coro com os punitivistas, instrumentalizados pela aristocracia fundiária que resistia à democracia (e que acabaram perseguindo os sofistas, banindo-os da cidade, queimando seus livros).

Os democratas, na verdade, eram pouquíssimos: não eram a massa e sim o fermento na massa, mas não tinham medo de contrariar a soma das opiniões privadas dominantes para gerar a emergência de uma opinião pública (são coisas diferentes: se houvesse Ibope ou Datafolha na Atenas do século 5 a.C. a democracia não seria o regime preferido pela maioria dos indivíduos consultados).

E, no entanto, a democracia só perdurou e chegou até nós porque os democratas não tiveram medo de contrariar o senso comum.

O senso comum, hoje no Brasil, está infectado pelas ideias-implante autocráticas de pureza e limpeza, que colocam a honestidade como um valor acima da democracia. Por isso as pessoas não entendem que a democracia não é o regime sem corrupção e sim o regime sem um senhor. Não entendem que democratas podem ser honestos ou desonestos. Melhor que sejam honestos, é claro. Mas a honestidade, conquanto desejável, não é um valor acima da democracia. Bem ou mal, democratas desonestos podem impedir – a despeito de serem individualmente desonestos – golpes contra a democracia desferidos por autocratas, honestos ou desonestos.

Sim, porque autocratas também podem ser honestos ou desonestos. Os mais perigosos, para a democracia, são os honestos. Por que? Porque são menos vulneráveis às leis (que tipificam, mais facilmente, crimes comuns associados à desonestidade individual). Os autocratas espartanos, como Lisandro, eram honestíssimos, verdadeiros varões de Plutarco e, no entanto, apoiaram três golpes contra a democracia, em 411, 404 (este o mais sangrento) e 401 a.C. (este último frustrado). Outro exemplo: o ditador Salazar era honesto, mas mandava matar seus opositores e depois ia à missa confessar e comungar.

Dois fatores desfibraram as forças democráticas refecendo seu ímpeto oposicionista: o moralismo lavajatista (que também contaminou jornalistas) e o reformismo guedista (a ideia de que, apesar de tudo, Bolsonaro fez a coisa certa ao bancar o falso liberal Guedes como czar da economia porque, supostamente, ele garantiria reformas liberalizantes).

Quase ninguém se coloca a questão de que a economia pode dar certo mantendo-se a política errada. Quase ninguém imagina a seguinte situação: a economia dá certo fornecendo a Bolsonaro um “crédito maldito” para que ele avance na sua investida autoritária. E quem não faz tais questionamentos, não o faz por medo de ser acusado de estar torcendo contra, contra o Brasil. Mas o cenário é possível e sua concretização seria tenebrosa.

Tudo isso nasce a partir de uma premissa errada. As pessoas acham que a democracia existe para dar casa, comida e roupa lavada para o povo (mas isso o sultão de Brunei, o ditador Hassanal Bolkiah, também dá: em contrapartida, mata opositores, gays ou qualquer um que recuse a sharia). Bolkiah é um exemplo (para alguns que acham que a obrigação de um governo é dar coisas de graça para o povo). De fato, ele dá à toda população casa e comida subsidiadas, escola e sistema de saúde – tudo quase de graça. Lá não existem imposto de renda e contribuições sociais. O PIB per capita é de quase 32 mil dólares, na faixa da Itália e da Espanha. A dívida pública é zero. Em compensação… agora aprovou o domínio tenebroso da sharia. Instituiu amputação de mão para roubo; amputações adicionais para roubo a mão armada; adultério, atos homossexuais e estupro, são punidos com morte por apedrejamento (solteiros em conjunção carnal pegam chibatadas e um ano de cadeia); chibatadas também para punir o consumo de bebidas alcoólicas; pena de morte para a apostasia. Você ganha casa, comida e roupa lavada, mas não pode nem pensar diferente do seu senhor. Que tal? Quem topa mudar para lá?

Ocorre que a democracia não existe para melhorar as condições de vida da população (como está fazendo o governo chinês, por exemplo, que é uma ditadura). Ela existe para melhorar as condições de convivência social, para que as pessoas possam, com liberdade, se associar entre si para abrir seus próprios caminhos, superar seus carecimentos e se afirmar como construtores do seu futuro.

A maior parte dos jornalistas e analistas políticos não leva a sério a tarefa de defender a democracia contra Bolsonaro porque acha que – apesar de tudo – há algo de bom no governo: Moro e Guedes; ou Moro; ou Guedes. Façam uma lista dos jornalistas e analistas políticos que, não sendo adeptos do neopopulismo lulopetista, não se deixaram drogar por essas duas ilusões. Aposto que a nominata poderá ser contada nos dedos de uma mão.

É lamentável que quem tenha coragem de fazer oposição ao populista Bolsonaro seja o populista Lula. Um i-liberal fazendo oposição a outro i-liberal. É disso que deveríamos estar falando. Onde estão os verdadeiros liberais, os democratas?

Alguns, que já têm suas lideranças preferidas, retrucarão. “Não é verdade, o fulano está fazendo oposição construtiva”; ou “O beltrano não quer fazer oposição ao país”; ou ainda “O sicrano não faz oposição raivosa”. Desnecessário dizer quem são fulano, beltrano e sicrano.

Ora… meus amigos e amigas. Isso não existe em política. Oposição a um governo populista-autoritário, que é inimigo declarado da democracia, não pode ser tão suave que pareça uma espécie de colaboração. O regime político vigente no Brasil, felizmente, ainda é uma democracia, não uma autocracia. Mas o núcleo governante é autocrático, e disso não há mais a menor dúvida. A principal tarefa dos democratas é impedir que o comando do governo autocratize o regime.

Atenção! Em qualquer lugar do mundo ou época da história, em que se deixou uma força política tenebrosa de extrema-direita (que adota um ideário como o do partido familista-amoral Aliança pelo Brasil) perdurar no poder e se enraizar na sociedade, os resultados foram horríveis. Mas essa ficha ainda não caiu na cabeça do pessoal. Se o pessoal não ouve, só nos resta pregar para os peixes.

Churchill ao falar do acordo entre Chamberlain e Hitler, proferiu a sentença: “Entre a desonra e a guerra, escolheram a desonra e terão a guerra”. Parodiando o admirável conservador inglês, podemos dizer que hoje, no Brasil, muitos há que “entre o autoritarismo e a corrupção, escolheram o autoritarismo e terão mais corrupção” (e crimes ainda muito piores, posto que contra a democracia e a humanidade).

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