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Décima-sexta reflexão terrestre sobre a democracia

A democracia foi a maior ruptura já surgida na cultura patriarcal, hierárquica e guerreira, que se replicava há cerca de três milênios. Até hoje permanece sem explicação como pode ter aparecido, há cinco séculos antes da Era Comum, essa inovação social que fez com que, numa pequena cidade, uma sociedade resolvesse experimentar viver sem um senhor. Sim, foi uma inovação social antes de ser uma inovação política.

Não foi invenção de ninguém. Clístenes não tinha a menor noção das consequências da sua reforma que substituiu os genos (os clusters das grandes famílias da aristocracia fundiária) pelo demos (os cerca de cem distritos onde se formaram poleis, comunidades políticas). Aliás, a reforma de Clístenes só vigorou mesmo cerca de meio século depois. Os oligarcas de Atenas continuaram dominando as assembleias e elegendo seus representantes.

Somente com a reforma do Areópago, proposta por Efialtes (antecessor de Péricles) em 462 AEC, alterou-se a composição de forças políticas na condução dos assuntos da cidade.

Mas, subterraneamente, um movimento democratizante estava em curso a partir de 509 AEC. Ninguém sabe ao certo como foi introduzido o sorteio para a escolha dos membros do Areópago. Mas o sorteio foi decisivo para impedir que os oligarcas – mais organizados do que os simpatizantes da democracia (que nem sabiam o que era ou seria a democracia) – continuassem controlando os processos eleitorais. Sim, os oligarcas usavam as eleições contra a democracia.

Assim como a democracia não tem fundadores, ela também não tem uma data de fundação (embora se atribua ao ano de 509 AEC o marco do seu nascimento, coincidentemente o mesmo ano em que surge a república romana – esta sim uma data claramente marcada de mudança de regime). O que nos leva a pensar que a democracia não é um modelo de regime e sim um processo (o processo de democratização que, para todos os efeitos, teóricos e práticos, é um processo de desconstituição de autocracia).

Mas não se sabe igualmente o que aconteceu para que esse processo se tornasse possível. De qualquer modo, nada disso teria acontecido sem uma mudança na topologia das redes sociais dos homens livres de Atenas. Por isso se pode afirmar que a democracia é, antes de qualquer coisa, uma inovação social.

Ocorreu que as pessoas que voltavam da guerra vinham com uma nostalgia da camaradagem, da cooperação e da confiança, experimentada nos acampamentos militares. Quando a guerra chegava ao fim, elas então retornavam às suas casas, mas não podiam mais experimentar as mesmas emoções amistosas que viveram nos longos intervalos entre os confrontos violentos (que superavam em muito, em termos temporais, os momentos de luta aberta). Nas suas casas, entretanto, caiam logo presas do império da necessidade, tinham que prover seu sustento e das suas famílias, administrar a escassez, se ocupar das mil tarefas comezinhas e enfadonhas cotidianas. E não sobrava muito tempo para encontrar seus velhos companheiros. Para elas, aquilo era uma espécie de servidão.

Elas queriam experimentar a livre interação humana (quer dizer, social) sem a guerra, queriam se comprazer na convivência com seus iguais, sem o risco de serem mutiladas ou mortas, mas não porque tivessem sido mandadas por alguém ou porque isso fosse necessário para obter qualquer coisa ou chegar a um resultado esperado. Simplesmente queriam fazer o que não era necessário. E então saíram de suas casas para a praça, onde começaram a conversar, a conversar umas com as outras e a conversar sobre as conversas que mantinham regularmente. Com isso foram se formando redes mais distribuídas do que centralizadas em Atenas. Foram essas redes de conversações que ensejaram a conclusão de que não precisavam de um senhor, de um rei. Que podiam (embora a palavra ainda não existisse na ocasião) ser cidadãos em vez de súditos.

Os atenienses que passaram a conversar na praça intuíram que se ficassem juntos por um tempo suficiente, sem ser na guerra ou na casa, sem obedecer a ninguém e sem fazer o que era necessário, vivendo voluntariamente sua convivência em um espaço que se tornou público, acabariam gerando um outro tipo de mundo, um novo mundo onde a liberdade pudesse ser fruída, não no futuro, como promessa, mas no presente, e não por meio de grandes revoluções e sim pela repetição de pequenos atos singulares e precários, de modo mais lírico do que épico. Para isso, entretanto, era necessário que se transformassem em seres políticos, quer dizer, interagentes na polis. Foi assim que eles descobriram que a liberdade não era se libertar ou fugir de alguma coisa e sim interagir e entrar nesse organismo coletivo que era a koinonia (comunidade) política.


Um índice (incompleto) das reflexões terrestres sobre a democracia

Primeira reflexão terrestre sobre a democracia

Segunda reflexão terrestre sobre a democracia

Terceira reflexão terrestre sobre a democracia

Quarta reflexão terrestre sobre a democracia

Quinta reflexão terrestre sobre a democracia

Sexta reflexão terrestre sobre a democracia

Sétima reflexão terrestre sobre a democracia

Oitava reflexão terrestre sobre a democracia

Nona reflexão terrestre sobre a democracia

Décima reflexão terrestre sobre a democracia

Décima-primeira reflexão terrestre sobre a democracia

Décima-segunda reflexão terrestre sobre a democracia

Décima-terceira reflexão terrestre sobre a democracia

Décima-quarta reflexão terrestre sobre a democracia

Décima-quinta reflexão terrestre sobre a democracia

Há um resumo (ou consolidação) dos textos acima no artigo: Juntando pedaços do DNA da democracia.

Outras três reflexões terrestres sobre a democracia poderiam ser consideradas. Veja-se os artigos abaixo:

Sete reflexões sobre o que a democracia não é

Sabedoria não tem a ver com democracia

As quatro falhas genéticas da democracia

A volta do populismo de esquerda no Brasil

Ruptura: A crise da democracia liberal segundo Castells