Sim, a democracia está em crise. Mas ela não pode ser salva a partir de um conjunto de conhecimentos, de um método apoiado em conteúdos descobertos ou revelados, de qualquer sistema de filosofia ou sabedoria. A democracia é interativista, não cognitivista. A democracia é sem-doutrina, não é um ensinar e sim um deixar-aprender.
Com isso não quero dizer que sistemas de sabedoria construídos para explicar o mundo, a natureza, o ser humano ou a sociedade não possam revelar aspectos ocultos da realidade, nem que não haja nesses sistemas alguma (ou até muita) sabedoria. Todos esses sistemas, porém, constroem esquemas cósmicos para descobrir uma ordem pretérita, que existiria ex ante à interação.
Isso tudo se aplica, em parte, ao que se chamou originalmente de filosofia (e também às diversas teosofias, antroposofias e, em geral, sofias). O conceito pitagórico – e depois platônico – de filósofo, acabou prevalecendo na sua versão mais laicizada, de adorador e, então, amigo da Verdade. Havia uma Verdade (com V maiúsculo) e aceder a ela exigia uma espécie de aceitação e inserção numa ordem já desenhada antes da interação dos humanos, na harmonia cósmica, na “música das esferas”, a partir da comunhão com os padrões matemáticos puros que estão por trás do mundo fenomênico, manifesto e impuro. Sim, há uma ideia de pureza implicada na gênese do conceito de filósofo, que emanaria daquilo que é perfeito e, como tal, a um só tempo, bom, belo e verdadeiro (e tanto é assim que os Versos de Ouro, atribuídos aos pitagóricos, que parecem ter servido originalmente como uma espécie de missal, leitura ritual obrigatória para os discípulos da escola pitagórica, foram divididos em três partes: preparação, purificação, perfeição).
Há também um combate entre a Verdade e o Erro e essa guerra não é contingente, mas constitutiva do universo, cosmogônica. É claro que essa perspectiva sacerdotal – uma ideologia de professores, como uma kabbalah – tinha origens míticas e consequências hierárquicas e autocráticas incompatíveis com o fluir da livre-conversação que não tem rumo (prefigurado): como dizem os Versos de Ouro, em uma passagem, “deixa aos loucos o agir sem um fim e sem causa”. Mas é justo o contrário. Deixar-se levar pelo fluxo interativo da convivência social pressupõe que ser livre é não ter rumo prefigurado, ou seja, aceitar a imprevisibilidade da política.
Parece explicável que pessoas imbuídas desse tipo de visão de mundo tenham ficado escandalizadas quando apareceram, no espaço público nascente de Atenas – um ambiente comum, profano: extramuros das escolas de sabedoria, fora dos sodalícios espirituais, dos clusters fechados dos que buscavam o bom, o belo e o verdadeiro – algumas dezenas de loucos questionando a ordem pregressa e dizendo que suas opiniões (e as opiniões de qualquer um) deveriam ser levadas em conta pelo que eram, sem a necessidade de sua validação pela tradição de sabedoria ancestral. Essas pessoas irreverentes foram as que ficaram conhecidas como sofistas, odiadas por oligarcas políticos e espirituais, vítimas de intolerância, maledicência e perseguição (a ponto de terem de esconder sua real condição para sobreviver, disfarçando-se como poetas: que, se também não eram bem vistos, pelo menos eram tolerados).
Se essa brecha não tivesse sido aberta naquela carapaça epistemológica, se os malucos que se comportavam erraticamente, sem uma doutrina verdadeira como guia, como se verdade fosse tudo o que nos faz mais livres, nunca teríamos ouvido a palavra democracia. Isso permanece até hoje: se formos conduzidos por sábios, dificilmente aderiremos à democracia.
Quer dizer, então, que a sabedoria é ruim? Não. Quer dizer apenas que o que a nossa civilização chamou de sabedoria não tem muita coisa a ver com democracia.
VERSOS DE OURO
Tradução de Dario Vellozo, do original francês de Fabre d’Olivet
PREPARAÇÃO
Aos Deuses imortais o culto consagrado
Rende; e tua fé conserva. Prestigia
Dos sublimes Heróis a imárcida lembrança
E a memória eteral dos supernos Espíritos.
PURIFICAÇÃO
Bom filho, reto irmão, terno esposo e bom pai
Sê; e para amigo o amigo da virtude
Escolhe, e cede sempre a seus dóceis conselhos;
Segue de sua vida os trâmites serenos;
Sê sincero e bondoso, e não o deixes nunca,
Se possível te for; pois uma lei severa
Agrilhoa o Poder junto à Necessidade.
Está em tuas mãos combater e vencer
Tuas loucas paixões; aprende a dominá-las.
Sê sóbrio, ativo e casto; as cóleras evita.
Em público, ou só, não te permitas nunca
O mal; e mais que tudo a ti mesmo respeita-te.
Pensa antes de falar, pensa antes de agir;
Sê justo. Rememora: um poder invencível
Ordena de morrer; e os bens e as honrarias,
Fáceis de adquirir, são fáceis de perder.
Quanto aos males fatais que o Destino acarreta,
Julga-os pelo que são: suporta-os, procura,
Quão possível te seja, o rigor abrandar-lhes.
Os Deuses, aos mais cruéis, não entregam os sábios.
Como a Verdade, o Erro adoradores conta.
O filósofo aprova, ou adverte com calma.
E, se o Erro triunfa, ele se afasta, e espera.
Ouve, e no coração grava as minhas palavras;
Fecha os olhos e o ouvido a toda prevenção;
Teme o exemplo de um outro, e pensa por ti mesmo:
Consulta, delibera e escolhe livremente.
Deixa aos loucos o agir sem um fim e sem causa;
Tu deves contemplar no presente o futuro.
Não pretendas fazer aquilo que não saibas.
Aprende: tudo cede à constância e ao tempo.
Cuida em tua saúde: e ministra com método,
Alimentos ao corpo e repouso ao espírito.
Pouco ou muito cuidar evita sempre; o zelo
Igualmente se prende a um e a outro excesso.
Têm o luxo e a avareza efeitos semelhantes.
Deves buscar em tudo o meio justo e bom.
PERFEIÇÃO
Que não se passe um dia, amigo, sem buscares
Saber: Que fiz eu hoje? E, hoje, que olvidei?
Se foi o mal, abstém-te; e, se o bem, persevera.
Meus conselhos medita; e os estima; e os pratica:
E te conduzirão às divinas virtudes.
Por esse que gravou em nossos corações
A Tétrade sagrada, imenso e puro símbolo,
Fonte da Natureza, e modelo dos Deuses,
Juro. Antes, porém, que a tua alma, fiel
A seu dever, invoque, e com fervor, os Deuses,
Cujo socorro imenso, valioso e forte
Te fará concluir as obras começadas,
Segue-lhes o ensino, e não te iludirás:
Dos seres sondarás a mais estranha essência;
Conhecerás de Tudo o princípio e o termo.
E, se o Céu permitir, saberás que a Natura,
Em tudo semelhante, é a mesma em toda parte.
Conhecedor assim de todos teus direitos.
Terás o coração livre de vãos desejos,
E saberás que o mal que aos homens cilicia,
De seu querer é fruto; e que esses infelizes
Procuram longe os bens cuja fonte em si trazem.
Seres que saibam ser ditosos, são mui raros.
Joguetes das paixões, oscilando nas vagas,
Rolam, cegos, num mar sem bordas e sem termo,
Sem poder resistir nem ceder à tormenta.
Salvai-os, grande Zeus, abrindo-lhes os olhos!
Mas, não: aos Homens cabe, – eles, raça divina-,
O Erro discernir, e saber a Verdade.
A Natureza os serve. E tu que a penetraste,
Homem sábio e ditoso, a paz seja contigo!
Observa minhas leis, abstém-te das coisas
Que tua alma receie, em distinguindo-as bem;
Sobre teu corpo reine e brilhe a Inteligência,
Para que, te ascendendo ao Eiter fulgurante,
Mesmo entre os Imortais, consigas ser um Deus!
Imagem: Pythagoreans celebrate sunrise by Fyodor Bronnikov (1869).