A democracia não é o regime perfeito. Não existe regime perfeito. Podemos considerar que a democracia apresentou, do final do século 6 AEC até hoje, quatro falhas genéticas importantes, algumas percebidas já no início e outras só bem recentemente.
PRIMEIRA FALHA
A democracia não tem proteção eficaz contra o discurso inverídico.
Esta falha já havia sido percebida pelos primeiros democratas, os atenienses do século 5 AEC. Observando a jactância dos demagogos, que prometiam em assembleia o que não podiam fazer, os democratas perceberam a falha, mas não conseguiram encontrar uma maneira tempestiva de consertá-la. Como, até hoje, a solução não apareceu e – como dizia Khrushchov – os políticos prometem construir pontes até onde não existe rio, a vulnerabilidade permaneceu.
Uma coisa, porém, é a demagogia que, ao contrário do que acreditava Aristóteles, não é capaz de destruir a democracia e é metabolizável por ela. Outra coisa, muito diferente, é o uso instrumental da mentira pela nova forma maligna que a demagogia tomou: o populismo.
Os populistas mentem o tempo todo. Mentem não por algum desvio de caráter. Mentem não apenas porque querem levar vantagens pessoais. Mentem sistemática e estrategicamente para destruir a democracia, tornando irrelevante a ideia de verdade e a necessidade de coerência ou correspondência entre os opiniões e os fatos. Para tanto, criam novos fatos (fakes) reduzindo a possibilidade da persuasão, do convencimento e do esclarecimento (ou entendimento comum).
SEGUNDA FALHA
A democracia não tem proteção eficaz contra o uso da democracia (notadamente das eleições) contra a democracia.
Esta segunda falha só foi percebida na democracia dos modernos, após a adoção em larga escala dos processos eleitorais como meios de representação da vontade política de indivíduos. Como a falha anterior ela ficou, até agora, sem solução.
Sabendo disso, os populistas se apropriam das técnicas eleitorais e usam as eleições como se fosse uma guerra contra um inimigo (externo e interno); ou seja, os adversários passam a ser inimigos internos (agentes do inimigo externo infiltrados no país) e são considerados habitantes ilegítimos. Se os populistas se dizem de esquerda, o inimigo externo é o imperialismo, a CIA, o capitalismo apátrida ou o neoliberalismo e seus agentes internos são as elites (a burguesia, o capital financeiro ou os rentistas e… os liberais). Se os populistas se dizem de direita, o inimigo externo é o globalismo, o comunismo, a trilateral, o Clube de Bilderberg e seus agentes internos são (novamente) as elites (os cientistas e os intelectuais, os artistas, os universitários e… os liberais). Como se sabe os populismos (digam-se de esquerda ou de direita) se caracterizam por achar que a sociedade está dividida por uma única clivagem, separando a vasta maioria (o povo) do “establishment” (as elites).
Ao fazerem isso, os populistas polarizam completamente o cenário político e, numa polarização acirrada, há sempre – por uma fenomenologia da interação social – uma tendência ao equilíbrio das forças dos contendores (até mesmo um empate) em que qualquer perturbação no sistema (introduzida com facilidade por quem está no poder) pode fazer a balança pender a seu favor.
Os populismos, ditos de esquerda ou de direita, sempre usam a democracia contra a democracia. Exemplos? Maduro e Ortega são neopopulistas (da esquerda bolivariana) que viraram ditadores. Orbán e Kaczyński (agora via Duda), que são populistas-autoritários, de extrema-direita, tomaram o mesmo caminho. E Bolsonaro, mais um populista-autoritário, fará no Brasil, em 2022, exatamente o que Trump está fazendo nos EUA em 2020. Deixá-lo no poder levará diretamente a isso.
TERCEIRA FALHA
A democracia não tem proteção eficaz contra a destruição das normas não escritas que estão abaixo do sistema legal-institucional e o sustentam.
Esta terceira falha só foi percebida no último século. Os populistas desrespeitam todas as normas (que não podem e não devem virar leis), esgarçando a base social (de confiança e civilidade) sem as quais os mecanismos de freios e contrapesos das instituições não funcionam mais a contento, ainda que as instituições continuem formalmente funcionando. Em outras palavras, eles aceleram a dilapidação do capital social que, se cair abaixo de certos níveis, transforma a democracia num regime menos substantivo, apenas formal.
Todos conhecem numerosas regras não escritas que possibilitam o pacto que permite a democracia e fazem parte dos bons costumes políticos que não devem ser violados, nem mesmo em contendas acirradas. Alguns exemplos:
√ Aceitar a derrota
√ Parabenizar o vencedor
√ Não tripudiar sobre o derrotado
√ Não mentir
√ Não acusar as regras (que foram aceitas antes da contenda) pela derrota
√ Não tentar mudar as regras durante o jogo
√ Não alegar falsamente que perdeu porque houve fraude
√ Não deslegitimar o adversário
√ Não encorajar a polarização (nós contra eles)
√ Não transformar o adversário em inimigo (da pátria, do povo, da nação, do Estado, de Deus)
√ Não levantar falso testemunho perante a justiça (nem praticar litigância de má-fé) contra um adversário
√ Tratar as divergências por meio de um debate aberto e tolerante, valorizando a moderação e a busca do consenso
√ Fazer oposição leal
Populistas, como Trump, violam todas essas regras.
O fato é que a democracia não pode ser protegida apenas pelas leis (escritas). Por isso todo legalismo é insuficientemente democrático. Não, não basta não violar as leis para proteger a democracia. Sem um pacto social, mesmo que tácito, de respeito aos bons costumes políticos (as normas não escritas), a democracia fica indefesa quando se elege um tirano cujo programa é de destruição da democracia.
É a velha pergunta de Sir Ralf Dahrendorf em meados dos anos 90: e se os caras errados forem eleitos? A resposta-padrão, de que será possível trocá-los nas próximas eleições, só funciona para democratas (para os que respeitam as regras escritas e as não escritas). Se a intenção do autocrata que foi eleito é destruir a democracia, então ele muda as regras, enquanto estiver no poder, de sorte a diminuir ao máximo suas chances de derrota nas próximas eleições.
Para os populistas as eleições não são um modo de verificar a vontade política coletiva e sim um artifício para alcançar o poder e nele se manter. Por isso é tão difícil tirar do poder um líder populista apenas pelo voto. Se pressentem que vão perder, os populistas mudam as regras. Se perderem de fato, não aceitam os resultados.
QUARTA FALHA
A democracia não tem proteção eficaz contra a falsificação da opinião pública a partir da manipulação das mídias sociais, que desabilita qualquer razão comunicativa, destruindo o espaço discursivo de interações de opiniões.
Esta falha só foi percebida muito recentemente (na última década). Os populistas, acionando suas facções, promovem ataques de enxame (swarm attacks, contra os quais não se conhece defesa) para inviabilizar a emergência de uma opinião pública, substituindo-a pela soma de opiniões privadas e, com isso, estilhaçam a esfera pública em miríades de esferas privadas, destruindo o processo de formação e de verificação da vontade política coletiva. Embora o problema seja recente, notadamente depois que mídias sociais e programas de mensagens apareceram e foram colonizados por facções populistas, já há vasta literatura sobre o fenômeno, mas não solução. Hoje este é o problema mais importante que a democracia enfrenta e que pode inviabilizá-la como modo de regulação de conflitos.
Este artigo é parte de outro artigo que já foi publicado no site Dagobah em 05/11/2020, intitulado A tentativa de golpe de Trump: como os populistas maltratam a democracia. O trecho foi publicado separadamente aqui por razões pedagógicas (para fins de aprendizagem democrática).