Uma das descobertas mais importantes dos estudos (de pesquisadores do V-Dem, da Universidade de Gotemburgo) sobre a terceira onda de autocratização em curso é que 70% dos esforços de autocratização são feitos por meios legais (1).
Desde que a terceira onda de autocratização começou em 1994, 75 episódios de aumento de governos autocráticos – períodos de declínio democrático substancial – ocorreram em todo o mundo.
Ou seja, em mais de 52 países os processos de autocratização (ou de assassinato lento da democracia) não rasgaram as constituições (e, pode-se acrescentar, deixaram as instituições funcionando).
As democracias agora são mortas lentamente, como por envenenamento (por arsênico, por exemplo). Isso pode ser feito sem violar as leis, rasgar a Constituição, fechar as instituições (e empastelar a imprensa).
Tanques nas ruas? Nem pensar. Direitos políticos e liberdades civis formais podem permanecer vigendo. Além disso, eleições multipartidárias podem continuar ocorrendo normalmente.
Ah!… mas se tudo isso está funcionando, por que se diz então que as democracias estão sendo mortas? Pois é. Para dar uma resposta a essa pergunta é preciso entender o que é a democracia. Pela visão minimalista de democracia – como troca (eleitoral) de governo sem derramamento de sangue – a democracia não está ameaçada nesta terceira onda de autocratização. O que, por si só, revela que essa visão – que reduz a democracia ao processo eleitoral – é absurda. E é absurda, antes de qualquer coisa, porque não percebe que as principais ameaças atuais à democracia vêm dos populismos – que amam de paixão as eleições (2).
Todavia, mais de 80% dos nossos representantes políticos e uma parte considerável de nossos analistas, também não conseguem entender como a democracia pode estar sendo derruída sem violação das leis. É a isso que nos referimos quando falamos do nosso déficit de democratas.
Para onde devemos olhar para perceber os sinais de envenenamento que estão matando as democracias lentamente? E que sinais são esses?
Recolocando a questão. Onde estão os sinais de envenenamento (da democracia) quando o corpo (as instituições) ainda acha que está sadio? Ou seja, nos estágios iniciais da “doença”, as instituições não percebem que estão sendo envenenadas.
O Estado de direito não dá conta de identificar os ataques contemporâneos à democracia e de se defender desses ataques. Como eles (esses ataques, que são contínuos ou intermitentes – e não se parecem nada com um putsch de cervejaria) não violam abertamente as leis, então são considerados parte da dinâmica normal da democracia. É como colocar o vigia noturno de uma manufatura para cuidar da segurança da Microsoft.
É por isso que não existem leis contra a falsificação da opinião pública via manipulação das mídias sociais. E não é porque isso seja uma novidade contemporânea (do século 21). Bem antes, já não existiam leis contra o discurso inverídico, contra o uso da democracia (notadamente das eleições) contra a própria democracia e nem contra a destruição das normas não escritas que estão abaixo do sistema legal-institucional e lhe dão suporte.
É justamente nessas falhas estruturais da democracia que devemos procurar os sinais de envenenamento (ou de desconsolidação) da democracia (3).
Apenas com os indicadores atuais de direitos políticos e liberdades civis (usados, por exemplo, pela Freedom House, pela The Economist Intelligence Unit ou mesmo pelo V-Dem) não se consegue captar esses sinais. Até porque eles são fracos nos estágios iniciais do envenenamento. E além de fracos, eles não são visíveis diretamente. As mudanças que vão matar lentamente a democracia são subterrâneas (4).
Bem, agora o artigo poderia começar.
Notas
(1) Cf. Anna Lührmann & Staffan I. Lindberg (2019), Uma terceira onda de autocratização está aqui: o que há de novo sobre isso?, Democratization, DOI: 10.1080 / 13510347.2019.1582029.
(2) Um estudo empírico recente mostrou que das 47 vezes que um líder populista assumiu o poder (via eleições) entre 1990 e 2014, em apenas oito casos (17%) ele deixou o cargo depois de perder eleições livres e justas: em geral os líderes populistas deixam o cargo em circunstâncias dramáticas. Além disso, eles duram mais no cargo (duas vezes mais do que os líderes democraticamente eleitos que não são populistas e são quase cinco vezes mais propensos do que os não-populistas a sobreviver no cargo por mais de dez anos). Mas tem mais: no geral, 23% dos populistas causam um retrocesso democrático significativo, comparado com 6% dos líderes democraticamente eleitos não populistas. Em outras palavras, os governos populistas são cerca de quatro vezes mais propensos do que os não-populistas a prejudicar as instituições democráticas. E ainda: mais de 50% dos líderes populistas alteram ou reescrevem as constituições de seus países, e muitas dessas mudanças ampliam os limites dos mandatos ou enfraquecem os controles sobre o poder executivo. Por último, os populistas atacam os direitos individuais. Sob o domínio populista, a liberdade de imprensa cai em cerca de 7%, as liberdades civis em 8% e os direitos políticos em 13% – sem que nenhuma dessas três coisas deixe de existir. Confira Jordan Kyle e Yascha Mounk (2018), The Populist Harm to Democracy: An Empirical Assessment, Tony Blair Institut for Global Change, 26th December 2018.
(3) Foa e Mounk (2017) escreveram que “o fenômeno da desconsolidação democrática é conceitualmente distinto das avaliações sobre quão democraticamente um país está sendo governado em um dado momento. Uma importante linha de pesquisa na ciência política tenta medir o grau no qual um país permite eleições livre e justas ou oferece a seus cidadãos direitos básicos, como liberdade de expressão. Os dois trabalhos mais influentes nesse sentido são os índices Polity e o da Freedom House, que são muito bons para se medir o estado atual da democracia em determinado país. Mas a questão da consolidação ou desconsolidação democrática não diz respeito ao grau de democracia, mas à sua durabilidade”. Cf. Roberto Stefan Foa e Yascha Mounk (2017), The signs of deconsolidation, Journal of Democracy, Volume 28, Número 1, Janeiro de 2017 © 2017 National Endowment for Democracy and The Johns Hopkins.
(4) Com efeito, como escrevi no artigo Não é possível salvar a democracia, “por incrível que pareça o que mantém a democracia não é o que aparece e sim o que não aparece, o que não é tão tangível (como, por exemplo, a produção e o estoque de capital social). Como se sabe, abaixo de certo nível de capital social a democracia não pode funcionar. O problema é que a democracia pode continuar (aparentemente) funcionando enquanto o capital social está sendo erodido. Este é, precisamente, o problema das nossas democracias sob ataque dos populismos”. Cf. Augusto de Franco (2021). Não é possível salvar a democracia. Dagobah (25/01/2021).