Salvar, num sentido contemporâneo do termo (aquele que veio da computação, mas o mesmo vale, mais ou menos ou mutatis mutandis, para qualquer outro sentido), não é possível. Sim, não é possível salvar a democracia.
Ou seja, não há nenhum conteúdo a ser salvo (quer no sentido de guardado, quer no sentido de protegido dos que querem destrui-lo).
Porque a democracia não é um estado, como ficamos com a (falsa) impressão depois da reinvenção dos modernos no século 17. Direitos políticos e liberdades civis, sistema de instituições, mecanismos de freios e contrapesos, independência dos poderes, império da lei, Estado de direito etc.; ou, para resumir, aqueles critérios da poliarquia de Dahl: eleições limpas, sufrágio universal, governo eleito, liberdade de associação, liberdade de expressão e fontes alternativas de informação – todas essas coisas são fundamentais para que exista democracia. Mas as formas pelas quais essas coisas se realizam – formas (contingentes) sem as quais não se realizam – não podem ser salvas como quem guarda um projeto, um plano diretor, um modelo.
E a democracia não pode ser salva como modelo porque ela não é um modelo e sim um processo: o processo de democratização. Esse processo não segue uma estratégia, um planejamento: ele se materializa toda vez que, por meio de nossos atos singulares e precários, desconstituímos autocracia (e, correspondentemente, embora não como consequência automática do primeiro movimento, desconstituímos também hierarquia – articulando redes mais distribuídas do que centralizadas).
Não, a democracia não pode ser salva – como sugere, com boa intenção, o subtítulo do interessante livro O povo contra a democracia de Yascha Mounk (2018): Why Our Freedom Is in Danger and How to Save It.
Salvar a democracia só seria possível naquele particularíssimo sentido da homilia herética de Paulo Brabo (2007), intitulada Microsalvamentos: um instante de cada vez. Ora, isso significa deixar fluir as ações compatíveis com a ideia de liberdade, porém no sentido surpreendente e inusitado de que ninguém pode ser livre sozinho. Ou seja, pulando algumas passagens na argumentação: dar continuidade ao processo de democratização.
A ideia de salvar a democracia nos ocorre quando constatamos que a situação da democracia no mundo não é nada boa. Desde meados dos anos 90 vivemos sob uma terceira onda de autocratização. A partir de 2006 o número líquido de democracias parou de crescer: sim, é a famosa recessão democrática. Nos anos seguintes, nos países de democracia avançada, constatamos que as novas gerações passaram a não valorizar o regime democrático: há desconexão e desconsolidação democráticas. E nos apavoramos quando vemos que é possível, sim, que a atual recessão democrática vire uma depressão.
Ademais, há uma crise da representação e diz-se, com razão, que a democracia liberal está em risco. O número atual de democracias liberais é muito menor do que o de democracias apenas eleitorais e, o que é pior, também é bem menor do que o número de autocracias eleitorais (que já são numerosíssimas, muito mais do que as velhas ditaduras que conhecemos). As autocracias eleitorais são uma prova de que salvar da democracia o processo eleitoral (muitas vezes confundido com a própria democracia) não resolve o problema.
Essa história de salvar é complicada porque nunca salvamos tudo, ou melhor, porque existem processos em andamento que não podem ser salvos: as partes não-salvas podem inviabilizar a continuidade do processo de democratização. As partes não salvas são, em geral, as normas não escritas, as instituições (“subterrâneas”) que ainda não podem aparecer, as polis paralelas, os fluxos interativos da convivência social que não emergiram à luz do dia. Por incrível que pareça o que mantém a democracia não é o que aparece e sim o que não aparece, o que não é tão tangível (como, por exemplo, a produção e o estoque de capital social). Como se sabe, abaixo de certo nível de capital social a democracia não pode funcionar. O problema é que a democracia pode continuar (aparentemente) funcionando enquanto o capital social está sendo erodido. Este é, precisamente, o problema das nossas democracias sob ataque dos populismos.
O fato é que a democracia, reinventada pelos modernos como modo político de administração do Estado, apartou-se da vida cotidiana do cidadão, dos desejos das pessoas, porque não foi experimentada (ou apropriada) como modo de vida. Virou um troço distante, um tema para os “políticos profissionais”. Agora, que a democracia liberal está sob ataque, tememos não ter um número suficiente de pessoas para defendê-la.
Sim, não basta que as instituições estejam funcionando para garantir a democracia. É necessário um número crítico de democratas, de pessoas convertidas à democracia e que defendam a democracia diariamente, para que a democracia não seja derruída. E esse número, infelizmente, não está crescendo na maioria dos países considerados democráticos.
Até os anos 90 a democracia era morta, principalmente, de três maneiras: invasão estrangeira, golpe militar ou autogolpe (aliás, até as rupturas revolucionárias clássicas – como a revolução bolchevique – envolviam, em algum grau, ações militares, embora elas não fossem desfechadas contra democracias). A partir da terceira onda de autocratização (na qual estamos imersos) ela é predominantemente morta por erosão democrática. É diferente. É uma morte lenta, que pode acontecer sem a violação explícita das leis e com as instituições funcionando.
A democracia, é claro, tem que ser defendida. Antes de qualquer coisa porque a democracia que temos (sobretudo as democracias liberais) é necessária para alcançarmos as democracias que queremos. No entanto, as instituições das democracias liberais não são capazes de se manter por si mesmas. Seu sistema imunológico não funciona sem ações cotidianas de resistência, de reforço e de apoio, que só podem ser feitas pelas pessoas que apostam na democracia. Daí se dizer – repetindo o que escreveu Ralf Dahrendorf nos anos 90 – que não pode haver democracia sem democratas. E por isso é necessário multiplicar o número de democratas.
Para defender a democracia, entretanto – repita-se – não basta manter velhas instituições funcionando. Os ataques contemporâneos à democracia submetem as instituições e um stress permanente que pode alterar a sua, digamos, “estrutura molecular”. Não adianta apenas tentar salvar as instituições que temos. É preciso ter mais pessoas “produzindo” democracia e, inclusive, gerando embriões de novas instituições.
Mais uma vez, a metáfora da democracia como bicicleta cai como uma luva: parou de pedalar, cai. Pedalar, no caso, é dar continuidade ao processo de democratização, inovando nos procedimentos e nos mecanismos democráticos (como o sorteio, por exemplo) e, sobretudo, experimentando a democracia nos âmbitos das nossas relações convivenciais: na família, na vizinhança, nos grupos de amigos, na escola, na igreja, nas organizações da sociedade, nas empresas e, até mesmo, nos parlamentos e nas oligarquias que chamamos de governos (ainda que esses governos sejam representativos, no mais puro ideal de John Stuart Mill).
Defender não é salvar. A única maneira de salvar a democracia é inovando. Mas isso não é bem salvar (o que foi) e sim caminhar em direção ao que será (o que ainda não é). E não se pode salvar o que (ainda) não existe. Salvar é sempre salvar o que foi (o que existiu). Por outro lado, para quê insistir tanto em manter (como que conservadas em formol) formas pretéritas, contingentes, que não respondem mais adequadamente às mudanças contemporâneas? Se respondessem não estaríamos em recessão democrática.
Reter o que passou não dará certo. O mundo não vai voltar à terceira onda de democratização que sucedeu à queda do muro de Berlim – nem às duas ondas anteriores. Até porque esse mundo (único) acabou. Foi vítima de um estilhaçamento como parte da emergência de uma sociedade-em-rede. Explodiu como uma ramada de neurônios, para usar uma bela imagem de Pierre Lèvy. Novas formas inovadoras de democracia poderão aparecer nos múltiplos mundos sociais que dermos conta de construir com nossa convivência. Quanto a isso, porém, não há nenhuma garantia.
Not Save.
Este artigo poderia ser considerado mais uma (a décima-sétima; ou, a rigor, a vigésima) reflexão terrestre sobre a democracia.