Meu amigo Nilton Lessa diz que a esquerda pega você pelo que você tem de melhor (o desejo por justiça social, menos desigualdade e menos discriminação) enquanto que a direita (no caso, a extrema-direita, que é a direita realmente existente nos dias que correm) pega você pelo que você tem de pior (a raiva, o ressentimento, o desejo de revanche e a vontade de vingança por viver na situação em que vive – que considera injusta – e por ninguém levar em consideração o que você sente ou pensa).
Para criar um novo mundo mais justo, com menos desigualdade, um mundo sem exploração, opressão e dominação e sem discriminação, a esquerda diz que você deve se organizar e lutar contra as causas dessas mazelas e contra os responsáveis por elas.
A causa principal, para a esquerda, é a sociedade de classes e, no caso atual, um modo de produção que gera explorados e exploradores, oprimidos e opressores, dominados e dominadores: o capitalismo. Ou então um modo de se comportar socialmente, derivado, em última instância, da existência de classes, que gera discriminações, que são estruturais nas sociedades desigualitárias, oriundas do patriarcado e que surge quando diferenças são transformadas em separações (de gênero, orientação sexual, raça, etnia ou cor, idade, origem e nacionalidade, aparência ou condição física ou psíquica, situação sócio-econômica, religião ou credo etc.).
A esquerda pensa que só pode haver verdadeira liberdade se houver um patamar mínimo de igualdade. E que só pode haver plena igualdade se houver o reconhecimento – e a afirmação – da diferença (e a isso se chama atualmente política identitária).
Os responsáveis por essas mazelas, para a esquerda, são os que querem manter desigualdades e discriminações porque delas se aproveitam para reproduzir seu modo de vida. Trata-se, portanto, de mover uma luta contra esses agentes da sociedade desigualitária e discriminadora, o que só pode ser feito se destruirmos as estruturas sócio-econômicas que permitem a sua existência como tais (ou seja, como exploradores e discriminadores). O macho branco no comando, heteronormatizador, eurocêntrico neocolonizador, só existe porque há uma “estrutura”, ao fim e ao cabo, na época em que vivemos, capitalista.
Sim a esquerda acredita que existem entidades ou mecanismos abstratos, como “estruturas sociais”, que condicionam ou determinam, em última instância, todos os comportamentos dos agentes do sistema. Assim, tudo depende dessas estruturas: a exploração econômica é estrutural, o machismo é estrutural, o racismo é estrutural et coetera. E acredita também que essas estruturas econômicas geram superestruturas (culturais, ideológicas, políticas e jurídicas) conformes à sua, digamos, “natureza”. Nesse mundo organizado em dois andares, tudo que acontece no andar de baixo é decisivo para o que vai (ou pode) acontecer no andar de cima. Trata-se, portanto, de destruir a estrutura, alterando a forma como as pessoas ou os grupos sociais (chamados de classes) se relacionam a partir da sua posição no processo de produção, na divisão social social do trabalho ou na dinâmica da acumulação ampliada do capital.
Essa destruição da estrutura e, consequentemente, da superestrutura, que geram (ambas) desigualdades e discriminações, implica uma luta: a luta de classes, dos explorados contra os exploradores e, num sentido ampliado, dos oprimidos, dominados e discriminados, contra os opressores, dominadores e discriminadores.
A esquerda realmente acredita que a luta de classes é o motor da história. Esse motor, porém – tal como pensavam os neoplatônicos – é intrínseco ao corpo que se move. Isso significa que ela acredita que existe uma história que carrega em seu ventre algo imanente, que já contém e permite seu próprio desdobramento, ou seja, que a história vai para algum lugar e que essa história tem leis que podem ser conhecidas por quem possui a teoria correta ou o método correto de interpretação da realidade. Quem possui esse conhecimento sabe o caminho para superar a situação injusta em que vivemos e esse caminho – como é essencialmente uma luta – leva à concepção e à prática da política como uma continuação da guerra por outros meios, vincando a sociedade a partir de uma única clivagem: “nós” – o povo (os explorados, oprimidos, dominados e discriminados) -, contra “eles” – as elites (os exploradores, opressores, dominadores e discriminadores).
Esses agentes da luta contra a desigualdade e a discriminação creem que possuem uma ordem mais justa para colocar no lugar da velha ordem menos justa. O sentido da política, para eles é a ordem. E a política, para eles, é a luta para implantar essa nova ordem.
Até aí tudo bem. É uma ideologia, que tem todo o direito de existir numa sociedade aberta. O problema é que a esquerda deriva, dessa ideologia, uma moral que julga superior à moral de quem não a esposa. A esquerda acredita que é melhor, não apenas politicamente, mas também moralmente, porque tem objetivos mais generosos. Transformando a política de uma questão de modo (modo de regulação de conflitos) em uma questão de lado (de quem está do lado certo, o único moralmente justificável por seus excelsos propósitos), a esquerda acha-se moralmente superior. Isso justifica, de antemão, tudo o que fazemos “nós”, contra tudo o que fazem “eles”. Pertencer ao “nós” é moralmente superior a pertencer ao “eles”. Porque é estar do “lado certo” da história, não do “lado errado”, onde estão “eles”.
Por que isso é um problema? Porque, pensando e agindo de acordo com essas crenças, a esquerda passa a discriminar quem não é de esquerda. Só quem presta, ou quem presta mais, é de esquerda. Assim, a vertente de pensamento e ação que, de acordo com seus declarados objetivos, surgiu para combater a discriminação, acaba gerando mais discriminação. “Eles” não valem nada, em comparação a “nós”.
Mas não há nenhuma superioridade moral em ser de esquerda. Vejamos por quê, em resumo, do ponto de vista da democracia liberal, essa perspectiva, pelo contrário, leva à imoralidade e não à mais moralidade:
1 – A esquerda quer implantar uma nova ordem, sem desigualdades e discriminações. Mas o sentido da política (democrática) não é a ordem (nem mesmo a ordem mais justa e perfeita do universo) e sim a liberdade.
2 – Por isso a esquerda tem tanta dificuldade com a democracia liberal. Ser um democrata liberal significa dizer: eu não tenho nenhuma ordem para colocar no lugar da sua. Simplesmente aposto que novas ordens surgirão por emergência, a partir da livre interação dos cidadãos.
3 – Ser democrata liberal é abrir mão de praticar a política como continuação da guerra por outros meios para impor o meu modelo de ordem. Novas ordens não podem surgir da vitória do “nós” sobre “eles”.
4 – Toda política baseada na guerra do “nós” contra “eles” é impermeável à moral (pois fará a distinção entre “a nossa moral e a deles” (sendo que “a nossa moral” é mais moral do que “a moral deles”); ou seja, quem está do “lado certo” já está moralmente justificado por ser contra quem está do “lado errado”, independentemente do que faça ou deixe de fazer – o que, a rigor, é imoral).
5 – Portanto, querer um mundo sem desigualdade e discriminações não confere superioridade moral a ninguém. Sobretudo quando se julga que quem não está do seu lado ou não pertence à sua tribo é culpado pelas desigualdades e discriminações.
6 – Os democratas liberais querem um mundo com mais liberdade, para que as pessoas, andando com suas próprias pernas, possam reduzir as desigualdades e discriminações em vez de ficar esperando que uma organização hieráquica ou um líder salvador, portadores de uma ordem mais justa, faça isso por elas (o que significa renunciar à moralidade de seus próprios atos).