in ,

A tentativa de golpe de Trump: como os populistas maltratam a democracia

Não se sabe ainda – enquanto estas linhas são escritas – o resultado da disputa entre o democrata formal Joe Biden e o populista-autoritário Donald Trump. Sabe-se já, porém, que Trump está tentando dar um golpe na democracia americana.

Trump é o melhor exemplo de que, no século 21, os populismos (e não mais o comunismo e o fascismo, agora vestigiais) são os principais adversário da democracia. Os populistas amam eleições, mas só quando eles ganham. Se perdem, flertam com a tirania. É o que Trump está fazendo: tentando melar as eleições. A eleição só é válida se ele ganhar. Se perder, é fraude. Como ele está vendo que pode perder, quer parar a contagem. E estimula seus seguidores para que alterem, inclusive pela ameaça do emprego da força, o processo de apuração que pode lhe dar um resultado desfavorável. Veja-se a imagem que ilustra este artigo. Apoiadores de Trump ameaçaram ontem (04/11/2020) invadir o Departamento Eleitoral do Condado de Maricopa, em Phoenix, no Arizona. A foto de Michael Chow / The Republic mostra um deles armado com um fuzil.

O que podemos dizer é que, tirando algumas exceções (que parecem confirmar a regra), uma força política populista dificilmente sai do poder apenas pelo voto.

Por que? Porque os populistas se aproveitam das quatro falhas genéticas da democracia. E, no caso da democracia americana, se aproveitam também de uma quinta falha, que só vale para os Estados Unidos.

PRIMEIRA FALHA

A democracia não tem proteção eficaz contra o discurso inverídico.

Esta falha já havia sido percebida pelos primeiros democratas, os atenienses do século 5 AEC. Observando a jactância dos demagogos, que prometiam em assembleia o que não podiam fazer, os democratas perceberam a falha, mas não conseguiram encontrar um maneira tempestiva de consertá-la. Como, até hoje, a solução não apareceu e – como dizia Khrushchov – os políticos prometem construir pontes até onde não existe rio, a vulnerabilidade permaneceu.

Uma coisa, porém, é a demagogia que, ao contrário do que acreditava Aristóteles, não é capaz de destruir a democracia e é metabolizável por ela. Outra coisa, muito diferente, é o uso instrumental da mentira pela nova forma maligna que a demagogia tomou: o populismo.

Os populistas mentem o tempo todo. Mentem não por algum desvio de caráter. Mentem não apenas porque querem levar vantagens pessoais. Mentem sistemática e estrategicamente para destruir a democracia, tornando irrelevante a ideia de verdade e a necessidade de coerência ou correspondência entre os opiniões e os fatos. Para tanto, criam novos fatos (fakes) reduzindo a possibilidade da persuasão, do convencimento e do esclarecimento (ou entendimento comum).

SEGUNDA FALHA

A democracia não tem proteção eficaz contra o uso da democracia (notadamente das eleições) contra a democracia.

Esta segunda falha só foi percebida na democracia dos modernos, após a adoção em larga escala dos processos eleitorais como meios de representação da vontade política de indivíduos. Como a falha anterior ela ficou, até agora, sem solução.

Sabendo disso, os populistas se apropriam das técnicas eleitorais e usam as eleições como se fosse uma guerra contra um inimigo (externo e interno); ou seja, os adversários passam a ser inimigos internos (agentes do inimigo externo infiltrados no país) e são considerados habitantes ilegítimos. Se os populistas se dizem de esquerda, o inimigo externo é o imperialismo, a CIA, o capitalismo apátrida ou o neoliberalismo e seus agentes internos são as elites (a burguesia, o capital financeiro ou os rentistas e… os liberais). Se os populistas se dizem de direita, o inimigo externo é o globalismo, o comunismo, a trilateral, o Clube de Bilderberg e seus agentes internos são (novamente) as elites (os cientistas e os intelectuais, os artistas, os universitários e… os liberais). Como se sabe os populismos (digam-se de esquerda ou de direita) se caracterizam por achar que a sociedade está dividida por uma única clivagem, separando a vasta maioria (o povo) do “establishment” (as elites).

Ao fazerem isso, os populistas polarizam completamente o cenário político e, numa polarização acirrada, há sempre – por uma fenomenologia da interação social – uma tendência ao equilíbrio das forças dos contendores (até mesmo um empate) em que qualquer perturbação no sistema (introduzida com facilidade por quem está no poder) pode fazer a balança pender a seu favor.

Os populismos, ditos de esquerda ou de direita, sempre usam a democracia contra a democracia. Exemplos? Maduro e Ortega são neopopulistas (da esquerda bolivariana) que viraram ditadores. Orbán e Kaczyński (via Duda), que são populistas-autoritários, de extrema-direita, tomaram o mesmo caminho. E Bolsonaro, mais um populista-autoritário, fará no Brasil, em 2022, exatamente o que Trump está fazendo nos EUA em 2020. Deixá-lo no poder levará diretamente a isso.

TERCEIRA FALHA

A democracia não tem proteção eficaz contra a destruição das normas não escritas que estão abaixo do sistema legal-institucional e o sustentam.

Esta terceira falha só foi percebida no último século. Os populistas desrespeitam todas as normas (que não podem e não devem virar leis), esgarçando a base social (de confiança e civilidade) sem as quais os mecanismos de freios e contrapesos das instituições não funcionam mais a contento, ainda que as instituições continuem formalmente funcionando. Em outras palavras, eles aceleram a dilapidação do capital social que, se cair abaixo de certos níveis, transforma a democracia num regime menos substantivo, apenas formal.

Todos conhecem numerosas regras não escritas que possibilitam o pacto que permite a democracia e fazem parte dos bons costumes políticos que não devem ser violados, nem mesmo em contendas acirradas. Alguns exemplos:

√ Aceitar a derrota

√ Parabenizar o vencedor

√ Não tripudiar sobre o derrotado

√ Não mentir

√ Não acusar as regras (que foram aceitas antes da contenda) pela derrota

√ Não tentar mudar as regras durante o jogo

√ Não alegar falsamente que perdeu porque houve fraude

√ Não deslegitimar o adversário

√ Não encorajar a polarização (nós contra eles)

√ Não transformar o adversário em inimigo (da pátria, do povo, da nação, do Estado, de Deus)

√ Não levantar falso testemunho perante a justiça (nem praticar litigância de má-fé) contra um adversário

√ Tratar as divergências por meio de um debate aberto e tolerante, valorizando a moderação e a busca do consenso

√ Fazer oposição leal

Populistas, como Trump, violam todas essas regras.

O fato é que a democracia não pode ser protegida apenas pelas leis (escritas). Por isso todo legalismo é insuficientemente democrático. Não, não basta não violar as leis para proteger a democracia. Sem um pacto social, mesmo que tácito, de respeito aos bons costumes políticos (as normas não escritas), a democracia fica indefesa quando se elege um tirano cujo programa é de destruição da democracia.

É a velha pergunta de Sir Ralf Dahrendorf: e se os caras errados forem eleitos? A resposta-padrão, de que será possível trocá-los nas próximas eleições, só funciona para democratas (para os que respeitam as regras escritas e as não escritas). Se a intenção do autocrata que foi eleito é destruir a democracia, então ele muda as regras, enquanto estiver no poder, de sorte a diminuir ao máximo suas chances de derrota nas próximas eleições.

Para os populistas as eleições não são um modo de verificar a vontade política coletiva e sim um artifício para alcançar o poder e nele se manter. Por isso é tão difícil tirar do poder um líder populista apenas pelo voto. Se pressentem que vão perder, os populistas mudam as regras. Se perderem de fato, não aceitam os resultados.

QUARTA FALHA

A democracia não tem proteção eficaz contra a falsificação da opinião pública a partir da manipulação das mídias sociais, que desabilita qualquer razão comunicativa, destruindo o espaço discursivo de interações de opiniões.

Esta falha só foi percebida muito recentemente (na última década). Os populistas, acionando suas facções, promovem ataques de enxame (swarm attacks, contra os quais não se conhece defesa) para inviabilizar a emergência de uma opinião pública, substituindo-a pela soma de opiniões privadas e, com isso, estilhaçam a esfera pública em miríades de esferas privadas, destruindo o processo de formação e de verificação da vontade política coletiva. Embora o problema seja recente, notadamente depois que mídias sociais e programas de mensagens apareceram e foram colonizados por facções populistas, já há vasta literatura sobre o fenômeno, mas não solução. Hoje este é o problema mais importante que a democracia enfrenta e que pode inviabilizá-la como modo de regulação de conflitos.

FORÇAS POLÍTICAS POPULISTAS DIFICILMENTE SAEM DO PODER APENAS PELO VOTO

Explorando essas quatro falhas, os populismos conseguem se prorrogar no poder com apoio popular suficiente (todo populismo tem apoio popular), hackeando o processo eleitoral de sorte a vencer eleições sucessivamente. Feito isso, aplicam suas políticas iliberais e majoritaristas, transformando as democracias liberais que parasitam em democracias apenas eleitorais, defeituosas e, se for possível, em autocracias eleitorais. O objetivo dos populismos é drenar o conteúdo liberal das democracias.

Salvo uma ou outra exceção (como Macri em 2015, na Argentina) não se tem exemplo recente de uma força política populista que tenha saído do poder apenas pelo voto (seja essa força dita de esquerda ou de direita). Ainda que, em algumas circunstâncias, um populismo pode ser substituído eleitoralmente (ou não) por outro populismo.

O lulopetismo não saiu do poder apenas pelo voto (sem as grandes manifestações populares forçando o Congresso a votar e o STF a validar o impeachment de Dilma, o PT não teria saído do poder). Neste caso o neopopulismo de esquerda foi derrotado com a ajuda do nascente populismo-autoritário de extrema-direita.

O evoismo não saiu do poder apenas pelo voto (Evo Morales foi deposto por um golpe policial manobrado pela extrema-direita boliviana). Neste caso, também, o neopopulismo de esquerda (bolivariano) foi derrotado, extra-eleitoralmente, pelo populismo-autoritário de extrema-direita.

O chavismo (seja com Chávez ou Maduro – um bolivarianismo hard) nunca foi derrotado eleitoralmente. Neste caso o populismo de direita dos seus desafiantes não prevaleceu.

O orbanismo e o erdoganismo avançaram no seu processo de autocratizar as democracias húngara e turca sempre colhendo resultados eleitorais positivos. E o mesmo está ocorrendo na Polônia.

O putinismo vence eleições sucessivamente desde o início do século e vai ficar no poder até meados da década de 2030 (ou mais).

Em recente estudo intitulado O estrago que o populismo faz na democracia: uma avaliação empírica, Jordan Kyle e Yascha Mounk (2018) mostraram que:

_| Os populistas duram mais no cargo. Em média, os líderes populistas permanecem no cargo duas vezes mais do que os líderes democraticamente eleitos que não são populistas. Os populistas também são quase cinco vezes mais propensos do que os não-populistas a sobreviver no cargo por mais de dez anos.

_| Os populistas geralmente deixam o cargo em circunstâncias dramáticas. Apenas 34% dos líderes populistas deixam o cargo após eleições livres e justas ou porque respeitam os limites dos mandatos. Um número muito maior é forçado a renunciar ou é impedido, ou não deixa o cargo.

_| Os populistas são muito mais propensos a prejudicar a democracia. No geral, 23% dos populistas causam um retrocesso democrático significativo, comparado com 6% dos líderes democraticamente eleitos não populistas. Em outras palavras, os governos populistas são cerca de quatro vezes mais propensos do que os não-populistas a prejudicar as instituições democráticas.

_| Os populistas frequentemente erodem os freios e contrapesos ao executivo. Mais de 50% dos líderes populistas alteram ou reescrevem as constituições de seus países, e muitas dessas mudanças ampliam os limites dos mandatos ou enfraquecem os controles sobre o poder executivo. As evidências também sugerem que os ataques dos populistas ao Estado de Direito abrem caminho para uma maior corrupção: 40% dos líderes populistas são acusados ​​de corrupção, e os países que lideram experimentam quedas significativas nos rankings internacionais de corrupção.

_| Os populistas atacam os direitos individuais. Sob o domínio populista, a liberdade de imprensa cai em cerca de 7%, as liberdades civis em 8% e os direitos políticos em 13% (1).

UMA NOTA SOBRE A FALHA AMERICANA

No caso americano, agora em tela, há ainda um falha adicional às quatro já apontadas. O desenho da democracia eleitoral americana contém falhas particulares e específicas que foram aproveitadas por Trump.

Os tais pais fundadores queriam mais uma república (governável) do que uma democracia (que confundiam, por ignorância, com tirania da maioria). Bolaram um modelo mais parecido com Roma (uma oligarquia) do que com Atenas (uma democracia), embora ambas tenham surgido no mesmo ano (509 a.C.). Para evitar esse perigo (imaginário, pois que nunca aconteceu em nenhum lugar do mundo ou época da história) da “tirania da maioria” criaram um sistema indireto, em que os votos dos cidadãos não têm o mesmo peso. Não há uma eleição nacional e sim cinquenta eleições estaduais com regras diferentes e pesos diferentes para a composição de um colégio eleitoral (suposto filtro contra demagogos que poderiam, como uma turba incontrolável, manipulando emoções por meio da demagogia, capturar “o cetro da razão” – essa expressão entre aspas é da lavra do federalista Madison) (2).

Na sua guerra contra os colonizadores ingleses, queriam mais manter a unidade da nova federação que fundaram do que captar a vontade popular. Deu no que deu. Ou melhor, está dando no que está dando. Se Joe Biden vencer, será uma exceção à regra não escrita (mas observada) de que um populismo dificilmente sai do poder apenas pelas eleições. E nem tão exceção assim porquanto os democratas chegaram a aprovar, na Câmara dos Representantes, o impeachment de Trump (coisa que não foi feita aqui com Bolsonaro em razão do nosso déficit de democratas) – que é uma medida constitucional, legal, mas não eleitoral. Talvez isso tenha tido reflexos no que veio depois e explique, pelo menos em parte, as dificuldades que Trump está enfrentando para se reeleger.

Notas

(1) The Populist Harm to Democracy: An Empirical Assessment de Jordan Kyle (Senior Fellow and Chief of Data and Analytics, Renewing the Centre) & Yascha Mounk (Executive Director, Renewing the Centre), Tony Blair Institut for Global Change, 26th December 2018.

(2) No Paper Federalista número 55, um dos documentos que precederam a ratificação da Constituição norte-americana, James Madison (ou, menos provavelmente, Alexander Hamilton) escreveu (na sexta-feira, 15 de fevereiro de 1788): “The truth is, that in all cases a certain number at least seems to be necessary to secure the benefits of free consultation and discussion, and to guard against too easy a combination for improper purposes; as, on the other hand, the number ought at most to be kept within a certain limit, in order to avoid the confusion and intemperance of a multitude. In all very numerous assemblies, of whatever character composed, passion never fails to wrest the sceptre from reason. Had every Athenian citizen been a Socrates, every Athenian assembly would still have been a mob”. Bem… isso revela a pouca informação e a pouca compreensão que os federalistas tinham da democracia ateniense.

O que é ser um agente democrático

As quatro falhas genéticas da democracia