Não é todo o jornalismo. Apenas uma parte. Por azar, a parte televisiva mais relevante.
Depois que a esquerda hegemônica no Brasil passou a defender (ou, pelo menos, a não condenar) Putin e a culpar os EUA pelo que acontece na Ucrânia, houve uma declinação na cobertura jornalística televisiva sobre a invasão militar de Putin. O ditador e os seus crimes de guerra foram cedendo lugar à crítica aos Estados Unidos, desencavando fatos de meio século atrás. A impressão que fica é que Biden e a OTAN são os verdadeiros culpados.
Pode-se dizer que a narrativa de Putin começou a ser replicada por muitos jornalistas brasileiros de esquerda (alguns disfarçados).
Eis os principais pontos dessa narrativa:
1 – O Biden é fraco.
2 – O Biden é famoso por cometer gafes.
3 – O Biden está defendendo a Ucrânia por motivos eleitorais.
4 – O Biden fecha os olhos para os neonazistas que foram incorporados ao exército da Ucrânia.
5 – O Biden ataca Putin irresponsavelmente inviabilizando um acordo de paz.
6 – O Biden é hipócrita. Ataca a Rússia por bombardear a Ucrânia, mas não ataca a Arábia Saudita quando bombardeia o Iêmen.
7 – O Biden ficou insistindo durante semanas que a Rússia invadiria a Ucrânia porque, na verdade, queria que isso acontecesse.
8 – O Biden representa um governo intervencionista e agressor que deu golpes na América Latina e no mundo todo para mudar regimes e agora faz o mesmo com a Rússia.
9 – O Biden representa um governo que invadiu militarmente ou bombardeou a Coréia, o Vietnam, o Afeganistão, o Iraque e a Líbia, desrespeitando a soberania dessas nações.
10 – O Biden representa um governo que interviu na Sérvia em favor de separatistas nos anos 90 e agora, de modo incoerente, não agiu a favor dos separatistas que querem a independencia de Donbass.
11 – O Biden é o verdadeiro chefe da Otan, que avançou sobre as áreas da influência da Rússia causando com isso a natural reação de Putin e a guerra.
12 – Conclusão: o Biden e os EUA são os grandes responsáveis pelo que está acontecendo na Ucrânia.
Não fica nisso, entretanto. Para justificar a posição de neutralidade do Brasil ao não apoiar as sanções à ditadura Russa, muitos jornalistas convocam acadêmicos (de esquerda) e diplomatas (fiéis do realismo político) para corroborarem suas versões, na verdade, para sulcar interpretações. E aí todos dizem de boca cheia: “Está certo, sanções nunca fizeram parte da tradição diplomática brasileira” – como se isso fosse alguma coisa excelente. Parte dessa “tradição” foi criada em períodos ditatoriais (na época da ditadura militar, contra os Estados Unidos) e, outra parte, foi gestada em regimes democráticos eleitorais flaweds. Sim, o Brasil nunca foi uma democracia liberal. Do ponto de vista da democracia liberal, toda essa “tradição” não vale dois traques de gato. Porque nunca julgou relevante, para suas análises, a diferença entre democracia e ditadura.
Qual foi a democracia liberal que os EUA invadiram ou bombardearam? Essa pergunta não cabe porque o valor não é a democracia e o Estado de direito e sim o regime de fato existente, não importando para nada que seja uma ditadura. Ora, para a democracia o Estado-nação não é um valor e sim uma contingência imposta pela guerra (a “paz” de Westfalia).
Em especial os acadêmicos convidados pela TV para comentar a guerra são particularmente insidiosos. Antes do final de fevereiro de 2022, viviam criticando Biden por avisar que Putin ia invadir a Ucrânia. Quiseram desacreditá-lo. Erraram! Dias depois, Putin invadiu. Agora criticam Biden por provocar Putin inviabilizando a paz. Como se Putin, desejoso pela paz, fosse abrir mão disso por que Biden o chamou, com razão, de assassino e carniceiro. Entende-se. Eles são de esquerda. Parecem que estão em guerra com Biden – o representante máximo do imperalismo norte-americano. Claro que há excessões, como o Carlos Gustavo Poggio.
Como se sabe, a maioria dos petistas (a esquerda realmente existente, hegemônica no Brasil) apoia Putin (ou se recusa a condená-lo porque acha que o líder russo é um inimigo do imperialismo norte-americano, não se importando com o fato de que a Rússia é uma ditadura).
Recentemente (no dia 25/03/2022) a OEA aprovou uma resolução sobre a Ucrânia que pede o fim de “atos que podem constituir crimes de guerra” e pede a retirada “imediata” de todas as forças russas do país. O Brasil de Bolsonaro não assinou a resolução. Se o presidente fosse Lula, também não assinaria.
Está clara a posição. A verdadeira guerra está no passado, antes da queda do muro de Berlim. É a guerra contra o imperalismo norte-americano, fase atual do capitalismo (atual aqui significa: na época de Lenin).
Nesse desvio a esquerda se encontra com a extrema-direita. Pedro Dória, em O Globo de 25/03/2022 chegou a registrar:
“É inacreditável que, hoje, quem lê os principais sites da esquerda brasileira encontrará a mesmas teses sobre o conflito entre Rússia e Ucrânia que estão nos sites da extrema direita americana ou mesmo nos programas mais radicais da Fox News”.
É claro que essa parte do jornalismo parasitada pela esquerda não consegue ver que a guerra de Putin contra a Ucrânia não é contra a Ucrânia e sim contra todo e qualquer regime democrático liberal.
Com efeito, Sergey Lavrov (que pertence ao inner circle de Putin) escreveu na semana passada.
“This is not about Ukraine at all, but the world order. The current crisis is a fateful, epoch-making moment in modern history. It reflects the battle over what the world order will look like”.
Mas essa parte do nosso jornalismo não quer ver nada disso.
A coisa toda está ficando ridícula. Ontem, em um conhecido jornal televisivo, um jornalista chegou a falar que os Estados Unidos depuseram e mataram os governantes do Iraque e da Líbia. Em seguida, viu que pegou muito mal e corrigiu: “não, não mataram, mas depuseram”. Parecia surtado.
Aí outro jornalista disse que os judeus em Odessa foram mortos pelos nazistas de Hitler com a ajuda dos neonazistas ucranianos. Em seguida, ao se dar conta de que o Batalhão Azov não podia ter existido em 1941, se corrigiu: “não, não, foram os nazistas mesmo”.
Isso depois de magnificar a importância do Batalhão Azov (sem dizer que esse batalhão reune uma minoria extrema de 1 mil combatentes em 300 mil efetivos do exército ucraniano).
É inacreditável que a guerra de agressão de Putin contra a Ucrânia esteja servindo de pretexto para certo jornalismo abrir uma guerra ideológica contra os EUA. Mais inacreditável ainda é que esse jornalismo esteja seguindo o script de Putin.
Um veículo de comunicação profissional deveria separar jornalismo de militância ideológica. Do contrário pode acabar como uma Fox News (mesmo que com sinal trocado ou de cabeça para baixo).