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Sobre o futuro do passado e o presente do futuro

Publicado na revista Inteligência Democrática.

Nos dois parágrafos finais do capítulo 8 do meu livro Como as democracias nascem (2023) escrevi:

“Passado e futuro são formas de narrar o presente (que é só o que existe: o mundo como conjunto copresente de eventos). Estamos falando, portanto, da liberdade em relação às narrativas, ou seja, ao que se chama de história e aos projetos de cavar sulcos para fazer escorrer por eles as coisas que ainda virão. Tanto as tentativas de modificar o passado para predeterminar um caminho para o futuro, quanto as tentativas de antever o futuro para alterar o passado (e, a partir daí, predeterminar então um novo caminho para o futuro), são operações para restringir a liberdade. Se há liberdade, não pode haver caminho (e vice-versa).

O fluxo interativo da convivência social é composto por linhas temporais possíveis, não determináveis antes da interação. Escolher uma linha particular significa eliminar as outras (e toda eliminação de conexões – mesmo temporais – resulta em desliberdade). Por isso o passado e o futuro têm de continuar sendo incertos. Afirmamos que, sem essa incerteza, não pode haver liberdade”.

Agora, neste início de 2025, começo a acrescentar algumas notas explicativas.

PRIMEIRA NOTA | SOBRE O FUTURO DO PASSADO E O PRESENTE DO FUTURO

O passado não existe porque já passou. Subsiste nas pessoas e nos seus registros, como memória (e como registro).

O futuro não existe porque ainda não aconteceu. Preexiste nas aspirações das pessoas, como desejo (e como projeto).

Passado e futuro são, portanto, modos de narrar o presente, que é só o que existe. O mundo como conjunto de eventos copresentes, para evocar (e parodiar) um conhecido sub-axioma de Wittgenstein (1921) no seu Tractatus.

As predições não anteveem futuro, inventam futuro. A história não descreve o passado: é uma predição sobre o passado (e escolher um passado possível em nada se distingue de inventá-lo) (1).

Porque a história não é a coleção dos fatos, dos acontecimentos. São os liames que se estabelecem entre eles. Desde que se possa ordenar os fatos numa linha temporal de mais de uma maneira, existirão sempre várias histórias. Isso pode ser feito sem falsificar os fatos, quer dizer, a memória (e os registros).

Por exemplo, podemos contar três histórias diferentes – todas “verídicas” – do nascimento da democracia em Atenas, na passagem do século 6 para o século 5 a.C., tendo sempre como referência os (mesmos) fatos principais: a reforma distrital de Clístenes (509), as guerras com os persas (499-449), a reforma do Areópago de Efialtes (461), o protagonismo de Péricles (461-429), a atividade dos sofistas (462-432), a guerra do Peloponeso (431-404), o primeiro golpe (dos Quatrocentos) contra a democracia (411), o segundo golpe (dos Trinta) contra a democracia (404), a tentativa (frustrada) de terceiro golpe contra a democracia (401) et coetera (2).

E isso sem falar que as memórias e os registros não correspondem (exatamente) aos fatos e sim à sua apreensão em determinadas ou indeterminadas condições.

A ficção futurística, utópica ou distópica, é quase sempre sobre o passado (3). É a projeção, num futuro imaginado, da escolha de uma linha particular de desdobramento dos eventos passados. É uma extrapolação dessa linha.

Pode-se dizer que, de certo modo, alterar o passado é criar memórias novas. E alterar o futuro é criar (ou cultivar) desejos que virem projetos novos.

O futuro do pretérito é um tempo verbal do modo indicativo que se refere a algo que poderia ter acontecido no passado, mas não se concretizou. Agora pensemos em outro tempo: o “futuro do passado” para designar algo que pode se concretizar no presente se abrir uma nova linha temporal para o futuro.

Para tanto temos que fazer algumas operações sobre o tempo partindo de algumas premissas inusitadas e desconcertantes. A primeira delas é considerar que o futuro vem antes do presente. Ou seja, para chegar a um novo presente (que não seja repetição de passado) é preciso fazer uma viagem de ida-e-volta ao futuro. Então é preciso escolher uma linha temporal possível do passado e extrapolá-la para o futuro. Porque um novo presente não existe sem um novo futuro. E um novo futuro não existe sem um novo passado. Essa operação significa que temos que modificar o passado.

Com a ajuda de algumas imagens (geradas pelo Renato J. Cecchettini) é possível explicar melhor o que está sendo dito aqui.

1 – Não existe uma linha temporal única a não ser como fruto de escolha e resultado de repetição. Ou seja, não é assim como ilustrado na imagem abaixo:

2 – Não é apenas o futuro que está aberto, como na imagem abaixo:

3 – O passado também está aberto, como na imagem abaixo:

4 – Ao escolher uma linha temporal do passado, escolhemos também uma linha temporal do futuro, como na imagem abaixo:

5 – No entanto, a sequência não é a do tempo cronológico (khronos: gerado pela disjunção ‘agora é’ | ‘agora não é’) como na imagem abaixo:

6 – A sequência é no tempo do acontecer (kairós: gerado pela disjunção ‘e então acontece’ | ‘e então não acontece’) como na imagem abaixo:

7 – Mas isso só é possível se modificarmos o passado, modificando também o futuro, como na imagem abaixo:

Um exemplo. O biólogo Humberto Maturana (1993), na primeira parte do livro Amar e Brincar, escrito com Gerda Verden-Zöller, intitulada Conversações matrísticas e patriarcais, criou uma nova narrativa sobre o passado. Ele supôs que tenha existido uma cultura matrística pré-patriarcal na Europa antiga. E que ela teria sido invadida por uma cultura patriarcal pastoril indo-europeia, o que explicaria porque nos tornamos seres patriarcais (hierárquicos e guerreiros). Todavia, mesmo que não existam evidências científicas suficientes para sustentar a nova narrativa de Maturana (sobre a existência de uma sociedade – ou cultura – matrística pré-patriarca) isso não invalida o seu pensamento sobre as origens (colaborativas) do humano e do social que se referem ao presente (a um novo presente) como desdobramento, no futuro do pretérito, da cultura matrística (que surgiu na sua leitura possível do passado). Em suma ele gerou um novo futuro para modificar o presente, mas para tanto teve de modificar o passado. Ele estava falando, portanto, o tempo todo, do presente do futuro (4).

Mas, como foi dito na auto-citação que encabeça esta nota, nada disso deve nos autorizar a decretar que a escolha de uma linha temporal, em detrimento das demais, é a única correta ou a única verdadeira. Porque trancar o passado, assim como trancar o futuro, gera desliberdade.


(1) “As visões futuristas dos autores de ficção científica estão repletas de invenções tecnológicas inacreditáveis. Contudo, de modo geral, o mundo da ficção científica é despojado singularmente de novas invenções sociais. Na verdade, mais frequentemente do que eles imaginam, leva-nos para o passado enquanto parecemos estar progredindo no tempo. Seja em Duna, de Frank Herbert, ou em Guerra nas Estrelas, de George Lucas, o que frequentemente encontramos é na realidade uma organização social de imperadores feudais e suseranos medievais transpostos para um universo de guerras intergaláticas de alta tecnologia”. Riane Eisler (1987) em O Cálice e a Espada.

(2) Numa próxima nota faremos tal exercício mostrando que histórias diferentes sobre a origem e desenvolvimento da primeira democracia podem fazer sentido e nenhuma delas pode ser plenamente refutada pelos fatos.

(3) “Os historiadores exercem um grande poder e alguns deles sabem disso. Os historiadores recriam o passado, alterando-o para se adequar às suas próprias interpretações. Dessa forma, também mudam o futuro.” Frank Hebert (1984) em Os hereges de Duna.

(4) Numa próxima nota vamos descrever melhor essa operação feita por Maturana e sua coerência com a visão de aprendizagem do autor. Em Aprendizagem ou deriva ontogênica (1982) ele escreveu que “em geral, se pensa que o que é central em todo comportamento são suas consequências. Isto é um erro. O propósito que vemos nos comportamentos não pertence a eles, mas à descrição ou ao comentário do observador. Tal descrição é boa na conversação, mas é enganadora no domínio conceitual. A aprendizagem não tem propósito, é uma consequência da mudança estrutural dos seres vivos sob condições de sobrevivência com conservação da organização e da estrutura. Não há representação do meio, não há ação sobre o meio, não há memória, não há passado nem futuro, somente o presente. Porém, porque há aprendizagem, há linguagem e descrições nas quais o passado e o futuro surgem e podemos equivocar-nos sobre a aprendizagem”.

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