Sérgio Moro, ao publicar o artigo abaixo, em 2004, não estava apenas relatando um caso italiano de cruzada de limpeza ética na política, a Operação Mani Pulite (Mãos Limpas). Não. Ele estava falando para o Brasil. Seu artigo é uma proposta de saneamento dos meios políticos nacionais. Dez anos depois, em março de 2014, seu intento foi alcançado com a instalação da Operação Lava Jato.
Os pontos principais da estratégia e das táticas que seriam, uma década depois, adotadas pela Lava Jato, foram antecipados por Moro em 2004:
1 – Deslegitimação do sistema político,
2 – Crítica à ineficiência ou excesso de liberalismo do sistema judicial e das leis brasileiras,
3 – Prisões antes do julgamento e coação dos presos para forçar delações
4 – Vazamentos para a imprensa,
5 – Conquista da opinião pública,
6 – Movimentos sociais em apoio à cruzada de limpeza ética e…
7 – Não dito, mas subentendido: constituição de uma força política com características jacobinas e restauracionistas após a terra-arrasada. A Lava Jato ensejou o surgimento do lavajatismo, um movimento claramente político que visava não apenas a rigorosa aplicação das leis no combate à corrupção, mas a conquista do poder de Estado.
Acompanhe alguns comentários interpolados ao texto original (em vermelho). Os grifos no texto de Moro (em azul) são nossos. Depois concluímos com uma pequena nota.
CONSIDERAÇÕES SOBRE A OPERAÇÃO MANI PULITE
Sergio Fernando Moro, CEJ, Brasília, n. 26, p. 56-62, jul./set. 2004
RESUMO
Traça breves considerações sobre a operação mani pulite, na Itália, uma das mais impressionantes cruzadas judiciárias contra a corrupção política e administrativa.
Discute as causas que precipitaram a queda do sistema de corrupção italiano e possibilitaram a referida operação — entre elas os crescentes custos, aliados a uma conjuntura econômica difícil —, bem como a estratégia adotada para o seu desenvolvimento.
Destaca a relevância da democracia para a eficácia da ação judicial no combate à corrupção e suas causas estruturais e observa que se encontram presentes várias condições institucionais necessárias para a realização de ação semelhante no Brasil, onde a eficácia do sistema judicial contra os crimes de “colarinho branco”, principalmente o de corrupção, é no mínimo duvidosa. Tal fato não escapa à percepção popular, constituindo um dos motivadores das propostas de reforma do Judiciário.
PALAVRAS-CHAVE
Operação mãos limpas; mani pulite; Itália; corrupção; prisão pré-julgamento; prisão pós-julgamento; Lei n. 10.628/2002; Lei n. 7.492/86; ação judicial; propina.
1 INTRODUÇÃO
A denominada “operação mani pulite” (mãos limpas) constitui um momento extraordinário na história contemporânea do Judiciário. Iniciou-se em meados de fevereiro de 1992, com a prisão de Mario Chiesa, que ocupava o cargo de diretor de instituição filantrópica de Milão (Pio Alberto Trivulzio).
Dois anos após, 2.993 mandados de prisão haviam sido expedidos; 6.059 pessoas estavam sob investigação, incluindo 872 empresários, 1.978 administradores locais e 438 parlamentares, dos quais quatro haviam sido primeiros-ministros.
A ação judiciária revelou que a vida política e administrativa de Milão, e da própria Itália, estava mergulhada na corrupção, com o pagamento de propina para concessão de todo contrato público, o que levou à utilização da expressão “Tangentopoli” ou “Bribesville” (o equivalente à “cidade da propina’) para designar a situação.
A operação mani pulite ainda redesenhou o quadro político na Itália. Partidos que haviam dominado a vida política italiana no pós-guerra, como o Socialista (PSI) e o da Democracia Cristã (DC), foram levados ao colapso, obtendo, na eleição de 1994, somente 2,2% e 11,1% dos votos, respectivamente.
Talvez não se encontre paralelo de ação judiciária com efeitos tão incisivos na vida institucional de um país. Por certo, tem ela os seus críticos, especialmente após dez anos. Dez suspeitos cometeram suicídio. Silvio Berlusconi, magnata da mídia e um dos investigados, hoje ocupa o cargo de primeiro-ministro da Itália.
Não obstante, por seus sucessos e fracassos, e especialmente pela magnitude de seus efeitos, constitui objeto de estudo obrigatório para se compreender a corrupção nas democracias contemporâneas e as possibilidades e limites da ação judiciária em relação a ela.
Sim, de fato, como escreveu Sérgio Moro, “a operação mani pulite ainda redesenhou o quadro político na Itália”. Mas não para o bem do ponto de vista da democracia. Sobre as consequências de Tangentopoli, uma observação de Giuliano Da Empoli (2019), em Os engenheiros do caos, vem a calhar:
“Se Heinrich Mann dizia que Napoleão era uma bala de canhão lançada pela Revolução Francesa, seria possível dizer, guardadas as proporções, que Grillo e Salvini são as balas de canhão lançadas por Tangentopoli – a revolução judiciária que decapitou a classe política italiana no início dos anos 1990, inaugurando a interminável era da rejeição às elites e da fuga da política. Entre 1992 e 1994, a classe política do país foi eliminada: metade dos membros do parlamento que pertenciam a partidos do governo foi posta sob investigações, alguns líderes foram presos, outros fugiram para o exterior. Os dois partidos que governavam a república desde sempre, a Democracia Cristã e o Partido Socialista, desapareceram no espaço de algumas semanas. A operação “Mãos Limpas” já representava, em sua essência, uma abordagem populista: os pequenos juízes contra as elites corruptas. “Quando as pessoas aplaudem, elas aplaudem a si mesmas”, declarava à época o procurador geral de Milão, Francesco Saverio Borrelli. E não é por acaso que diferentes magistrados que protagonizavam as devassas anticorrupção tenham em seguida entrado na política, fundando partidos, fazendo-se eleger no parlamento e tornando-se ministros ou prefeitos de grandes cidades.
A partir desse momento, bastou aos italianos sair em busca de elites alternativas para governar o país no lugar dos políticos profissionais, desacreditados, corruptos e incompetentes. Foi a esquerda que começou, sustentando com vigor as ações dos magistrados da operação “Mãos Limpas”, para, em seguida, dar vida, na primavera de 1993, ao primeiro governo “técnico” da história republicana: um Executivo presidido pelo ex-governante do Banco da Itália, Carlo Azeglio Ciampi, e composto exclusivamente de ministros não políticos, pinçados das fileiras do mundo acadêmico e da administração pública. Durante esse período, começou a florescer, entre os progressistas, o mito de uma “sociedade civil” virtuosa e não corrompida da qual teria emergido a nova classe dirigente do país. Mas, imediatamente depois, Berlusconi chegou para explicar que o poder devia ser gerido pelos empresários e os managers, ou gestores, verdadeiros produtores da riqueza do país, contrariamente a uma classe política formada por inúteis. Com ele, chegaram ao governo os regionalistas da Liga e os ex-fascistas da Aliança Nacional, um bloco heterogêneo unido pela rejeição à “Roma ladrona” – “Roma ladra”.
Nos anos que se seguiram, o Cavaliere , como era chamado Berlusconi, continuou a dominar a política italiana quase até o fim de 2011, quando foi obrigado a renunciar por causa de escândalos ligados à sua vida pessoal. A partir de então, sucederam-se a tentativa de Mario Monti de instaurar um “governo de competentes” e a empreitada da centro-esquerda para recuperar o fôlego da política tradicional com a liderança inovadora de Matteo Renzi.
As eleições de 4 de março de 2018, que levaram ao triunfo o Movimento 5 Estrelas e a Liga, marcaram a falência definitiva desses esforços, dando lugar à transformação da Itália em terra prometida do populismo real. Realizou-se também, pela primeira vez num grande país ocidental, a convergência entre populismo de direita e de esquerda que tanto inflamou a imaginação – e a ambição – de Steve Bannon. Para ele, o que se está vivendo nada mais é que um choque de civilizações”.
2 CAUSAS DA QUEDA DE UM SISTEMA CORRUPTO
Segundo Porta e Vannucci (1), três foram as causas que precipitaram a queda do sistema de corrupção italiano e possibilitaram a operação “mãos limpas”: a) uma conjuntura econômica difícil, aliada aos custos crescentes da corrupção; b) a integração europeia, que abriu os mercados italianos a empresas de outros países europeus, elevando os receios de que os italianos não poderiam, com os custos da corrupção, competir em igualdade de condições com seus novos concorrentes; e c) a queda do “socialismo real”, que levou à deslegitimação de um sistema político corrupto, fundado na oposição entre regimes democráticos e comunistas.
A política do pós-guerra italiano estava apoiada na separação da Europa em dois blocos, o democrático-liberal e o comunista. Tal oposição também se fazia presente na Itália, com a oposição entre os partidos de direita, como a Democracia-Cristã (DC), e os de esquerda, como o Partido Comunista (PC). Com a queda do “socialismo real” e o arrefecimento do debate ideológico, as fragilidades do sistema partidário e a corrupção tornaram-se mais evidentes.
A deslegitimação do sistema foi ainda agravada com o início das prisões e a divulgação de casos de corrupção. A deslegitimação, ao mesmo tempo em que tornava possível a ação judicial, era por ela alimentada:
A deslegitimação da classe política propiciou um ímpeto às investigações de corrupção e os resultados desta fortaleceram o processo de deslegitimação. Consequentemente, as investigações judiciais dos crimes contra a Administração Pública espalharam-se como fogo selvagem, desnudando inclusive a compra e venda de votos e as relações orgânicas entre certos políticos e o crime organizado. As investigações mani pulite minaram a autoridade dos chefes políticos – como Arnaldo Forlani e Bettino Craxi, líderes do DC e do PCI – e os mais influentes centros de poder, cortando sua capacidade de punir aqueles que quebravam o pacto do silêncio (2).
O processo de deslegitimação foi essencial para a própria continuidade da operação mani pulite. Não faltaram tentativas do poder político interrompê-la. Por exemplo, o governo do primeiro-ministro Giuliano Amato tentou, em março de 1993 e por decreto legislativo, descriminalizar a realização de doações ilegais para partidos políticos. A reação negativa da opinião pública, com greves escolares e passeatas estudantis, foi essencial para a rejeição da medida legislativa (3).
Cabe aqui uma observação. Esse processo de deslegitimação – inaugurado pela Mani Pulite e levado a efeito, uma década depois, pela força tarefa da Lava Jato – não é legítimo em democracias. É uma intervenção indevida de funcionários do Estado (ou a partir de estamentos corporativos do Estado) no Estado de direito, sem mandato para tal. No limite, viola as leis para fazer justiça.
Da mesma forma, quando o Parlamento italiano, em abril de 1993, recusou parcialmente autorização para que Bettino Craxi fosse processado criminalmente, houve intensa reação da opinião pública. Um dos protestos populares assumiu ares violentos. Uma multidão reunida em frente à residência de Craxi arremessou moedas e pedras quando ele deixou sua casa para atender uma entrevista na televisão (4). Em julho de 1994, novo decreto legislativo, exarado pelo governo do primeiro-ministro Silvio Berlusconi, aboliu a prisão pré-julgamento para categorias específicas de crimes, inclusive para corrupção ativa e passiva. A equipe de procuradores da operação mani pulite ameaçou renunciar coletivamente a seus cargos. Novamente, a reação popular, com vigílias perante as Cortes judiciais milanesas, foi essencial para a rejeição da medida (5).
Esse comportamento que apela para a chantagem (“se for assim vamos renunciar”) também foi adotado pela operação Lava Jato. Qualquer crítica é encarada como uma ameaça dos que estão querendo acabar com a operação para favorecer a corrupção. Aqui já aparece uma estranha aliança de estamentos corporativos do Estado com entidades da sociedade civil que convocam movimentos para defendê-la. Isso aconteceu na Lava Jato.
Na verdade, é ingenuidade pensar que processos criminais eficazes contra figuras poderosas, como autoridades governamentais ou empresários, possam ser conduzidos normalmente, sem reações. Um Judiciário independente, tanto de pressões externas como internas, é condição necessária para suportar ações judiciais da espécie. Entretanto, a opinião pública, como ilustra o exemplo italiano, é também essencial para o êxito da ação judicial.
Aqui abre-se uma porta para o arbítrio. A luta contra a corrupção dos poderosos não pode ser feita, ele avalia, pelos mecanismos normais do Estado de direito. É preciso então adotar medidas de exceção, apoiadas pela opinião pública. Exatamente o que veio a acontecer na operação Lava Jato.
Para Porta e Vannucci, a criação do Conselho Superior da Magistratura (CSM) foi fundamental para reforçar a independência interna da magistratura italiana (6), tornando possível a operação mani pulite. Também foi importante a renovação da magistratura e a própria imagem positiva dos juízes diante da opinião pública, conquistada com duras perdas, principalmente na luta contra a máfia e o terrorismo:
Um tipo diferente de juiz ingressou na magistratura (nas décadas de setenta e oitenta). Assim como a educação de massa abriu o caminho às universidades para as classes baixas, o ciclo de protesto do final da década de sessenta influenciou as atitudes políticas de uma geração. No sistema judicial, os assim chamados “pretori d’assalto” (“juízes de ataque”, i.e., juízes que tomam uma postura ativa, usando a lei para reduzir a injustiça social) tomam frequentemente posturas antigovernamentais em matéria de trabalho e de Direito Ambiental. Ao mesmo tempo, especialmente na luta contra o terrorismo e a Máfia, a magistratura exercita um poder pró-ativo, em substituição a um poder político impotente. A coragem de muitos juízes, que ocasionalmente pagaram com suas vidas para a defesa da democracia italiana, era contrastado com as conspirações de uma classe política dividida e a magistratura ganhou uma espécie de legitimidade direta da opinião pública. No final dos anos oitenta e na década de noventa, havia ainda um enfraquecimento na atitude de cumplicidade de alguns juízes com as forças políticas e que havia retardado a ação judicial. Uma nova geração dos assim chamados “giudici ragazzini” (jovens juízes), sem qualquer senso de deferência em relação ao poder político (e, ao invés, consciente do nível de aliança entre os políticos e o crime organizado), iniciou uma série de investigações sobre a má-conduta administrativa e política (7).
A independência judiciária, interna e externa, a progressiva deslegitimação de um sistema político corrupto e a maior legitimação da magistratura em relação aos políticos profissionais foram, portanto, as condições que tornaram possível o círculo virtuoso gerado pela operação mani pulite.
Em Estados democráticos de direito a magistratura não pode extrair legitimidade diretamente da opinião pública. Isso costuma ocorrer em processos revolucionários que quebram a institucionalidade vigente. Há também aqui a aposta na progressiva deslegitimação do sistema político, quer dizer, da política realmente existente.
3 A OPERAÇÃO MANI PULITE
Iniciou-se com a prisão de Mário Chiesa, que devia seu cargo administrativo ao Partido Socialista Italiano e foi preso com propina no bolso, cerca de sete mil liras (US$ 4.000,00), que teria recebido de uma companhia de limpeza. Posteriormente, mais de quinze bilhões de liras teriam sido arrestadas em contas bancárias, imóveis e títulos públicos de sua propriedade. Por volta do final de março de 1992, Chiesa, recolhido na prisão de São Vittore de Milão, começou a confessar.
Chiesa exigiria o pagamento de propina em cada contrato celebrado pela instituição filantrópica e a utilizaria para o financiamento de suas ambições políticas e de seu Partido, a fim de manter o cargo junto à instituição filantrópica:
Em substância, para entender as razões pelas quais eu tive de me expor diretamente no esquema de propina, é necessário entender que eu não me mantinha como presidente de uma organização como Trivulzio simplesmente porque eu era um bom técnico ou um bom administrador da área da saúde, mas também porque de certo modo eu era uma força a ser considerada em Milão, tendo um certo número de votos a minha disposição. Para adquirir o que atingiria no final sete mil votos, eu tive, durante minha carreira política, que sustentar o custo de criar e manter uma organização política que pudesse angariar votos por toda Milão (8).
Chiesa, que mantinha relações importantes com o líder do Partido Socialista, Betino Craxi, revelou toda uma trama de relações corruptas na cidade de Milão. Sua colaboração inicial gerou um círculo virtuoso, que levou a novas investigações, com outras prisões e confissões.
Moro insiste, aqui e em outras passagens do presente artigo, na hipótese do “circulo virtuoso” do punitivismo. Delações gerando novas investigações, que levam a outras prisões, que resultam em novas delações. A dinâmica é a mesma do corte de cabeças do Terror revolucionário francês: cada cabeça rolada pede mais uma cabeça.
A estratégia de ação adotada pelos magistrados incentivava os investigados a colaborar com a Justiça:
A estratégia de investigação adotada desde o início do inquérito submetia os suspeitos à pressão de tomar decisão quanto a confessar, espalhando a suspeita de que outros já teriam confessado e levantando a perspectiva de permanência na prisão pelo menos pelo período da custódia preventiva no caso da manutenção do silêncio ou, vice-versa, de soltura imediata no caso de uma confissão (uma situação análoga do arquétipo do famoso “dilema do prisioneiro”). Além do mais, havia a disseminação de informações sobre uma corrente de confissões ocorrendo atrás das portas fechadas dos gabinetes dos magistrados. Para um prisioneiro, a confissão pode aparentar ser a decisão mais conveniente quando outros acusados em potencial já confessaram ou quando ele desconhece o que os outros fizeram e for do seu interesse precedê-los. Isolamento na prisão era necessário para prevenir que suspeitos soubessem da confissão de outros: dessa forma, acordos da espécie “eu não vou falar se você também não” não eram mais uma possibilidade (9).
Há quem possa ver com maus olhos tal estratégia de ação e a própria delação premiada. Cabem aqui alguns comentários.
Não se prende com o objetivo de alcançar confissões. Prende-se quando estão presentes os pressupostos de decretação de uma prisão antes do julgamento. Caso isso ocorra, não há qualquer óbice moral em tentar-se obter do investigado ou do acusado uma confissão ou delação premiada, evidentemente sem a utilização de qualquer método interrogatório repudiado pelo Direito. O próprio isolamento do investigado faz-se apenas na medida em que permitido pela lei. O interrogatório em separado, por sua vez, é técnica de investigação que encontra amparo inclusive na legislação pátria (art. 189, Código de Processo Penal).
Aqui Moro dá um triplo mortal carpado para as condições brasileiras. Mas, afinal, ele está narrando a experiência da Mani Pulite ou propondo o que deveria ocorrer no Brasil? A passagem revela a intenção do texto.
Sobre a delação premiada, não se está traindo a pátria ou alguma espécie de “resistência francesa”. Um criminoso que confessa um crime e revela a participação de outros, embora movido por interesses próprios, colabora com a Justiça e com a aplicação das leis de um país. Se as leis forem justas e democráticas, não há como condenar moralmente a delação; é condenável nesse caso o silêncio.
Registre-se que crimes contra a Administração Pública são cometidos às ocultas e, no maioria das vezes, com artifícios complexos, sendo difícil desvelá-los sem a colaboração de um dos participantes. Conforme Piercamillo Davigo, um dos membros da equipe milanesa da operação mani pulite:
A corrupção envolve quem paga e quem recebe. Se eles se calarem, não vamos descobrir, jamais (10).
Usualmente é ainda levantado outro óbice à delação premiada, qual seja, a sua reduzida confiabilidade. Um investigado ou acusado submetido a uma situação de pressão poderia, para livrar-se dela, mentir a respeito do envolvimento de terceiros em crime. Entretanto, cabível aqui não é a condenação do uso da delação premiada, mas sim tomar-se o devido cuidado para se obter a confirmação dos fatos por ela revelados por meio de fontes independentes de prova.
Por certo, a confissão ou delação premiada torna-se uma boa alternativa para o investigado apenas quando este se encontrar em uma situação difícil. De nada adianta esperar ato da espécie se não existem boas provas contra o acusado ou se este não tem motivos para acreditar na eficácia da persecução penal. A prisão pré-julgamento é uma forma de se destacar a seriedade do crime e evidenciar a eficácia da ação judicial, especialmente em sistemas judiciais morosos. Desde que presentes os seus pressupostos, não há óbice moral em submeter o investigado a ela. Roberto Mongini, um dos primeiros a serem presos pela mani pulite, assim se pronunciou a respeito do que teria provocado a sua confissão:
Um Mongini em São Vittore (a prisão milanesa) é algo bastante diferente de um Mongini livre. Por exemplo, comigo na prisão, se os jornais divulgassem que eu estava confessando (como de fato alguns jornais divulgaram, após o primeiro interrogatório quando eu realmente não forneci qualquer informação), talvez alguns empresários que tivessem trabalhado com a SEA (órgão do qual Mongini era vice-presidente) ficassem com medo e corressem aos procuradores públicos antes que os ‘”carabineri'”corressem atrás deles (11).
Aliás, a reduzida incidência de delações premiadas na prática judicial brasileira talvez tenha como uma de suas causas a relativa ineficiência da Justiça criminal. Não há motivo para o investigado confessar e tentar obter algum prêmio em decorrência disso se há poucas perspectivas de que será submetido no presente ou no futuro próximo, caso não confesse, a uma ação judicial eficaz.
É uma defesa da tática que seria depois adotada pela Lava Jato. Prisão antes do julgamento, para deixar o investigado “numa situação difícil” e forçar a sua delação. Novamente Moro faz um paralelo com a situação brasileira reclamando que aqui não havia (na época em que escreveu) o uso mais frequente das delações premiadas.
Os responsáveis pela operação mani pulite (12) ainda fizeram largo uso da imprensa. Com efeito:
Para o desgosto dos líderes do PSI, que, por certo, nunca pararam de manipular a imprensa, a investigação da “mani pulite” vazava como uma peneira. Tão logo alguém era preso, detalhes de sua confissão eram veiculados no “L’Expresso”, no “La Republica” e outros jornais e revistas simpatizantes. Apesar de não existir nenhuma sugestão de que algum dos procuradores mais envolvidos com a investigação teria deliberadamente alimentado a imprensa com informações, os vazamentos serviram a um propósito útil. O constante fluxo de revelações manteve o interesse do público elevado e os líderes partidários na defensiva. Craxi, especialmente, não estava acostumado a ficar na posição humilhante de ter constantemente de responder a acusações e de ter a sua agenda política definida por outros (13).
A publicidade conferida às investigações teve o efeito salutar de alertar os investigados em potencial sobre o aumento da massa de informações nas mãos dos magistrados, favorecendo novas confissões e colaborações. Mais importante: garantiu o apoio da opinião pública às ações judiciais, impedindo que as figuras públicas investigadas obstruíssem o trabalho dos magistrados, o que, como visto, foi de fato tentado.
Esta, talvez, seja a passagem mais importante. Uma operação desse tipo (Mani Pulite e, depois, Lava Jato) só pode funcionar se houver vazamentos sistemáticos, como tática para ganhar a opinião pública e coagir juízes que não adotem uma orientação punitivista.
Há sempre o risco de lesão indevida à honra do investigado ou acusado. Cabe aqui, porém, o cuidado na desvelação de fatos relativos à investigação, e não a proibição abstrata de divulgação, pois a publicidade tem objetivos legítimos e que não podem ser alcançados por outros meios.
Atenção aqui! Sem os vazamentos nada feito. Os vazamentos, que são ilegais, devem ser praticados assim mesmo, pois os objetivos das cruzadas de limpeza “não podem ser alcançados por outros meios”. As ligas da justiça que dirigem essas operações devem violar a lei para fazer justiça.
As prisões, confissões e a publicidade conferida às informações obtidas geraram um círculo virtuoso, consistindo na única explicação possível para a magnitude dos resultados obtidos pela operação mani pulite.
Novamente Moro insiste no tal “círculo virtuoso” do punitivismo.
A título exemplificativo e sem adentrar o mérito das acusações, é oportuno destacar o ocorrido com um dos principais investigados ou talvez o principal: Bettino Craxi. Líder do PSI e ex-primeiro-ministro, foi um dos principais alvos da operação mãos limpas. Craxi, já ameaçado pelas investigações, reconheceu cinicamente a prática disseminada das doações partidárias ilegais em famoso discurso no Parlamento italiano, em 3/7/1992:
Os partidos políticos têm sido o corpo e a alma das estruturas democráticas… Infelizmente, é usualmente difícil identificar, prevenir e remover áreas de infecção na vida dos partidos… Mais, abaixo da cobertura do financiamento irregular dos partidos casos de corrupção e extorsão floresceram e tornaram-se interligados… O que é necessário dizer e que, de todo modo, todo mundo sabe, é que a maior parte do financiamento da política é irregular ou ilegal. Os partidos e aqueles que dependem da máquina partidária (grande, média ou pequena), de jornais, de propaganda, atividades associativas ou promocionais… têm recorrido a recursos adicionais irregulares. Se a maior parte disso deve ser considerada pura e simplesmente criminosa, então a maior parte do sistema político é um sistema criminoso. Eu não acredito que exista alguém nessa Casa e que seja responsável por uma grande organização que possa ficar em pé e negar o que eu digo. Cedo ou tarde os fatos farão dele um mentiroso (14).
Em dezembro de 1992, Craxi recebeu seu primeiro avviso di garanzia, um documento de dezoito páginas, no qual era acusado de corrupção, extorsão e violação da lei reguladora do financiamento de campanhas. A acusação tinha por base, entre outras provas, a confissão de Salvatore Ligresti, suposto amigo pessoal de Craxi preso em julho de 1992, de que o grupo empresarial de sua propriedade teria pago aproximadamente US$ 500.000,00 desde 1985 ao PSI para ingressar e manter-se em grupo de empresários amigos do PSI.
Na segunda semana de janeiro de 1993, Craxi recebeu o segundo avviso di garanzia, com acusações de que a propina teria também como beneficiário o próprio Craxi, e não só o PSI. Os pagamentos seriam feitos a Silvano Larini, que seria amigo próximo de Craxi. Larini e Filippo Panseca seriam os proprietários da empresa da qual Craxi alugaria suas mansões opulentas em Como e Hammamet. Larini entregou-se à polícia em fevereiro de 1993 e admitiu que agiu como intermediário entre Craxi e a comunidade empresarial de Milão para pagamento de propina. Craxi ainda recebeu novos avviso de garanzia antes de renunciar ao posto de líder do PSI em fevereiro de 1993.
Também viu seu nome envolvido no escândalo da Enimont. A Enimont era empresa química formada por joint venture da ENI (Ente Nazionale Idrocarburi), a empresa petrolífera estatal italiana, e a Montedision, empresa química subsidiária do grupo Ferruzi (considerado o segundo maior da Itália após a FIAT). Pelos termos do acordo, o grupo privado não poderia possuir mais do que 40% das ações. No entanto, Raul Gardini, líder do grupo Ferruzi, quebrou o pacto e tentou obter agressivamente o controle da Enimont, encontrando resistência política. Em novembro de 1990, atendendo a pedido da Enimont, foram suspensas judicialmente todas as negociações de ações da empresa e nomeado como interventor pessoa ligada a Craxi. Bloqueada em suas aspirações, a Montedision concordou em vender ao Governo sua parte no negócio por aproximadamente dois bilhões de dólares. O preço, superestimado (cada ação, com o valor de 1,374 lira, foi adquirida pela ENI por
1,540 lira), tinha uma razão de ser, o pagamento de cerca de cem milhões de dólares a vários líderes políticos, dentre eles Craxi. A propina foi paga por Gardini com o auxílio de Sergio Cusani, consultor financeiro próximo a Craxi e outros políticos. Em julho de 1993, Gardini, ciente de que a fraude estava para ser revelada pela operação mani pulite, suicidou-se. Cusani foi preso também em julho e, em seu julgamento, foram ouvidos como testemunhas vários políticos que teriam recebido propina. Alguns deles, como Carlos Vizzini, Giorgio Malfa e Cláudio Martelli, este último ex-ministro da Justiça, admitiram o fato, ou seja, o recebimento da propina.
A operação mani pulite também revelou que a ENI funcionaria como uma fonte de financiamento ilegal para os partidos. Florio Fiorini e Gabriele Cagliari, diretor financeiro e presidente da empresa, respectivamente, confessaram, após suas prisões em 1993, que a gigante estatal teria efetuado pagamentos mensais aos principais partidos políticos durante anos. Cagliari foi outro dos presos que, após admitir o pagamento da propina (cerca de dezoito milhões de dólares), cometeu suicídio na prisão.
Bettino Craxi, diante das acusações e posteriores condenações, auto-exilou-se, em 1994, na Tunísia, onde veio a falecer no ano 2000.
Outras figuras políticas italianas igualmente importantes sofreram as ações da mani pulite. De particular relevo é a figura de Giulio Andreotti, líder da Democracia Cristã (DC) e ex- primeiro-ministro, processado pela Procuradoria de Palermo em 1993, por associação à máfia. Salvo Lima, que era representante da DC na Sicília e pessoa de confiança de Andreotti, possuía ligações comprovadas com a máfia, sendo improvável que Andreotti desconhecesse tais fatos. Salvo Lima inclusive foi assassinado pela organização criminosa, no que foi interpretado como uma punição pelo seu fracasso na proteção jurídica e política da entidade após a condenação de vários chefes da máfia no maxi-processo conduzido pelo magistrado Giovanni Falcone. Outrossim, mafiosos “arrependidos” e colaboradores da Justiça, como Tommaso Buscetta, revelaram encontros entre o ex-primeiro ministro e mafiosos, inclusive com o chefe Toto Riina. Andreotti, porém, sempre negou as acusações e afirmava que estaria sendo vítima de retaliação pela máfia em virtude de suas ações políticas contra ela. O fato é que Andreotti, seja ou não culpado, foi, mais recentemente e após várias decisões e apelos, absolvido das acusações por falta de provas.
Pois é… E se ele de fato fosse inocente? Isso não deve importar. É um efeito colateral da guerra por um bem maior: limpar o mundo.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Um acontecimento da magnitude da operação mani pulite tem por evidente seus admiradores, mas também seus críticos.
É inegável, porém, que constituiu uma das mais exitosas cruzadas judiciárias contra a corrupção política e administrativa. Esta havia transformado a Itália em, para servirmo-nos de expressão utilizada por Antonio Di Pietro, uma democrazia venduta (“democracia vendida”) (15).
Aqui é o próprio Moro que usa a palavra “cruzadas” para se referir à operação Mani Pulite e congêneres.
A operação mani pulite ainda serviu para interromper a curva ascendente da corrupção e de seus custos. Giuseppe Turani, jornalista financeiro italiano, estimou que, na década de 1980-1990, a corrupção teria custado à Itália um trilhão de dólares (16). Superestimados ou não esses números, há registro de que os custos de obras na Itália seriam mais elevados em comparação com os de outros países:
No que se refere a contratos públicos em Milão, em relação aos quais as investigações judiciais teriam determinado a quantia paga em propina, foi notado que a linha de metrô milanesa custaria 1000 bilhões (de liras) por quilômetro e levaria 12 anos para estar completa; em Zurique, 50 bilhões e sete anos. O Teatro Piccolo já custou 75 bilhões e deve estar pronto em nove anos; na Grã-Bretanha, o novo teatro de Leeds custou 28 bilhões e foi construído em dois anos e três meses. A reestruturação do estádio de San Siro custou 140 bilhões, o estádio olímpico de Barcelona, 45 bilhões. A linha número três da ferrovia metropolitana de Milão custou 129 bilhões por quilômetro; a linha subterrânea de Hamburgo custou 45 bilhões (17).
Há ainda registro de que, após a operação mani pulite, vários contratos públicos teriam sido concedidos com preços 50% menores do que nos anos anteriores (18).
A ação judicial isolada tem como efeito apenas incrementar os riscos da corrupção, evidenciando as consequências caso ela seja descoberta. Uma ação judicial bastante eficaz, como foi o caso, pode no máximo interromper o ciclo ascendente da corrupção.
Percebe-se aqui a insinuação de que, se a ação judicial, por mais eficaz que seja, não pode resolver completamente o problema, então a saída deve ser… chegar ao poder político para completar a obra. Isso não está dito, porém fica meio implícito. A história de Sérgio Moro parece confirmar essa interpretação. Se a Lava Jato era tão importante, por que ele abandonou a magistratura (e a chefia de fato da operação) para virar político?
Não obstante, não é crível que, por si só, possa eliminá-la, especialmente se não forem atacadas as suas causas estruturais. No caso italiano:
A influência do crime organizado, o clientelismo, a lentidão exasperada, atrasos injustificados, a complexidade normativa e o processo pantanoso – em outras palavras, os componentes da ineficiência estrutural da atividade pública, continuam a estar presentes. Reformas mais profundas são necessárias para prevenir, assim que a tempestade passar, que o mercado da corrupção se expanda novamente (19).
Não deixa ainda de ser um símbolo das limitações da operação mani pulite o cenário atual da política italiana, com o cargo de primeiro-ministro sendo ocupado por Silvio Berlusconi. Este, grande empresário da mídia local, ingressou na política em decorrência do vácuo de lideranças provocado pela ação judicial e mediante a constituição de um novo partido político, a Forza Itália. Não obstante, o próprio Berlusconi figura desde 1994 entre os investigados pelos procuradores milaneses por suspeita de corrupção de agentes fiscais. Além disso, era amigo próximo de Craxi (este foi padrinho do segundo casamento de Berlusconi). Tendo ou não Berlusconi alguma responsabilidade criminal, não deixa de ser um paradoxo que ele tenha atingido tal posição na Itália mesmo após a operação mani pulite.
Não é um paradoxo. É uma consequência da destruição da política.
Talvez a lição mais importante de todo o episódio seja a de que a ação judicial contra a corrupção só se mostra eficaz com o apoio da democracia. É esta quem define os limites e as possibilidades da ação judicial. Enquanto ela contar com o apoio da opinião pública, tem condições de avançar e apresentar bons resultados. Se isso não ocorrer, dificilmente encontrará êxito. Por certo, a opinião pública favorável também demanda que a ação judicial alcance bons resultados. Somente investigações e ações exitosas podem angariá-la. Daí também o risco de divulgação prematura de informações acerca de investigações criminais. Caso as suspeitas não se confirmem, a credibilidade do órgão judicial pode ser abalada.
Além disso, a ação judicial não pode substituir a democracia no combate à corrupção. É a opinião pública esclarecida que pode, pelos meios institucionais próprios, atacar as causas estruturais da corrupção. Ademais, a punição judicial de agentes públicos corruptos é sempre difícil, se não por outros motivos, então pela carga de prova exigida para alcançar a condenação em processo criminal. Nessa perspectiva, a opinião pública pode constituir um salutar substitutivo, tendo condições melhores de impor alguma espécie de punição a agentes públicos corruptos, condenando-os ao ostracismo.
De todo modo, é impossível não reconhecer o brilho, com suas limitações, da operação mani pulite, não havendo registro de algo similar em outros países, mesmo no Brasil.
No Brasil, encontram-se presentes várias das condições institucionais necessárias para a realização de ação judicial semelhante. Assim como na Itália, a classe política não goza de grande prestígio junto à população, sendo grande a frustração pelas promessas não-cumpridas após a restauração democrática. Por outro lado, a magistratura e o Ministério Público brasileiros gozam de significativa independência formal frente ao poder político. Os juízes e os procuradores da República ingressam na carreira mediante concurso público, são vitalícios e não podem ser removidos do cargo contra a sua vontade. O destaque negativo é o acesso aos órgãos superiores, mais dependentes de fatores políticos. Destaque também negativo merece a concessão, por lei, de foro especial a determinadas autoridades públicas, como deputados e ministros, a pretexto de protegê-los durante o exercício do cargo. O pretexto não parece coerente com as modificações decorrentes da controvertida Lei n. 10.628/2002, que estenderam o privilégio para período posterior ao exercício do cargo.
Neste parágrafo Moro propõe que se faça no Brasil uma operação semelhante à Mani Pulite, o que veio de fato a acontecer.
De todo modo, o principal problema parece ser ainda uma questão de mentalidade consubstanciada em uma prática judicial pouco rigorosa contra a corrupção, prática que permite tratar com maior rigor processual um pequeno traficante de entorpecente (por exemplo, as denominadas “mulas”) do que qualquer acusado por crime de “colarinho branco”, mesmo aquele responsável por danos milionários à sociedade. A presunção de inocência, no mais das vezes invocada como óbice a prisões pré-julgamento, não é absoluta, constituindo apenas instrumento pragmático destinado a prevenir a prisão de inocentes. Vencida a carga probatória necessária para a demonstração da culpa, aqui, sim, cabendo rigor na avaliação, não deveria existir maior óbice moral para a decretação da prisão, especialmente em casos de grande magnitude e nos quais não tenha havido a devolução do dinheiro público, máxime em país de recursos escassos.
Mais grave ainda, no Brasil, a prisão pós-julgamento foi também tornada exceção, para ela exigindo-se, por construção jurisprudencial, os mesmos pressupostos da prisão pré-julgamento. Com efeito, a regra tornou-se o apelo em liberdade. Tal construção representa um excesso liberal com uma pitada de ingenuidade. É previsível que aquele já condenado a sentenças longas seja tentado a furtar-se ao cumprimento da lei penal, especialmente quando, como no Brasil, não é exigida a sua presença no julgamento (salvo nos processos submetidos ao júri). Jogos semânticos à parte, não há como equiparar a situação processual do acusado antes do julgamento com aquela após a condenação, ainda que esta não seja definitiva.
Moro considera que as restrições legais à prisão são um “excesso liberal”. Ocorre que, sem tais restrições, caminha-se a passos largos para a instalação de um Estado policial (ou seja, um Estado i-liberal). Com efeito, o projeto de Moro veio a se revelar um projeto político i-liberal.
A legislação federal norte-americana, que ainda é um paradigma liberal democrático apesar dos recentes abusos da guerra contra o terrorismo, traça, por exemplo, de maneira bastante clara, a diferença entre a situação processual do acusado antes e depois da sentença condenatória, ainda que esta não seja definitiva. Com efeito, a prisão antes do julgamento demanda a demonstração de que nenhuma combinação de condições irá razoavelmente assegurar a presença do acusado no julgamento ou a segurança de outra pessoa ou da comunidade (Título 18, Parte II, Capítulo 207, Seção 3142, do US Code Collectiorí). Aqui a carga de demonstração se impõe em favor do acusado. Já após o julgamento e ainda que pendente apelo, a prisão deve ser ordenada, salvo se houver clara e convincente evidência de que a pessoa não irá fugir ou colocar em perigo a segurança de outra pessoa ou da comunidade. Aqui a carga de demonstração se impõe contra o acusado. Além disso, segundo avaliação da autoridade judicial, o apelo não deve ter objetivo meramente protelatório e deve levantar uma questão substancial de direito ou de fato que possa resultar em absolvição, novo julgamento ou em sentença que não inclua prisão (Título 18, Parte II, Capítulo 207, Seção 3143, do US Code Collectiorí).
Registre-se que a construção excessivamente liberal brasileira não é um resultado necessário do princípio da presunção de inocência previsto no inc. LVII do art. 5° da Constituição Federal, pois este comporta várias alternativas interpretativas.
Novamente a crítica ao nosso aparato legal como “excessivamente liberal”. Estranha formulação que impõe limites ao liberalismo.
No Brasil (assim como de certa forma na maioria dos outros países) e com raras, mas — admita-se — crescentes exceções, a eficácia do sistema judicial contra os crimes de “colarinho branco”, dentre os quais o de corrupção, deixa bastante a desejar (20). O fato não escapa à percepção popular, sendo um dos motivadores das propostas de Reforma do Judiciário (cuja eficácia, porém, para reverter o quadro é, no mínimo, duvidosa).
A gravidade da constatação é que a corrupção tende a espalhar-se enquanto não encontrar barreiras eficazes. O político corrupto, por exemplo, tem vantagens competitivas no mercado político em relação ao honesto, por poder contar com recursos que este não tem. Da mesma forma, um ambiente viciado tende a reduzir os custos morais da corrupção, uma vez que o corrupto costuma enxergar o seu comportamento como um padrão e não a exceção.
O mais grave ainda é que a corrupção disseminada não coloca em xeque apenas a legitimidade do regime democrático (o que, por si só, já é bastante grave), mas também a do sistema judicial. Repetindo uma última vez as palavras de Porta e Vannucci:
De fato, escândalos políticos não colocam em questão apenas a legitimidade da classe política; eles também têm um impacto na legitimidade daqueles encarregados de investigá-los: a magistratura. Em alguns casos, de fato, a descoberta de ilegalidade disseminada provoca críticas ao sistema judicial no sentido de que este estaria sendo inadequado para combater a corrupção (21).
Daí, por evidente, o valor, com seus erros e acertos, do exemplo representado pela operação mani pulite.
Uma crítica à falta de espirito punitivista do nosso sistema judicial. Daí se pode depreender que o objetivo mais importante, para Moro, é combater a corrupção. É a honestidade como valor universal acima, inclusive, da democracia. Por isso a desvalorização da política como algo completamente conspurcado pela corrupção. É uma solução por fora da política e que, assim, também dispensa a democracia.
NOTAS BIBLIOGRÁFICAS
1 PORTA, Donatella della; VANNUCCI, Alberto. Corrupt exchanges : actors, resources, and mechanisms of political corruption. New York: Aldine de Gruyter, 1999. p. 266-269.
2 PORTA , op. cit., p. 149-151.
3 GILBERT, Mark. The italian revolution: the end of politics, Italian style? Colorado: Westview Press, 1995. p. 138-140.
4 GILBERT, op.cit., p. 149-151.
5 JAMIESON, Alison. The antimafia: Italy’s fight against organized crime. New York: St. Martin’s Press, 2000. p. 66; GILBERT, op.cit., p. 183.
6 PORTA, op. cit., p. 140-141. Faça-se o necessário esclarecimento de que, na Itália, os juízes e os procuradores públicos (os membros do MP) compõem uma mesma carreira, constituindo a magistratura italiana.
7 Idem, op. cit., p. 141-142. É oportuno dentre todos destacar os magistrados anti- mafia, Giovanni Falcone e Paolo Borselino, que foram assassinados em maio e em julho de 1992, respectivamente, o que provocou verdadeira comoção nacional.
8 Idem, p. 70-71.
9 Idem, p. 267-268.
10 SIMON, Pedro (coord.). Operação “mãos limpas”: audiência pública com magis-trados italianos. Brasília: Senado Federal, 1998. p. 27.
11 PORTA, op. cit,. p. 268.
12 A equipe milanesa era formada por Antonio Di Pietro, Gherardo Colombo e Piercamillo Davigo (GILBERT, op. cit.,1995. p. 123.)
13 GILBERT, op. cit., p. 134-135.
14 PORTA, op. cit., p. 1-2.
15 GILBERT, op. cit., p.188.
16 Idem, p. 130.
17 PORTA, op. cit., p. 204.
18 Idem.
19 Idem, p. 269.
20 Por todos, o instigante trabalho de CASTILHO, 2001, que, mediante pesquisa sociológica, traça quadro desalentador da eficácia da chamada Lei do “Colarinho Branco” (Lei n. 7.492/86).
21 PORTA, op. cit., p.139.
BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR
CACIAGLI, Mario. Clientelismo, corrupción y criminalidad organizada: evidencias empíricas y propuestas teóricas a partir de los casos italianos. Madrid: Centro de Estudios
Constitucionales, 1996.
CASTILHO, Ela Wiecko V. de. O controle penal nos crimes contra o sistema financeiro nacional: Lei n. 7.492, de 16/6/86. Belo Horizonte: Del Rey, 2001.
FALCONE, Gionvanni. Cosa Nostra: o juiz e os “homens de honra”. Trad. de Maria Alexandre. Rio de Janeiro: Bertrand, 1993.
Artigo recebido em 11/5/2004.
ABSTRACT
The author outlines brief comments on the “clean hands” operation, in Italy, one of the most impressive judicial crusades against political and administrative corruption.
He discusses the causes that sped up the fall of the Italian corruption system and made the referred operation possible — among them the increasing costs, added to economically difficult circumstances — and the adopted strategy for its development.
He highlights the relevance of democracy for the success of legal actions against corruption and its structural causes. He observes that there are various of the institutional conditions for the taking of a similar action in Brazil, where the effectiveness of the judicial system against white collar crimes, especially corruption, is fairly uncertain. This fact does not go unnoticed by the popular eye, being one of the motivators for the Judiciary reform proposals.
KEYWORDS – “Clean Hands” Operation; Italy; corruption; pre-trial detention; post-trial detention; Law n. 10,628/2002; Law n. 7,492/86; legal action; bribe.
Sergio Fernando Moro é Juiz Federal da Vara Federal Criminal de Curitiba/PR.
UMA NOTA FINAL
O que Sérgio Moro não disse no artigo:
Que uma parte dos promotores da Mani Pulite viraram atores políticos (como ele, aliás, repetiria 14 anos depois, largando a magistratura para assumir o cargo político de auxiliar de um governante i-liberal, um populista-autoritário de extrema-direita, um oportunista eleitoreiro, também corrupto e ligado ao que de pior poderia haver no mundo do crime: as milícias).
Que a Itália não melhorou de posição, depois de todo carnaval provocado pela Mani Pulite, nos rankings internacionais de percepção da corrupção (como o da Transparência Internacional).
Que os países menos corruptos são os mais democráticos e que os países mais corruptos são os menos democráticos. E que nunca houve, nos países menos corruptos (e mais democráticos) nada parecido como uma operação Mani Pulite.
Que todo esse movimento antipolítico, que destruiu os partidos existentes na Itália, acabou contribuindo para colocar no poder um político corrupto como Silvio Berlusconi (ou melhor, ele registra sim esse fato, mas o qualifica como um paradoxo e não como uma consequência).
Mas assim como a Mani Pulite deu partida a um trem expresso em direção à estação Berlusconi, a Lava Jato também tinha seu Napoleão esperando na próxima esquina: Jair Bolsonaro.
UM RESUMO DO PONTO DE VISTA DA CRÍTICA ACIMA
1 – Os países mais democráticos (em qualquer ranking internacional de democracia) são os menos corruptos. E os países mais autocráticos (idem) são os mais corruptos. Consulte-se Fredom House, The Economist Intelligence Unit e o V-Dem e compare-se com a Transparência Internacional.
2 – Nos países onde temos menos corrupção na política (os mais democráticos, como a Nova Zelândia) nunca houve nada parecido com operações como a Mani Pulite (ou a Lava Jato).
3 – Depois de todo carnaval antipolítico punitivista da Mani Pulite (na Itália dos anos 90, com a destruição dos partidos existentes) Berlusconi surgiu (era aquele Napoleão esperando os jacobinos na próxima esquina). E a Itália nunca entrou na lista dos países menos corruptos.
4 – Todas as cruzadas de limpeza (étnicas, éticas, nacionais, religiosas) ocorridas ao longo da história resultaram em menos democracia e não em mais democracia. A ideia de pureza, herdada do restauracionismo robespierriano da terra-arrasada é, em si, autoritária.
5 – As raízes filosóficas (metafísicas) de todos as teorias da corrupção podem ser encontrados na teoria política totalitária e racista de Platão, para a qual a democracia era o penúltimo tipo de regime mais corrupto (aristocracia militar => oligarquia => democracia => tirania).
6 – A política da terra-arrasada (a lousa em branco que queria Platão, para inscrever suas doutrinas nas tenras mentes infantis) é uma antipolítica. Não há solução sem política. E não há saída fora da democracia (que é suja, curva e imperfeita mesmo).
7 – A democracia não é um regime sem corrupção e sim o regime sem um senhor. Ela é o regime para você ser cidadão e não súdito cavalgado por um senhor, mesmo que este senhor seja honesto.
8 – A honestidade, conquanto desejável, não pode ser colocada como um valor universal, acima da democracia. Os autocratas espartanos, verdadeiros varões de Plutarco, eram honestíssimos. O ditador Salazar era honesto. O golpista-militar Castelo Branco era honesto.