Padrões autocráticos se replicam em outras regiões do tempo
Quer entender realmente a democracia? Comece então a investigar as raízes ancestrais da tirania. Por exemplo, examine os padrões hierárquico-autocráticos presentes na cultura do tribalismo patriarcalista dório. Uma boa pista é entender a Krypteia, a polícia-política (na verdade, uma milícia estatal) espartana.
Antes de qualquer coisa é preciso entender que houve uma espécie de Dark Age na Grécia, que começa com a invasão dória e o final da civilização Micênica, por volta de 1150 a.C., e que termina com a ascensão das cidades-estados gregas, cerca de 800 a.C.
Algumas informações de tipo wikipedia antes de começar.
A invasão dos dórios teria desencadeado essa Dark Age: diz-se que era um povo violento. Por conta disso, destruíram o que havia sido construído na civilização micênica e as importantes cidades comerciais dos aqueus. Os dórios eram militaristas. A guerra era o artifício que usavam para obtenção de seus recursos. Os espartanos eram descendentes dos dórios, por isso tinham também tanta afeição pela organização militar. A violenta invasão dos dórios na região da Grécia e a destruição da civilização micênica fizeram a cultura helênica regredir, afundando os gregos em um período conhecido como Idade das Trevas da Grécia. Infelizmente essa fase não possui nenhum registro escrito, apenas registros arqueológicos.
A origem dos dórios ainda é algo incerto, as teorias que tentam explicar o fato ainda não chegaram a uma conclusão definitiva. Alguns pesquisadores acreditam, baseando-se em ideias difundidas na Antiguidade, que os dórios eram originários de regiões montanhosas localizadas ao norte e a nordeste da Grécia, além de Macedônia e do Épiro. Segundo os defensores dessa hipótese, alguma circunstancia não identificada teria causado a migração desse povo mais para o sul, alcançando a região do Peloponeso, certas ilhas do Mar Egeu, à Magna Grécia e à Creta. Já outra corrente de pensamento sustenta a ideia que os dórios teriam origem na costa da Ásia Menor e se deslocaram pelo nordeste da Grécia e por diversas ilhas até a estabilização definitiva no sul da região. Pela raiz incerta, os dórios são identificados, grosso modo, como um povo indo-europeu.
Indo-europeus: são assim chamados os povos originários das estepes da Ásia central ou dos planaltos iranianos (também chamados arianos) que, a partir do final do neolítico, se expandiram para a Europa, Pérsia e península da Índia. As características culturais dos indo-europeus marcaram profundamente os povos com que mantiveram contato. Estes povos já tinham domesticado os cavalos e os utilizavam juntamente com carros para a guerra ou para o transporte. Além disso, são considerados os inventores do arco, da cerâmica e de machados de combate feitos com cobre ou pedra. A sociedade dos indo-europeus apresentava caráter patriarcal e seu modo de sustento provinha da pecuária e da agricultura.
Bem… aqui uma informação relevante: era um povo totalmente imerso em uma cultura patriarcal. Continuemos, porém, com as informações, agora um pouco mais tratadas.
Plutarco em Moralia (Os antigos costumes dos espartanos) relata que
“Não lhes era permitido [aos espartanos] ir para o exterior, para que não tivessem nada a ver com os caminhos estrangeiros e modos de vida indisciplinados. Licurgo também introduziu a prática de banir todos os estrangeiros do país, para que eles não se infiltrassem e servissem para ensinar algo ruim aos cidadãos. Quem entre os cidadãos que não se submetesse à disciplina a que os meninos eram submetidos, não participava dos direitos cívicos”.
Stone (1988), em O julgamento de Sócrates, conta que, na Atenas democrática,
“Não havia KGB — nem FBI nem CIA, aliás — a grampear seu telefone para conhecer suas ideias. Embora instituições desse tipo já existissem em outras regiões da Grécia, em Atenas não havia nada semelhante. Esparta, conforme sabemos de várias fontes, tinha uma krypteia, isto é, uma polícia secreta, que não apenas espionava os hilotas que “não conheciam seu lugar”, mas também assassinava os rebeldes e dissidentes potenciais que havia entre eles (1).
Tudo leva a crer que a espionagem política não demorou para surgir, com o advento das tiranias em cidades-Estados gregas como Siracusa, onde Platão certa vez tentou transformar o tirano Dionísio II, que era seu amigo, num “rei-filósofo” modelo. Lá, segundo Aristóteles, um dos precursores de Dionísio, Hierão, usava agents provocateurs, bem como espiões, para investigar “todo e qualquer pronunciamento ou ato” que indicasse dissidência. Mulheres conhecidas como “ouvidos aguçados” eram enviadas para “todas as reuniões e congressos”. Sua missão consistia não apenas em relatar todo pronunciamento perigoso, mas também, por sua própria presença — ou pela possibilidade de estarem presentes —, inibir os que criticavam o regime. Observa Aristóteles: “Quando os homens temem espiões desse tipo, eles controlam a língua” (2). Em Atenas, todos usavam suas línguas para dizer o que bem entendiam; e ninguém usufruía desse direito mais que Sócrates”.
Philip Matyszak (2017) em Sparta: Rise of a Warrior Nation, relata que
“Aos 12 anos, o guerreiro em formação era ainda mais traumatizado ao ser entregue a um jovem mais velho com quem se esperava que tivesse um relacionamento pederástico. Enquanto a palavra grega paiderastia significa algo como ‘o amor dos meninos’, Xenofonte afirma que: “Em Lacedemônia (Esparta), a relação de amante e amado assemelha-se à de pai e filho, ou amor fraternal, sendo totalmente desprovida de um elemento carnal.” No entanto, Xenofonte aceita que o resto da Grécia aceitará essa afirmação com incredulidade cética: “Claro, não surpreende que algumas pessoas simplesmente não acreditarão nisso”. Esperava-se que esse menino mais velho introduzisse o mais jovem nos modos de vida adulta e mostrasse como se esperaria que um guerreiro espartano deveria se comportar. De fato, neste ponto o jovem era introduzido na reserva do exército, e portanto, tornava-se formalmente parte das forças armadas de Esparta. Se o rapaz se mostrasse excepcionalmente promissor, também poderia participar das atividades da infame Krypteia Espartana. Essencialmente, os Kryptei – os ‘secretos’ – eram sentinelas. Seu trabalho era espionar o inimigo e atacá-lo para enfraquecê-lo se vissem uma chance. Eles também eram agentes do terror contra a população hilota messeniana. A razão para isso era que os Éforos todo ano declaravam guerra contra a Messênia, mesmo depois que Messênia se tornara um estado conquistado completamente sob o controle espartano. Assim, quando eles secretamente patrulhavam a Messênia, a Krypteia estava tecnicamente trabalhando em território inimigo e operando sob as regras da guerra e não da sociedade civil. Portanto (na opinião dos espartanos), os membros da Krypteia tinham justificativa para matar qualquer hilota que encontrassem se movendo à noite. Além disso, a fim de enfraquecer o ‘inimigo’, para eles era perfeitamente legítimo descobrir quem os outros hilotas admiravam e então matar aquele homem – não porque ele tivesse violado alguma lei, mas simplesmente porque ele era respeitado ou bem-sucedido e portanto, um líder potencial de qualquer rebelião. Esta é uma das razões pelas quais os membros da Krypteia operavam em segredo – não há necessidade de duvidar que eles e suas famílias seriam os principais alvos de retaliação se alguma revolta de hilotas ocorresse – e o temor de uma revolta de hilotas nunca esteve longe da consciência espartana. Era geralmente crível que aqueles que mais tarde se tornassem líderes do estado espartano eram, em sua maioria, oriundos das fileiras daqueles que haviam servido na Krypteia e que tinham experiência pessoal de suas atividades nefastas” (3).
Aqui vemos como os padrões autocráticos se replicam em outras regiões do tempo. Mais de 2.500 anos depois, Cuba teve, no dia 14/07/2021, manifestações nas cidades de Pinar del Río, Havana e Santiago de Cuba, no quarto dia consecutivo de protestos contra a ditadura. Entidades de direitos humanos calculam o número de desaparecidos no país entre 160 e 187, relata Duda Teixeira na Crusoé. Segundo opositores do regime, policiais estão fazendo recrutamento forçado de jovens com mais de 17 anos, que recebem pedaços de pau e são orientados sobre como reprimir manifestações. A polícia também está invadindo casas à noite, à caça de manifestantes.
Polícia. Estado policial. Eis uma chave para entender o totalitarismo, como já havia percebido Hannah Arendt (1951) em Origens do totalitarismo. Segundo ela,
“É verdade que a ascendência da polícia secreta sobre o aparelho militar é a marca de muitas tiranias, e não somente das tiranias totalitárias; mas, no caso do governo totalitário, a preponderância da polícia não apenas atende à necessidade de suprimir a população em casa, como se ajusta à pretensão ideológica de domínio global. Pois é evidente que os que veem toda a terra como seu futuro território darão destaque ao órgão de violência doméstica e governarão os territórios conquistados com as medidas e o pessoal da polícia, e não com o Exército. Assim, os nazistas usaram as suas tropas SS, essencialmente uma força policial, para governar e até conquistar territórios estrangeiros, visando ulteriormente a uma fusão do exército com a polícia sob a liderança da SS” (4).
Pode-se começar a investigação estudando Esparta, examinando as seguintes obras:
Xenofonte. A República dos Lacedemônios. Tradução em espanhol. Madri: Instituto de Estudios Politicos, 1973.
Plutarco. Vidas Paralelas. Tomo I. Licurgo.
Ross, Brandon D. (2012). “Krypteia: a form of ancient guerrilla warfare“. Grand Valley Journal of History, Vol. 1: Iss. 2, Article 4.
Cartledge, Paul. The spartans: an epic history. Pan Books.
Matyszak, Philip (2017). Sparta: rise of a warrior nation. South Yorkshire: Pen & Sword Books, 2017.
Cerqueira, Fábio Vergara e Oliveira Silva, Maria Aparecida (2019) (orgs). Estudos sobre Esparta. Pelotas: UFPel, 2019. Em especial o artigo Krypteiai Spartane, de Massimo Nafissi (2015).
Notas
(1) Em relação à espionagem em Esparta, ver Tucídides, 4.80; Xenofonte, Constituição da Lacedemonia, 4.4, e Plutarco, Vida de Licurgo, 28 (ambos os textos podem ser baixados nos links acima).
(2) Política, 5.9.3 (Loeb 461).
(3) Matyszak, Philip (2017) em Sparta: Rise of a Warrior Nation. South Yorkshire: Pen & Sword Books, 2017 (o livro pode ser baixado no link acima).
(4) Arendt, Hannah (1951). Origens do totalitarismo. São Paulo: Cia das Letras, 2013 (o livro pode ser baixado no link acima).