Dentro das minhas possibilidades me empenhei para convocar a manifestação de 12 de Setembro Fora Bolsonaro e para que ela fosse ampla. Fiz a mesma coisa em relação às manifestações anteriores da chamada esquerda (com exceção da do último dia 7, no Anhangabaú – que avaliei imprudente).
Sei que os resultados de que precisamos para barrar a trajetória insana de Bolsonaro não dependem fundamentalmente do esforço dos convocadores ou dos organizadores de manifestações, digam-se de direita ou de esquerda.
Analisei, do ponto de vista da nova ciência das redes (que é o tema ao qual me dedico), as manifestações que ocorreram no mundo a partir de 2004 na Espanha (o 11M, aquele extraordinário événement, em várias cidades espanholas, a propósito da tentativa de falsificação, pelo governo de Aznar, da autoria dos atentados da Al Qaeda em março de 2004 em Madri, atribuindo-a falsamente ao separatismo basco). Me debrucei também sobre as que vieram depois: em 2011, os vários movimentos que ficaram conhecidos como “revolução árabe”, começando pelo 14 de janeiro na Tunísia, passando pelo 2 de fevereiro no Iêmen, pelo 11 de fevereiro no Egito (dia decisivo para a queda do ditador Mubarak), pelo 14 de fevereiro do Bahrein, pelo 17 de fevereiro na Líbia, pelo 9 de março em Marrocos e pelo 18 de março na Síria.
Analisei ainda outra incidência importante, que foi o 15M espanhol (a manifestação dos indignados com a velha política, em maio de 2011 em Madrid, espalhando-se por outras cidade). E, em seguida, estudei aquela série de movimentos do tipo Occupy inspirados pelo 17S (o Occupy Wall Street no Zuccotti Park, em Nova York, em 17 de setembro de 2011).
O trabalho continuou em 2013, quando tivemos outra eclosão, com o #DirenGezi na Turquia e as manifestações de junho de 2013 no Brasil (sobretudo as que ocorreram nos dias 17 e 18 de junho). Em 30 de junho de 2013 tivemos a maior manifestação da história, com 20 milhões (ou mais) de pessoas nas ruas e praças de várias cidades do Egito (ocasião em que o jihadista eleito da Irmandade Muçulmana, Mohamed Morsi, que queria instaurar o domínio da sharia, foi apeado do poder).
Em seguida tivemos a Praça Maidan, na Ucrânia, as gigantescas manifestações em Caracas e a Revolução dos Guarda-Chuvas em Hong Kong (em duas edições).
Descobri que uma característica comum a todos esses movimentos é que eles foram verdadeiros swarmings civis, sempre gestados de forma subterrânea na sociedade, destoando dos padrões clássicos das mobilizações organizadas centralizadamente por hierarquias políticas e sindicais. Não é que não houvesse quem convocasse ou tentasse organizar os protestos de rua e sim que a dinâmica social que se instalava saía sempre do controle.
O que distinguia essas manifestações dos movimentos tradicionais anteriores (em geral promovidos por organizações hierárquicas de dirigentes e militantes) é que havia algo de emergência, de auto-organização – ou seja, de comportamento aleatório – em todas elas. Pode-se dizer que havia a manifestação de uma inteligência coletiva.
Os swarmings que aconteceram no mundo, sobretudo neste século, não resultaram em mudanças imediatas no poder político e sim em transformações mais profundas, moleculares, nas sociedades em que ocorreram e que – em grande parte – talvez ainda não tenham subido plenamente à luz do dia. Isso levou muitos analistas não familiarizados com a morfologia e a dinâmica da sociedade-em-rede a concluir que foram movimentos fracassados. Os exemplos para reforçar essa conclusão apressada e incorreta são sempre buscados na chamada Primavera Árabe: o Egito, por exemplo, que foi palco da maior manifestação de rua da história humana (o 30J de 2013), virou uma ditadura militar comandada pelo general Abdul Fatah Khalil Al-Sisi. A exceção foi somente a Tunísia, que virou uma democracia liberal (o que não é pouca coisa).
Ocorre que swarmings não são expedientes instrumentais para substituir titulares do poder estatal e sim manifestações da fenomenologia da interação em mundos altamente conectados. Acontecem porque podem acontecer e não porque tenham sido planejados e organizados por alguém com um objetivo pré-definido.
Isso não significa que nunca possam ter algum rebatimento político no curto prazo. Muitos têm. Junho de 2013 no Brasil, por exemplo, alterou profundamente a dinâmica política e o papel dos atores partidários no jogo institucional. Nem sempre essas alterações são positivas – do ponto de vista da democracia – no curto e médio prazos. Foi o caso no Brasil (como estamos vendo) em que o antagonismo principal (PT x PSDB) que estabilizava o funcionamento do sistema político foi deslocado, abrindo caminho para o surgimento de um populismo-autoritário, reacionário e de extrema-direita e, como consequência, para a volta do neopopulismo de esquerda (o que ainda não se consumou).
Em todo caso, multidões consteladas nas ruas podem ter um efeito direto na dinâmica do poder. Sem as manifestações de rua de 2015 e 2016 (sobretudo o 13 de Março, que teve características de um swarming), o PT não teria sido apeado do poder (de vez que, dificilmente, populismos são derrotados apenas eleitoralmente – ainda que haja exceções, como Macri, na Argentina e Biden, nos Estados Unidos).
O ponto é que não sabemos como fazer isso, ou seja, como provocar voluntariamente swarmings. Podemos convocar, tentar planejar e organizar, mas não podemos fabricá-los. Isso não significa que não devamos promover manifestações de rua quando há um imperativo ético-político, humanitário ou democrático, como há agora no Brasil.
O fato é que o Congresso não vai aprovar o impeachment de Bolsonaro por crime de responsabilidade, a Procuradoria Geral da República não vai denunciá-lo por crime comum, o TSE não vai cassar sua chapa ou sua recandidatura e o STF não poderá fazer nada para removê-lo da presidência se não houver uma insurgência popular de grandes proporções, inclusive com vigorosas manifestações de rua. Assim como não teria havido a interrupção do governo Dilma sem as manifestações de rua de 2015 e 2016, também não haverá a deposição constitucional de Bolsonaro se as ruas ficarem mudas em 2021.
A conclusão é que devemos impulsionar todas as tentativas de manifestações de rua Fora Bolsonaro, sejam convocadas pelos que se acham (ou se dizem) de direita ou de esquerda. Toda força, portanto, à manifestação de 12 de Setembro e às manifestações que virão. Porque Bolsonaro não pode mais ficar no governo.
O MEU 12 DE SETEMBRO
O meu 12 de Setembro – sim, o meu, pois o 12 de Setembro deve ser de qualquer um de nós que quer o impeachment de Bolsonaro – não será para medir forças com o 7 de setembro, para ver quem foi maior, mais animado, mais uniformizado. Será apenas uma ação da cidadania pelo Fora Bolsonaro. Mas Fora Bolsonaro agora, não somente em 2022.
A manifestação chapa-branca do 7 de Setembro – convocada ilegalmente durante dois meses pelo Presidente da República – foi, em grande parte, composta por pessoas acarreadas (a palavra foi forjada no PRI mexicano). Foi grande, mas muitas pessoas não vieram com suas próprias pernas. Foram trazidas em ônibus, caminhões, automóveis e até aviões. Parte disso – transporte, camiseta, cartazes, lanche, 100 reais e turismo de graça – foi pago com dinheiro público ou financiado por ruralistas atrasados e empresários bolsonaristas corruptos.
O protesto a favor do 7 de Setembro tinha como pauta central uma intervenção militar para conferir a Bolsonaro um poder absoluto, acima das instituições, com a destituição dos membros do STF. Ou seja, foi um ato golpista para instaurar no Brasil uma ditadura.
A manifestação de 12 de Setembro será diferente. Pode ser maior ou menor, mas será mais justa. Pode ser maior ou menor, mas será o certo a ser feito agora. Pode ser maior ou menor, mas não será a única. Não vamos às ruas para um armagedom, para uma batalha final apocalíptica visando a exterminar uma parte da sociedade que consideramos iníqua. Pelo contrário, queremos incluir todos aqueles – inclusive os que votaram em Bolsonaro – que chegaram à conclusão de que o atual presidente não reúne mais as condições políticas e morais de continuar chefiando o governo.
O 12 de Setembro será uma movimentação da sociedade democrática, não da esquerda ou da direita. Se a esquerda não pudesse se reunir com a direita, Lula não estaria conversando com todos os caciques do centrão – e inclusive com os que apoiaram o impeachment de Dilma e votaram em Bolsonaro – para ser eleito em 2022. Se os que se acham ou se dizem de direita não pudessem se reunir com os que se dizem de esquerda, eles não estariam chamando todos para o 12 de Setembro.
Se não vamos pagar os manifestantes – ou alugá-los como figurantes – o resultado será sempre incerto, imprevisível (como sempre são os movimentos da política democrática). Assim, não se sabe o acontecerá no 12 de Setembro. Pois isso não depende dos organizadores ou dos convocadores. Depende apenas da dinâmica social que se constelar. Pode acontecer um swarming civil – ou não. Se acontecer, como em 2013 (em que até os “organizadores” do MPL ficaram surpresos com os resultados), será ótimo. Se não acontecer, continuaremos nos manifestando em oposição a Bolsonaro, em grandes e pequenos eventos, em cada lugar e setor de atividade. Porque sabemos que o imperativo da hora é barrar a trajetória assassina e antidemocrática do facínora que nos desgoverna.


