É claro que não estamos falando do mercado como modo de agenciamento e sim dos operadores econômicos que atuam como agentes políticos disfarçados e são frequentemente chamados de ‘o mercado’
Há uma ideia cretina repetida ad nauseam pelos que entraram em contato com doutrinas do liberalismo-econômico. Ela pode ser resumida assim. Não se deve cobrar do mercado o que não é sua função (ou não corresponde à sua natureza): ter preocupações morais, éticas ou democráticas. O crescimento e a prosperidade econômica viriam, justamente, porque o mercado não se preocupa com a sua própria justeza ou moralidade. Simplesmente agindo como age, o mercado garantiria sempre o melhor resultado para a coletividade. O “espírito animal” do empresário – Keynes (1936) – conquanto possa ser censurado pelo filósofo moral ou pelo político democrata, seria, na verdade, o segredo do dinamismo econômico. No cômputo geral a resultante seria benéfica, independentemente da (falta de) virtude dos “animais” amorais individuais.
Evidentemente trata-se de um fundamento ideológico (quase religioso) para um pensamento mercadocêntrico (quase um fundamentalismo), tomado como um sistema autorregulador de alocação e distribuição de recursos que tem sua dinâmica própria e infensa a julgamentos extra-mercadológicos. Para os mercadocentristas esse modo de agenciamento, que pode valer no terreno da economia, deve valer para tudo, posto que estaria acima de todos os demais.
É claro que o mercado é um modo de agenciamento presidido por uma lógica variacional, que se revela melhor do que qualquer tipo de planejamento econômico (centralizado) estatal. Mas convém não reificar demais. Modos de agenciamento (como o mercado, o Estado e a sociedade – este último não reconhecido pelos ideólogos do mercado) – são frutos de interpretação de fenômenos coletivos (ou melhor, são descrições de fenomenologias da interação social, quer dizer, de redes sociais, stricto sensu, quer dizer, de redes humanas). É um modo de olhar, descrever e explicar, não uma realidade objetiva soberana à qual possamos ter acesso com base em um princípio anti-antrópico.
Assim como se rejeita o estadocentrismo, deve-se rejeitar o mercadocentrismo, que tende a deslizar a dinâmica do mercado para a sociedade, querendo que ela seja uma sociedade de mercado quando é a economia que deve ser de mercado e não a sociedade. Aliás, está mais do que evidente que uma economia competitiva só pode funcionar bem em uma sociedade cooperativa (pois sem níveis mínimos de confiança e reciprocidade – quer dizer, de capital social – nenhum negócio pode funcionar direito).
‘O mercado’ é uma abstração, não um ator ou sujeito concreto. Não vem de Marte e é operado por pessoas terrestres mesmo, não por algum fator ou potência transcendente ao mundo físico ou imanente à natureza ou à história.
Quando se fala: “o mercado acha isto ou aquilo” ou “o mercado concorda com tal ou qual ponto de vista”, ou ainda, “o mercado está favorável ao governo Bolsonaro”, não se está falando de um conceito, do modo de agenciamento específico que podemos chamar de mercado e sim de pessoas de carne-e-osso que operam o mercado financeiro (como os faria-limers e os banqueiros), que investem, que empreendem empresarialmente (como os grandes capitalistas) e que dirigem corporações de empresários (como Paulo Skaf instrumentalizando a Fiesp).
Esses agentes de mercado não são seres compostos por duas partes: a parte cidadã (humana) e a parte mercado (“animal”), sendo que a segunda parte imunizaria a primeira contra qualquer avaliação de caráter ético ou democrático. Não existe esse monstro dual. Ou melhor, se houver um ser dual desse tipo, ele será um monstro.
É bom ler sobre o tema dois artigos recentes publicados na Folha de São Paulo: o de Angela Alonso, de hoje e o do Reinaldo Azevedo, da última sexta-feira. Seguem reproduzidos abaixo com uma pequena nota ao final.
Mercado paira sobre todos e não dá um pio sobre obscurantismo
Angela Alonso, Folha de S. Paulo (02/02/2020)
Quem acredita na blindagem da equipe econômica desconhece rotina dos casamentos
O presidente adora a metáfora matrimonial, mas é improvável que conheça a história de Galateia. Trata-se da mulher perfeita, esculpida em marfim por Pigmaleão, que se apaixona por sua própria criatura. Afrodite então lhe dá vida, e escultor e escultura se casam.
Para seguidores do Mito que desconheçam esse mito, há o Pinóquio da Disney, embora de equivalência imperfeita. É que no filme falta casamento e essa instituição se tornou central no Brasil, desde que o governo pôs o anel no dedo desta entidade mítica, o Mercado.
Sem abstrações —a opinião pública, a justiça, o dinheiro— o cotidiano não funciona. Esses entes imaginários orientam comportamentos, põem a vida social para andar.
A ficção Mercado, contudo, suplantou suas parentes e ganhou estatuto não de humanidade, mas de divindade. No jornal, tromba-se a toda hora com esse ser extraordinário, como se flanasse, com suas planilhas, sobre os humanos comezinhos, com suas enchentes e queimadas.
Como Galateia, a criatura pensa e age por si —“o Mercado diz”, “o Mercado aposta”— numa unidade de propósito, independente de sociedade, da política, enfim, das pessoas de carne e osso. É essa entidade, o Mercado, quem celebra a melhora econômica, apesar dos “probleminhas” da democracia, como se uma coisa nada tivesse com a outra. O presidente, definiu seu vice, é um brincalhão, mas, tudo bem, pois seu ministro da Economia não brinca em serviço. Basta deixar Bolsonaro em casa fazendo graça, enquanto Guedes dá o ar de sua graça em Davos.
Se outros membros do governo propalam medidas surreais e autoritárias sobre cultura, arte, educação, populações indígenas, crianças, o Mercado nem se apoquenta. Tem um olho só vidrado em Guedes, que, de seu lado, é cego para assuntos extramercadológicos, como a desigualdade. Mercado e ministro miram apenas as reformas, outro ente imaginário.
As barbaridades dos “ideológicos” do governo em nada os afligem, pois incidem em áreas “soft” —mesmo que aí se incluam meio ambiente e relações exteriores, cruciais para os negócios.
O desprestígio à ciência tampouco os amofina. Nenhum dos atos descabidos do governo mereceu seu protesto. Nem uma palavra sobre a troca de pesquisadores de prestígio por indivíduos sem a qualificação adequada nas gestões da Biblioteca Nacional e da Casa de Rui Barbosa. Nem um protesto contra um defensor do “design inteligente” na Capes. Nem um pio sobre a restrição de viagens de pesquisadores das universidades federais para congressos internacionais. Nem uma queixa contra as trapalhadas no Enem.
O Mercado não mexe suas palhas para apagar o fogaréu obscurantista que se abateu sobre a ciência nacional, imolando o esforço de vários governos —até os da ditadura, que muitos apreciam.
O Brasil tem cientistas de primeira linha e não apenas nas ciências duras, para a qual o Mercado às vezes pisca. Tem inventores de remédios e criadores de políticas públicas de reputação internacional. Ambos salvam vidas.
São crias de universidades públicas e centros de pesquisa que os governistas desprezam, todos trabalhando em condições inferiores às de congêneres estrangeiros. Em países que realmente visam o desenvolvimento, chove dinheiro para a pesquisa. Aqui, só tempestade.
O Mercado silencia, calculando que o estrago atinge a comunidade científica apenas. Mas afeta o futuro do país. Atrasa todos os brasileiros, inclusive os do Mercado, tão sequioso por inovação e profissionais qualificados. As incompetências governistas impactam todos, pois os com commodities e os sem elas vivem na mesma sociedade.
Qualquer pessoa minimamente preparada sabe que a produção científica tem efeitos sobre a economia inteira de um país. Recursos para a pesquisa são investimentos, não gorduras.
Esse é um campo regido pelo mesmo princípio que o Mercado advoga para si: a liberdade —neste caso, a de pensar em vez de acatar dogmas.
O pessoal do dinheiro julga a política anticientífica conversa circunscrita a feudos como o de Damares, míopes para sua fronteira aberta com os campos de Tereza Cristina.
A metáfora da blindagem da equipe econômica denota a ilusão de que o Mercado possa casar com o bolsonarismo e ficar incólume à sua insensatez.
Quem nisso crê ou desconhece a rotina dos casamentos ou se imagina Afrodite, com poderes para reconverter sua criatura em pedra. Mas, a despeito da fé de seus adoradores, o Mercado não é deus, não opera milagres, nem seus carros blindados protegem contra a ignorância.
Mercados se tornam parceiros de governo obscurantista
Reinaldo Azevedo, Folha de São Paulo (31/01/2020)
Se o presidente cismar em derrubar metade da Amazônia, o negócio é comprar papéis de alguma madeireira
A existência de um mercado forte no Brasil sempre funcionou como uma barreira de contenção a governantes com parafusos a menos. Ou por outra: “Não fale e não faça besteira, ou os indicadores econômicos degringolam, as expectativas se deterioram, o pessimismo aumenta, e tudo se complica”.
É assim, mais marcadamente, desde a redemocratização. A rigor, os estertores do regime militar já traziam os indicadores de mercado a dizer: “Acabou o ciclo; hora de voltar para a casa e deixar que a sociedade se vire”. Em síntese: os mercados atuavam como agentes civilizadores da política.
Ainda que o capital, por si, seja amoral e não olhe a cor dos gatos desde que cacem ratos, o fato é que, há muitos anos, no Brasil, os mercados resolveram apreciar a democracia. Se seus valores são referendados pelas forças políticas influentes, sobe o preço dos ativos; se o contrário, então o contrário. Há muitos anos não é bom negócio especular contra direitos fundamentais e valores civilizatórios.
Um fenômeno, no entanto, se dá com o governo de Jair Bolsonaro — a rigor, manifestou-se já desde a sua candidatura — que consiste num completo descolamento entre a política e a economia. Uma hora, é claro, isso acaba. E muita gente pode ser surpreendida pelo estouro da bolha. Por enquanto, não há sinais de que vá acontecer.
Os indicadores de mercado deixaram de servir de advertência contra destrambelhamentos do chefe. Não importa o número de besteiras que façam o mandatário e seus comandados, o otimismo resiste, como a dizer: “Ah, isso tudo é só política! Danem-se! Não temos nada com isso”.
Conversem com um desses agentes de mercado e peçam que citem, deixem-me ver, três fatores objetivos que justifiquem o otimismo. E vocês vão constatar que as pessoas não têm o que dizer a não ser repetir um elenco de promessas ainda eleitorais, na certeza de que Paulo Guedes vai realizar um milagre — afinal, fingem ser ele o presidente da República, não Jair Bolsonaro.
Deve haver nisso elementos de psicologia social. Esses tais mercados não queriam o PT de jeito nenhum — embora não conseguissem, do seu exclusivo ponto de vista, explicar por que não, já que ganharam dinheiro como nunca na era petista. Os demais candidatos identificados com teses de mercado não emplacaram — Geraldo Alckmin em particular.
E aí sobrou o candidato exótico, com sua impressionante capacidade de dizer asneiras sobre todos os assuntos — e isso incluía os mercados. Ocorre que Paulo Guedes entrava na equação: o candidato, de verdade, para aquele público em particular, seria ele, Guedes, não aquele adulto infantilizado e truculento que fazia arminha com as mãos…
E foi assim que os mercados aprenderam a não dar bola para Bolsonaro e, de modo mais amplo, para a política. Por óbvio, isso só torna mais agudos os nossos problemas e nos conduz ao atraso com mais determinação. Sim, uma hora a bolha estoura. Mas esse é só o contratempo de curto prazo. Há os prejuízos de longo prazo, para os quais Rodrigo Maia (DEM-RJ), presidente da Câmara, chamou a atenção na quarta (29), durante um seminário sobre economia.
Tivessem os tais mercados reagido às coisas estúpidas que já fez o ministro Ricardo Salles, do Meio Ambiente, por exemplo, e ele já estaria cuidando de seus assuntos privados, e o país certamente estaria recebendo um fluxo maior de investimentos estrangeiros. Guedes sentiu em Davos o peso da repulsa à política ambiental. Bolsonaro teve de tirar da cartola, da noite para o dia, um conselho para tratar da Amazônia e a Força Nacional Ambiental.
A pressão veio de fora. Os nossos caramurus não estavam nem aí. Se o presidente cismar em derrubar metade da Amazônia, o negócio é comprar papeis de alguma madeireira…
É essa alienação da realidade que permite que um Abraham Weintraub continue a produzir atraso histórico a cada hora que permanece à frente do Ministério da Educação, multiplicando ignorância e incompetência. No longo prazo, é um desastre. No curto, rende alguns memes nas redes sociais e ponto.
Os mercados se tornaram parceiros do obscurantismo. Até quando?
CONCLUINDO
Devemos ser favoráveis ao mercado: isso não está nem em discussão. E também devemos ser favoráveis ao direito dos mercadocentristas de terem suas crenças e praticá-las. Aliás, é o mesmo direito ao culto religioso. Mas nós não somos obrigados a aderir à sua fé.
Se fosse por certo tipo de agente econômico – uma atualização dos que, na Atenas do século 5 a.C., foram chamados de ἰδιώτης (idhiótis) – a democracia jamais teria sido inventada. Ambos, certamente, além de não terem um conceito de esfera pública, achavam que esse tipo de preocupação com a democracia não tinha a menor importância. E tanto faria, para eles, que o governante de turno fosse Péricles (o principal expoente da democracia nascente), Lisandro (o autocrata espartano que financiou dois golpes contra a democracia), Pinochet (o ditador chileno assessorado por Hayek ou Friedman) ou Bolsonaro (que entregou o assunto ao “liberal” Paulo Guedes).