Urge uma releitura – não historicista, nem economicista – do conceito de liberalismo
Comecemos examinando as duas sentenças abaixo:
a) minha liberdade começa onde termina a do outro; ou
b) minha liberdade começa onde começa a do outro.
Claro que o conceito liberal clássico de liberdade (ausência de coerção) não é o mesmo conceito liberal democrático de liberdade dos atenienses (ninguém pode ser livre sozinho: a liberdade consiste em interagir na comunidade política).
É mais ou menos consenso que o liberalismo surgiu na Inglaterra na resistência política que culminou com a Revolução Gloriosa de 1688 contra Jaime II. Defendia-se a tolerância religiosa e o governo constitucional. Esta foi a origem do liberalismo político moderno, dito clássico, surgido entre 1780 e 1860.
Nele se destacam os pensamentos de J. Locke (1632-1704) e de Montesquieu (1689-1755), além de Alexis de Tocqueville (1805-1859), Benjamin Constant (1767-1830) e John Stuart Mill (1806-1873). “Liberdade é o direito de fazer aquilo que a lei permite” (Montesquieu, Do espírito das leis) ou liberdade é a “fruição pacífica da independência individual ou privada” (Benjamin Constant, Liberdade antiga e moderna).
Em termos políticos pode-se dizer que esse liberalismo é a primazia da liberdade individual sobre a vontade excessiva do Estado.
No entanto, o liberalismo não começou aí. Há um liberalismo antigo, que corresponde à democracia ateniense e que define, de modo mais abrangente, o liberalismo político. Liberal é toda política que toma como sentido a liberdade.
A coisa política propriamente dita é a liberdade, mas não no sentido corrente, usual, da palavra – herdeiro da concepção liberal clássica – e sim no sentido que lhe atribuíram os democratas atenienses do século 5 a.C. Tal liberdade só podia se materializar na polis – um ambiente social configurado de tal maneira que possibilitasse aos seres humanos permanecerem juntos (sem ser na família ou na guerra) por tempo suficiente para viverem a sua convivência, criando um mundo totalmente inédito (além do mundo natural). Isso não tem nada a ver com prover bem-estar para a população. Não é dar ao povo “casa, comida e roupa lavada” (como da democracia muitos esperam atualmente e, por isso, se desiludem com os regimes democráticos). Isso também não tem a ver diretamente com a boa governança.
Precisamos revisitar o conceito de liberalismo. Um liberalismo contemporâneo deveria ser uma espécie de síntese – não historicista, nem economicista – do liberalismo moderno com o liberalismo antigo, ou seja, com a democracia.
Claro que não se cogitou aqui do liberalismo-econômico, que não é um comportamento político e sim um conjunto de doutrinas, muitas vezes i-liberais aos olhos do liberalismo antigo, quer dizer, da democracia.
Temos aqui um ponto. E é bom insistir nele. O liberalismo é um comportamento político, não uma doutrina econômica, muito menos uma ideologia economicista. Liberais-econômicos só serão verdadeiros liberais se forem também liberais-políticos. Não adianta apenas bradar contra a intervenção do Estado na economia. Não adianta se dizer liberal na economia (e, às vezes, como entrou na moda na era bolsonarista, conservador nos costumes). Para ser um liberal-político é necessário dizer claramente (e se comportar condizentemente com o dito) que a sociedade é um modo de agenciamento autônomo, subsistente por si mesmo, independente do Estado, presidido por uma racionalidade própria, com uma lógica de funcionamento não derivada do Estado ou do mercado, e que não deve, portanto, ser invadida ou subordinada ao Estado e nem ser obrigada a reproduzir a dinâmica do mercado.
O liberalismo-econômico, entretanto, como dissemos, é uma ideologia, ou melhor, um tronco do qual saem várias doutrinas economicistas.
Os que não percebem isso, por mais que defendam o livre-mercado, não são verdadeiros liberais, ou seja, não são liberais no sentido político do termo e, assim, são falsos liberais (mesmo que andem pra cima e pra baixo com o Atlas Shrugged de Ayn Rand ou com os manuais de Escola Austríaca debaixo do braço). Repita-se. Liberal, stricto sensu, é quem toma o sentido da política como a liberdade (e se comporta condizentemente com isso). Sim, este texto propõe uma releitura – não historicista, nem economicista – do conceito de liberalismo.
O falso liberal, no fundo, quer agradar o tal mercado (como se o tipo de agenciamento que chamamos de mercado fosse uma coleção de grandes capitalistas; ou, como agora está na moda no Brasil, um cluster de faria-limers) para obter financiamentos para seus movimentos ou negócios, contribuições de empresas para suas campanhas (agora disfarçadas de contribuições de pessoas físicas ou via caixa 2 mesmo), admiração ou leniência do mundo econômico (sobretudo internacional) para testar suas engenharias tendo como cobaia a sociedade.
Mais uma vez. Liberal é quem afirma a liberdade como fim (finalidade ou sentido) da política e, assim, toma a democracia como um valor universal e principal valor da vida pública. Não quem construiu um sistema doutrinário para, supostamente, explicar o comportamento coletivo a partir dos interesses e preferências dos indivíduos.
Muita gente boa não entende isso – nem mesmo os que andam pra cima e pra baixo com As Seis Lições, de Ludwig von Mises, com o Livre Para Escolher, de Milton Friedman, com O caminho da servidão, de Hayek ou com o Economia em uma lição, de Hazlitt, debaixo do braço. Esses quatro panfletos compõem uma espécie de Catecismo Boulanger do liberalismo-econômico.
O problema (que os adeptos das doutrinas do liberalismo-econômico não percebem) é que o estatismo não se opõe apenas ao mercadocentrismo (a atribuição ao mercado de um papel regulador não só da economia, mas da sociedade: o que é um transbordamento ou um deslizamento da regulação que funciona em um campo de eventos para outro campo de eventos, regidos que são tais campos por lógicas distintas) e sim à autonomia da sociedade, à sua subsistência por si mesmo, com racionalidade própria (e não derivada ou emprestada do Estado ou do mercado) e é por isso, fundamentalmente, que todo estatismo é antidemocrático: não porque seja contra uma impossível regulação mercantil da sociedade (já que é a economia que tem de ser de mercado, não a sociedade) e sim porque é contra uma regulação social (ou societária) da sociedade.
Sem uma regulação social da sociedade não poderia ter surgido a democracia, de vez que a polis não era a cidade-Estado e sim a koinonia (a comunidade) política e que a polis – como sacou genialmente Johanna Arendt (1958), em A condição humana – não era Atenas (a entidade abstrata, o Estado) e sim os atenienses (a rede concreta de pessoas que geraram a democracia por meio das suas conversações na Agora, uma praça publicizada, tornada, pela interação dos atenienses livres, um espaço público, quer dizer, não privatizado pelo autocrata).
O pensamento do liberalismo-econômico, que não pode ser confundido com o liberalismo em termos políticos (e por isso foi chamado aqui de liberalismo-econômico, para realçar sua natureza de vertente do economicismo – embora um ramo não marxista e não estatista), é um pensamento fraco em termos teóricos, desnecessário tanto para a apreensão da democracia como ideia, quanto para a realização de comportamentos compatíveis com a democracia (como, de resto, qualquer doutrina). Como foi dito, é mais uma doutrina, que já faz muito por não se opor às democracias que temos, mas nada inspira na direção das democracias que queremos.
Em resumo, o pensamento do liberalismo-econômico, com raras exceções de formulações mais sofisticadas (como, talvez, algumas, de Hayek – não todas) não é um pensamento capaz de captar a complexidade social. Não é um pensamento contrário à democracia realmente existente nos países que a adotam e, felizmente, em muitos casos, não desabilita seus seguidores para a democracia como regime de governo, ainda que não seja favorável à apreensão da democracia como processo de democratização. É também um pensamento conservador na medida em que não é inovador. É uma narrativa legitimatória da maioria dos regimes políticos vigentes em democracias representativas e formais. Mas, registre-se, é também um pensamento capaz de namorar com a autocracia, um caminho mais curto – aquela Via Seca dos velhos alquimistas – para operar mudanças no ventre da economia que, supostamente, seriam também liberalizantes em termos políticos (o que não é verdade, como se está vendo hoje, quando cada vez mais países autocráticos adotam políticas econômicas liberais – e outros mecanismos de mercado, próprios do capitalismo – capazes promover modernização sem democracia).
Demétrio Magnoli em artigo na Folha de São Paulo de 30/11/2019 lembra alguns fatos que corroboram o juízo de que seguidores de doutrinas do liberalismo-econômico podem ser analfabetos democráticos:
Na sua segunda visita ao Chile de Pinochet, em 1981, Friedrich Hayek afirmou preferir uma “ditadura liberal” a um “governo democrático desprovido de liberalismo”. Disse, ainda, que “uma ditadura pode ser um sistema necessário durante um período de transição”.
Milton Friedman também assessorou Pinochet — e, mais tarde, defendendo-se das críticas, sugeriu que, graças ao programa liberal adotado pelo regime, o Chile acabou se reencontrando com a democracia.
Friedman visitou a China em 1980, entre uma e outra passagem pelo Chile, e voltou em 1988, oferecendo conselhos a Deng Xiaoping e Zhao Ziang. Como Hayek, ele imaginava que a liberdade nasce nos bastidores da economia, difundindo-se eventualmente (naturalmente?) para o palco da política.
Vejamos, em resumo, quais são os principais problemas do pensamento do liberalismo-econômico do ponto de vista da presente proposta de releitura, não historicista, nem economicista, do conceito de liberalismo.
PROBLEMAS DA VISÃO DO LIBERALISMO-ECONÔMICO
Para começar: oito problemas conceituais que afetam, mais ou menos, as diversas doutrinas do liberalismo-econômico:
1) humano como indivíduo (ou o não-conceito de pessoa como ente social),
2) liberdade como ausência de coerção de indivíduos sobre indivíduos (ou o não-conceito de liberdade como atributo da associação entre pessoas) e
3) sociedade de mercado (ou o não-conceito de sociedade como modo de agenciamento autônomo).
Estes são são os três principais problemas das doutrinas do liberalismo-econômico.
Há outros, por certo, como:
4) a ideia de que o ser humano é inerentemente ou por natureza (seja lá o que for) competitivo,
5) a ideia de que o comportamento coletivo pode ser explicado pelo comportamento dos indivíduos que fariam escolhas tentando maximizar seus interesses ou preferências egotistas,
6) a ideia de que a política deveria estar de acordo com um conhecimento da natureza (de “como as coisas são”),
7) a não compreensão do conceito de commons (no sentido político do termo) ou a ausência ou irrelevância do conceito de público,
8) a não compreensão da democracia como valor universal e principal valor da vida pública.
Ao longo do tempo do tempo vamos comentando os problemas acima.
1 – Humano como indivíduo (ou o não conceito de pessoa como ente social)
Para se opor – corretamente – ao coletivismo massificante das ideologias que transformam o indivíduo em mero exemplar de um rebanho a ser conduzido pelo Estado e seus líderes, os liberais-econômicos deixaram de ver que a pessoa (o ser humano concreto, o ser propriamente humano) não é um indivíduo, mas um entroncamento de fluxos, um emaranhado de relações e que uma pessoa é necessariamente feita das outras pessoas.
Ou seja: que a pessoa é um ente social. Que o social não é a coleção dos indivíduos, mas o que está entre eles. Que o social não surge quando uma pessoa se relaciona com outras pessoas (em virtude da propalada propensão à sociabilidade que seria inerente aos indivíduos da espécie Homo Sapiens), de vez que as pessoas não preexistem ao social, que as pessoas já são redes: que os indivíduos (biológicos) só se tornam pessoas (humanas) quando são pessoalizados pelo social.
E, pulando aqui algumas passagens da argumentação, que a sociedade não é, portanto, um epifenômeno, uma forma de agenciamento subsidiária a qualquer outra, mas uma forma autônoma, capaz de subsistir por si mesma, não podendo ter sua racionalidade derivada do mercado (muito menos do Estado, mas com isso, pelo menos, concorda o pensamento econômico liberal).
E trinta anos depois, eles – sobretudo os que se dizem conservadores – ainda continuam pensando como Margaret Thatcher (1987):
“And, you know, there is no such thing as society. There are individual men and women, and there are families” (1).
E aí imaginam que a sociedade é um conceito abstrato que só existe como atribuição de um observador, algo incapaz de existir por si só, sendo uma criação feita a partir de indivíduos. No limite, os liberais pelo menos, acreditam que é apenas uma consequência das relações econômicas entre os indivíduos.
O humano – e a mente humana, tal como tratada pelos individualistas metodológicos – deve ser um daqueles princípios apriorísticos, imunes à investigação empírica, de que falava von Mises. Como os liberais não discutem a questão, de vez que, supostamente, todo mundo saberia o que é humano, entende-se que humanos são indivíduos da espécie Homo Sapiens. Mas o humano propriamente dito não é o animal humano (o ser biológico) e sim o animal que foi humanizado pela cultura, vale dizer, pela interação com outros humanos (tornando-se assim, como assinalou Maturana, um ser biológico-cultural).
Após as considerações de Maturana, o advento da nova ciência das redes permitiu que desenvolvêssemos uma intuição seminal de Nobert Wiener (1950): quando ele escreveu, em Cibernética e Sociedade, que “um padrão é uma mensagem e pode ser transmitido como tal”, abriu uma linha de reflexão segundo a qual todas as coisas – inclusive as pessoas, que, segundo ele, não passam “de redemoinhos em um rio de água sempre a correr” – são como que singularidades em um continuum, campo, tecido ou espaço (2). A hipótese, que era fértil, inclusive, pelo seu poder heurístico, pode ser amplamente corroborada pelas investigações posteriores, realizadas já neste século, por pesquisadores como Nicholas Christakis (2009), que perceberam que em geral atribuímos aos indivíduos propriedades que dependem, rigorosamente, não deles próprios, mas das redes a que estão conectados (compreendendo até as doenças que eram atribuídas a comportamentos individuais, como a obesidade, por exemplo) (3).
A visão de que as pessoas são singularidades no fluxo interativo da convivência social nos permite perceber que não há pessoa (ou seja, ser humano propriamente dito) fora desse fluxo. Para essa visão, o indivíduo não passa de uma abstração estatística. Não é um ser humano concreto. É o ser abstrato que compõe comunidades abstratas (como a que chamamos de população). Isso não significa, de modo algum, que os seres humanos seriam elementos indiferenciados de uma massa disforme ou membros de algum rebanho, como alertam os que se opõem, corretamente, às visões coletivistas. Pelo contrário, todos são diferentes e, mais ainda, únicos, na medida em que todos espelham internamente as redes nas quais estão (e são, como pessoas) de modo particular e único. Não há dois espelhamentos iguais, o que significa que as internalizações do mundo são sempre distintas para os sujeitos.
A esse processo chama-se pessoalização. As pessoas não nascem, se constroem. Os seres humanos vão se pessoalizando (ou despessoalizando) à medida que vão interagindo. A pessoalização é um outro nome para a humanização do ser humanizável (ou seja, do portador do genoma humano: o exemplar da espécie Homo Sapiens). Mas também podem se despessoalizar ou se desumanizar na medida em que experimentem relações antissociais (no sentido que Maturana atribui à expressão). Isso significa que a pessoalização corresponde à socialização (mas não no sentido em que essa palavra é usada pelos coletivistas, senão exatamente no sentido oposto: relações hierárquicas (antissociais) despessoalizam tanto os que mandam quanto os que obedecem na exata medida da centralização da rede em que as pessoas estão e são como pessoas).
É fácil ver que esse pensamento individualista – não trabalhando com o conceito de pessoa, mas de indivíduo – não tem também um conceito de social. O social passa a ser a coleção dos indivíduos e não o que está entre eles. Tanto é assim que, ao refugar as analogias com os organismos biológicos, recusa não apenas o deslizamento epistemológico de se comparar redes de seres humanos com entidades biológicas (o que estaria correto), senão a própria ideia metafórica ou metonímica de organismo social. A questão é que se não houver, em termos sociais, algo semelhante a um “organismo”, um sistema de agentes cujo comportamento não possa ser inferido do comportamento dos indivíduos, para nada vale o conceito de social. Eis o ponto! Para o pensamento liberal – que adota o tal ‘individualismo metodológico’ – de nada vale mesmo o conceito de social posto que ele parte do pressuposto apriorístico – tomado como evidente por si mesmo – de que o comportamento coletivo pode ser explicado a partir do comportamento dos indivíduos, de que o todo pode ser entendido por suas partes, de que o sistema pode ser conhecido a partir do conhecimento de seus agentes. Convenhamos, depois de tantos anos de investigações sobre a complexidade é meio tosco continuar repetindo isso (e a crítica aqui vai menos para Mises e seus contemporâneos do que para os seus seguidores atuais).
Pois todas as descobertas das teorias dos sistemas, sobretudo das teorias dos sistemas dinâmicos complexos adaptativos e da nova ciência das redes (análise de redes sociais, redes como sistemas dinâmicos complexos e redes como estruturas que se desenvolvem), indicam que a rede social (sim, é disso, rigorosamente, que se trata quando se fala de social ou sociedade) não é o conjunto de seus nodos e de que os fenômenos interativos que ocorrem nas redes sociais não podem ser explicados, muito menos previstos, pelos (ou a partir dos) fenômenos que afetam as condições de seus nodos e nem podem ser inferidos de suas propriedades intrínsecas. Assim ocorre com toda a fenomenologia da interação recentemente descoberta pela nova ciência das redes: com o clustering, com o swarming, com o cloning e com o crunching entre muitos outros. Nenhum desses fenômenos (sociais, posto que estamos falando de rede de pessoas, sociosferas ou sociedades) pode ser explicado a partir dos indivíduos. É neste sentido que se pode dizer que a sociedade se comporta como se fosse um organismo (ainda que não seja um organismo biológico) em virtude de uma função sistêmica que acrescenta características ou propriedades novas, que não estavam presentes nos seus membros. E nem mesmo esses membros podem ser considerados indivíduos, posto que a rede social é uma rede de pessoas (e os fenômenos que ocorrem nas redes sociais dependem disso: da capacidade de interação, de acoplamento estrutural e de criação de novas pessoalidades dos humanos que as compõem: ou melhor, que são por elas compostos).
2 – Liberdade como ausência de coerção de indivíduos sobre indivíduos (ou o não-conceito de liberdade como atributo da associação entre pessoas)
Os liberais-econômicos afirmam que a liberdade é o valor político fundamental. Eles reconhecem que têm muitos outros valores políticos, porque se importam com a família e com a religião.
Do ponto de vista da democracia está correto colocar a liberdade como o valor político fundamental (e isso é uma diferença essencial entre liberais e conservadores, para os quais o valor fundamental é a ordem); mais do que isso, porém: ela é o sentido da política.
Mas já há aqui alguma coisa meio problemática: ao colocarem, como exemplos de valores políticos, a família e a religião, alguns liberais-econômicos deixam de ver que família e religião não são valores democráticos. Se a família em questão for a família monogâmica e se a religião for patriarcal (como o são as religiões propriamente ditas, cujos deuses são sobrenaturais, exigem culto e um corpo sacerdotal, estamento intermediário entre os fiéis e a divindade), não são valores democráticos (e sim autocráticos). Família monogâmica e religião (propriamente dita, excluídas as manifestações espirituais de povos cujos deuses eram naturais – como a deusa-mãe neolítica, por exemplo – e que não exigiam um corpo sacerdotal como corpo destacado) são fenômenos culturais próprios de sociedades com Estado, com padrão de organização hierárquico e modo de regulação autocrático.
Muitos liberais definem liberdade como ausência de coerção de indivíduos sobre indivíduos. Está correto, mas não é uma definição suficientemente forte de liberdade. A liberdade é, antes de qualquer coisa, a liberdade de criar o que não existe e de ser infiel à sua origem, de poder fazer o que não é necessário, de andar sem rumo e de estar abandonado ao fluxo interativo da convivência social, ao léu, sujeito ao acaso, à falha, ao erro. É importante fazer tal observação porque muitos liberais-econômicos fornecem uma razão utilitária para a liberdade: propiciar um maior desenvolvimento das potencialidades individuais (até aí tudo bem) e uma maior produtividade do trabalho humano (e aqui já não está tão bem: a liberdade não pode ter um propósito produtivista).
Outro escorregão comum aos seguidores de doutrinas do liberalismo-econômicos e essa história de que o liberalismo seria um sistema social mais benéfico do que qualquer outro para as massas. Mas, afinal, o liberalismo é uma doutrina ou um sistema social? Devemos entender que é um sistema social baseado em uma doutrina? Isso significaria que é um sistema social implantado por pessoas que conhecem e aderem à doutrina (uma doutrina melhor do que as outras)?
Outro aspecto não considerado por nenhum pensador do liberalismo-econômico – é que só no mundo social faz sentido o conceito de liberdade: o indivíduo isolado não teria liberdade, mesmo que não sofresse coerção por parte de ninguém.
Não há liberdade na natureza, ou melhor, no universo físico e na natureza, na geosfera ou na biosfera (nos cinco reinos de seres vivos).
Só pessoas podem ser livres, mas pessoas não são entes biológicos, pertencentes aos reinos de seres vivos. Cada pessoa é o primeiro exemplar de uma nova espécie social.
Voltando ao assunto, como já foi dito na introdução deste texto, ninguém pode ser livre sozinho. Isso não tem a ver somente com o conceito liberal clássico de liberdade (como ausência de coerção). A liberdade democrática fundante é aquela que só se alcança ao interagir na comunidade política.
3) sociedade de mercado (ou o não-conceito de sociedade como modo de agenciamento autônomo)
Os liberais econômicos não consideram a sociedade um modo de agenciamento autônomo. Como disse Tatcher, na frase reproduzida acima, não existe coisa alguma como uma sociedade: apenas homens e mulheres individuais e suas famílias. Modos de agenciamento propriamente ditos somente o mercado e o Estado.
Assim, para explicar a dinâmica coletiva (a interação entre as pessoas), projetam sobre a sociedade a racionalidade do mercado. Em vez de a economia ser de mercado, a sociedade passa a ser de mercado. As consequências dessa projeção são problemáticas.
Como o mercado é presidido por uma racionalidade competitiva, a sociedade passa a ser presidida pela mesma “lógica”: todos lutando para maximizar a obtenção de seus interesses ou a realização de suas preferências. Ocorre que as pessoas e as sociedades realmente existentes não se comportam assim. Aliás, o que chamamos propriamente de sociedade só existe porque as pessoas não se comportam assim. A maior parte das ações humanas são gratuitas e desinteressadas em termos materiais. São baseadas em relações de confiança, não de desconfiança. São ações, em grande parte, desnecessárias, não necessárias. Do contrário teríamos apenas uma coleção de indivíduos, não uma sociedade. O capital social de uma sociedade de mercado – quer dizer, de uma sociedade que se comportasse segundo a “lógica” do mercado – seria próximo de zero, o que significa que tal entidade social não poderia subsistir por si mesma, se autorregular e persistir existindo sem se esgarçar, se aniquilar ou se dissolver.
Ademais, sociedades predominantemente competitivas conformariam péssimos ambientes para mercados competitivos (e estes, sim, devem ser competitivos). Todas as evidências indicam que mercados competitivos florescem melhor em sociedades cooperativas. Sem doses adequadas de confiança nenhum negócio pode ser feito.
Há uma ideia cretina repetida ad nauseam pelos que entraram em contato com doutrinas do liberalismo-econômico. Ela pode ser resumida assim. Não se deve cobrar do mercado o que não é sua função (ou não corresponde à sua natureza): ter preocupações morais, éticas ou democráticas. O crescimento e a prosperidade econômica viriam, justamente, porque o mercado não se preocupa com a sua própria justeza ou moralidade. Simplesmente agindo como age, o mercado garantiria sempre o melhor resultado para a coletividade. O “espírito animal” do empresário – Keynes (1936) – conquanto possa ser censurado pelo filósofo moral ou pelo político democrata, seria, na verdade, o segredo do dinamismo econômico. No cômputo geral a resultante seria benéfica, independentemente da (falta de) virtude dos “animais” amorais individuais.
Evidentemente trata-se de um fundamento ideológico (quase religioso) para um pensamento mercadocêntrico (quase um fundamentalismo), tomado como um sistema autorregulador de alocação e distribuição de recursos que tem sua dinâmica própria e infensa a julgamentos extra-mercadológicos. Para os mercadocentristas esse modo de agenciamento, que pode valer no terreno da economia, deve valer para tudo, posto que estaria acima de todos os demais.
É claro que o mercado é um modo de agenciamento presidido por uma lógica variacional, que se revela melhor do que qualquer tipo de planejamento econômico (centralizado) estatal. Mas convém não reificar demais. Modos de agenciamento (como o mercado, o Estado e a sociedade – este último não reconhecido pelos ideólogos do mercado) – são frutos de interpretação de fenômenos coletivos (ou melhor, são descrições de fenomenologias da interação social, quer dizer, de redes sociais, stricto sensu, quer dizer, de redes humanas). É um modo de olhar, descrever e explicar, não uma realidade objetiva soberana à qual possamos ter acesso com base em um princípio anti-antrópico.
Assim como se rejeita o estadocentrismo, deve-se rejeitar o mercadocentrismo, que tende a deslizar a dinâmica do mercado para a sociedade, querendo que ela seja uma sociedade de mercado quando é a economia que deve ser de mercado e não a sociedade. Aliás, está mais do que evidente que uma economia competitiva só pode funcionar bem em uma sociedade cooperativa (pois sem níveis mínimos de confiança e reciprocidade – quer dizer, de capital social – nenhum negócio pode funcionar direito).
‘O mercado’ é uma abstração, não um ator ou sujeito concreto. Não vem de Marte e é operado por pessoas terrestres mesmo, não por algum fator ou potência transcendente ao mundo físico ou imanente à natureza ou à história.
Quando se fala: “o mercado acha isto ou aquilo” ou “o mercado concorda com tal ou qual ponto de vista”, ou ainda, “o mercado está favorável ao governo Bolsonaro”, não se está falando de um conceito, do modo de agenciamento específico que podemos chamar de mercado e sim de pessoas de carne-e-osso que operam o mercado financeiro (como os faria-limers e os banqueiros), que investem, que empreendem empresarialmente (como os grandes capitalistas) e que dirigem corporações de empresários (como Paulo Skaf instrumentalizando a Fiesp).
Esses agentes de mercado não são seres compostos por duas partes: a parte cidadã (humana) e a parte mercado (“animal”), sendo que a segunda parte imunizaria a primeira contra qualquer avaliação de caráter ético ou democrático. Não existe esse monstro dual. Ou melhor, se houver um ser dual desse tipo, ele será um monstro.
Devemos ser favoráveis ao mercado: isso não está nem em discussão. E também devemos ser favoráveis ao direito dos mercadocentristas de terem suas crenças e praticá-las. Aliás, é o mesmo direito ao culto religioso. Mas nós não somos obrigados a aderir à sua fé.
Se fosse por certo tipo de agente econômico – uma atualização dos que, na Atenas do século 5 a.C., foram chamados de ἰδιώτης (idhiótis) – a democracia jamais teria sido inventada. Ambos, certamente, além de não terem um conceito de esfera pública, achavam que esse tipo de preocupação com a democracia não tinha a menor importância. E tanto faria, para eles, que o governante de turno fosse Péricles (o principal expoente da democracia nascente), Lisandro (o autocrata espartano que financiou dois golpes contra a democracia), Pinochet (o ditador chileno assessorado por Hayek ou Friedman) ou Bolsonaro (que entregou o assunto ao “liberal” Paulo Guedes).
Vale a pena ler aqui um texto seminal de Claus Offe (1999), uma conferência intitulada A atual transição da história e algumas opções básicas para as organizações da sociedade.
4) O ser humano inerentemente ou por natureza competitivo
As doutrinas do liberalismo-econômico (e a economia ortodoxa em geral) assumem que há algo inerentemente (ou por natureza, seja lá o que for) competitivo no ser humano. Essa hipótese é necessária em termos “lógicos”, para garantir a coerência interna do sistema explicativo (na verdade, mais prescritivo do que descritivo). Isso é apresentado, às vezes, como uma verdade evidente por si mesma, sobre a qual nem cabe qualquer discussão. No entanto, não é uma evidência científica. Não há nada que corrobore a afirmação de que temos, os humanos, uma natureza competitiva. Pode-se dizer, no máximo, que, submetidos a certos arranjos, os seres humanos apresentam comportamento competitivo, mas apenas quando há escassez, ou melhor, escassez produzida artificialmente para erigir e manter estruturas mais centralizadas do que distribuídas. Se os fluxos interativos são bloqueados em algumas direções, os humanos escorrerão por outras direções. Se se provoca uma anisotropia no campo social, privilegiando, por exemplo, a direção vertical, parece óbvio que as pessoas tentarão subir pelo único caminho disponível. É o padrão de organização – hierárquico – que provoca isso, não algo que seja inerente ao humano ou a outros seres vivos (como os caranguejos numa lata, cada qual tentará subir dando a impressão de que os animais competem entre si, puxando os outros para baixo).
Não há evidências sólidas de que a competição seja constitutiva do humano. Aliás, a maioria das evidências apontam o contrário: que foi a colaboração que nos tornou humanos. Isso fica claro quando olhamos 150 mil anos de presença do ser humano na Terra e não apenas 5 a 6 mil anos da civilização patriarcal (que é hierárquica).
Sobre isso, cabe fazer aqui um segundo interregno para examinar o tratamento que Humberto Maturana dá a questão (segundo a minha – de Augusto de Franco – leitura).
Voltamos depois…
Notas e referências
(1) A citação inteira é a seguinte: “I think we’ve been through a period where too many people have been given to understand that if they have a problem, it’s the government’s job to cope with it. ‘I have a problem, I’ll get a grant.’ ‘I’m homeless, the government must house me.’ They’re casting their problem on society. And, you know, there is no such thing as society. There are individual men and women, and there are families. And no government can do anything except through people, and people must look to themselves first. It’s our duty to look after ourselves and then, also to look after our neighbour. People have got the entitlements too much in mind, without the obligations. There’s no such thing as entitlement, unless someone has first met an obligation”. Prime minister Margaret Thatcher, Talking to Women’s: Own Magazine, October 31 1987.
(2) WIENER, Norbert (1951). Cibernética e sociedade: o uso humano de seres humanos. São Paulo: Cultrix, 1993.
(3) CHRISTAKIS, Nicholas & FOWLER, James (2009): Connected: o poder das conexões. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010.